A ordem social é o ultimo tema a ser positivado na Carta Magna. Isso deve ter um significado em si.
Adotando a premissa de que as matérias foram tratadas na Constituição a partir de sua importância, verificamos que em primeiro lugar vem os Princípios Fundamentais da República, seguidos dos direitos e garantias fundamentais.
Logo após temos a organização do Estado, de seus poderes, e a defesa do Estado e das instituições democráticas. Seguem-se a tributação, o orçamento e a ordem econômica e financeira.
Por último, temos a ordem social, baseada no primado do trabalho, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça social. Estabeleceu-se um trinômio aparentemente antinômico.
Como pode o primado do trabalho oferecer sustentáculo para ações tão diversas como: a seguridade social; a educação, a cultura e o desporto; a ciência e a tecnologia; a comunicação social; o meio ambiente, a família, a criança e o adolescente e o idoso; e, por último, os índios?[1]
A resposta é complexa e está longe de ser evidente. Contudo, dado o escopo restrito da presente análise, deter-nos-emos no sistema da seguridade social, que compreende os subsistemas da saúde, previdência social e assistência social.
Qual a relação entre o primado do trabalho e o bem-estar e a justiça sociais? Melhor dizendo, onde o primado do trabalho e a saúde, a previdência e a assistência social se interceptam, se cruzam?
A estrutura do mercado de trabalho reflete as desigualdades sociais. Logo, os mecanismos contributivos de proteção social (cidadania laboral) precisam ser complementados por mecanismos solidários de proteção social, de forma a neutralizar as dinâmicas excludentes do mercado de trabalho evitando a dupla exclusão: do mercado de trabalho e da rede de proteção social.
Nesse sentido, o sistema constitucional de seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. A seguridade social será financiada por toda sociedade, de forma direta ou indireta, com recursos provenientes dos orçamentos dos entes federados e, também, de contribuições sociais específicas (tributos).
A saúde é direito universal de todos e dever do Estado e deve ser prestada gratuita e igualitariamente para toda a população, conforme determina o artigo 196 da Constituição Federal[2].
A previdência social visa à proteção do cidadão quando da perda, temporária ou permanente, da sua capacidade de trabalho. A assistência social, por fim, tem o objetivo de prover o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos mais humildes, criando condições para a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de deficiência, independentemente de contribuição à Seguridade Social, com ações executadas pelo poder público ou pela iniciativa privada.
Os subsistemas da saúde, previdência e assistência social possuem uma relação de continência hierarquizada. Quanto melhores e mais eficazes as ações preventivas de saúde (como saneamento básico), maior e mais consistente a força laboral e a inclusão previdenciária contributiva. Consequentemente, menores os gastos com a assistência social. Portanto, no limite, perde sentido o discurso ideologizado acerca da segregação das despesas com os subsistemas da seguridade social, uma vez que as ações de seguridade social deverão ser compreendidas como um todo integrado e interdependentes entre si.
Dentre os princípios norteadores da seguridade social, destacam-se a universalidade da cobertura e do atendimento e a uniformidade e a equivalência dos benefícios e serviços (entre trabalhadores urbanos e rurais), cuja prestação deverá obedecer a critérios de seletividade e distributividade. Estabeleceu-se a irredutibilidade do valor dos benefícios, a equidade na forma de participação no custeio, a diversidade da base de financiamento e o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa. A previdência social brasileira cobre os riscos decorrentes dos seguintes eventos:
- doença; - invalidez; - morte; - idade avançada; - proteção à maternidade, especialmente à gestante; - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; e, - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e aos dependentes.
Todos os riscos sociais básicos previstos na Convenção 102/1952 da OIT (Padrões Mínimos da Seguridade Social) são cobertos pelo sistema previdenciário brasileiro. Na seara previdenciária, os princípios da seguridade materializam-se da forma seguinte:
Princípio da contributividade e da universalidade da cobertura e do atendimento: concebendo-se a Previdência Social como um seguro, o sistema é organizado sob a forma de um regime de caráter contributivo. No entanto, como os riscos sociais atingem a todos democraticamente, a totalidade da sociedade sem distinção de profissões e categorias sociais tem o direito à proteção contra esses riscos, mediante contribuição ao sistema previdenciário (universalidade de cobertura). O princípio da universalidade permite que o Estado imponha a obrigatoriedade de adesão ao sistema, de tal forma que a proteção seja estendida a todos.
Princípio da obrigatoriedade: O princípio da obrigatoriedade estabelece que todos aqueles que exercem atividade remunerada devem contribuir com um percentual de sua renda para a Previdência Social, princípio este decorrente da universalidade e que leva em conta, sobretudo, a estabilidade social do Brasil.
Princípio do equilíbrio financeiro e atuarial: o subsistema da previdência social deve conter regras que garantam a sua sustentabilidade. Esse equilíbrio entre a receita e o passivo atuarial (quanto se paga anualmente de aposentadoria) é necessário não apenas para dar segurança às pessoas que contribuem mensalmente para o sistema, mas também para assegurar o pagamento dos benefícios àqueles que contribuíram no passado (ou tiveram contribuições creditadas ou orçadas ou garantidas em seu nome).
Princípio da equivalência dos benefícios e serviços às populações rurais e urbanas: segundo este princípio, as regras de Seguridade Social não devem privilegiar uns em detrimento de outros. A uniformidade diz respeito aos eventos que serão cobertos, enquanto a equivalência refere-se ao aspecto pecuniário ou de atendimento de serviços, sem a exigência de que estes ou os benefícios sejam iguais, mas sim, equivalentes.
Princípio da equidade: está relacionado à contribuição ao sistema de Seguridade Social, que deve ser estabelecida de acordo com a capacidade de cada individuo, da mesma forma que a retribuição ao segurado deve ser proporcional à sua contribuição.
Princípio da solidariedade entre gerações: baseia-se na premissa de que toda a sociedade economicamente ativa e o Estado devem contribuir para o pagamento dos inativos de hoje, de forma a garantir, não apenas a estabilidade social do país, como também cumprir o primado da função social da aposentadoria.
A Previdência oficial básica foi moldada no sistema de repartição simples, ou seja, num sistema de regime de caixa, no qual as receitas (contribuições) são destinadas ao pagamento de despesas atuais (aposentados de hoje), não havendo formação de reserva ou de poupança individual.
Vê-se que estão intrinsecamente ligados e, portanto, sustentados por este princípio, a universalidade, a obrigatoriedade de todos os ativos contribuírem, o equilíbrio financeiro e atuarial, a equivalência e a equidade.
Em um sistema de repartição simples (de caixa) o pagamento dos benefícios previdenciários instituídos somente pode ser alcançado se houver todo um grupo sustentando os incapazes, sobretudo nos momentos de risco imprevisíveis, como o evento morte, por exemplo.
A solidariedade é inerente à atividade econômica, que deve suportar tanto os benefícios programados (ex: aposentadoria por tempo de contribuição), como os meramente de risco (ex: auxílio-doença).
Logicamente, para que o sistema de repartição simples seja bem sucedido, além de obrigar os cidadãos a contribuírem, deve contar com revisão atuarial[3] anual da massa de contribuintes ativos, a fim manter equilibradas as contas. Por óbvio que desvios de receitas, cadastros falhos, fiscalização precária, políticas inconstantes e, sobretudo, falta de avaliação anual do perfil da massa de contribuintes comprometem não somente este, mas qualquer sistema de custeio previdenciário.
O direito à Previdência Social básica garante ao segurado um benefício definido quando da sua aposentadoria, custeado por toda a sociedade economicamente ativa à época de sua concessão. Ressalte-se que, o atual aposentado, quando da atividade contribuiu para os que antes deles se aposentaram, seja por desconto em folha, seja por contribuições sociais diversas, seja porque o Estado se incumbiu de fazê-lo, tudo isso nos termos legais. O princípio da solidariedade entre gerações subdivide-se em:
Princípio da solidariedade intragerações: também conhecido como pacto intrageracional, este princípio deve ser analisado de forma sistemática, uma vez que complementa o princípio da equidade, acima exposto. Uma vez que a equidade estabelece que o segurado seja retribuído em função de suas contribuições, o pacto intragerações flexibiliza aquele princípio ao admitir a distribuição de renda dentro do sistema, de modo que as regras do Sistema possam beneficiar os trabalhadores de menor poder aquisitivo, a fim de que seja fortalecida a coesão social.
Como exemplo desse pacto, o Estado concede isenções totais ou parciais de alíquotas de contribuição patronal sobre a folha de pagamento, são as chamadas renúncias fiscais – como forma de favorecer os mais humildes e como instrumento de fortalecimento de segmentos da sociedade considerados importantes para o desenvolvimento da economia (ex: entidades filantrópicas, empregadores rurais e empresas optantes pelo Simples).
Princípio da solidariedade intergerações, ou pacto intergeracional, concentra todo o fundamento do sistema de repartição simples, na medida em que estabelece a solidariedade de ativos para com os atuais inativos. Mais especificamente, pode-se afirmar que, por este princípio, a geração que está em atividade hoje é quem contribui para financiar os gastos previdenciários da geração que está aposentando ou aposentada.
Conclui-se, então, que quem já se aposentou no sistema de repartição simples tem direito adquirido à aposentadoria e sua inalterabilidade, não mais necessitando contribuir para a previdência, em razão, sobretudo, do princípio da solidariedade de gerações, base do atual sistema, que exclui, expressamente, os inativos desse ônus (que é de exclusiva responsabilidade da sociedade economicamente ativa e do Estado).
Ressalte-se, ainda, que o princípio da solidariedade entre gerações no sistema de repartição simples é tão intimamente ligado à função social das concessões dos benefícios previdenciários que não permite a devolução de contribuições aos segurados que saem do Regime. Primeiro, porque não são individualizadas e nem diretamente proporcionais ao benefício a ser concedido quando da elegibilidade do segurado; segundo, porque, ao ingressar num regime de repartição simples, o segurado está sob a égide do princípio constitucional da solidariedade, que pressupõe a submissão daquele ao pacto intergeracional.
Vale ressaltar que, na visão assentada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio da solidariedade passou a ter uma dimensão bem distinta da acima retratada. Por ser solidário, o sistema previdenciário comportaria taxações praticamente ilimitadas. Sob o espeque da solidariedade, o STF assentou a constitucionalidade da contribuição previdenciária do servidor público aposentado, bem como a limitação da retributividade estrita (que passaria a garantir apenas a criação de novo tributo sem a correspondente fonte de custeio e não a criação de nova fonte de custeio sem o correspondente incremento de benefício).
A partir do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) propostas contra as sucessivas reformas previdenciárias, em especial a ADI 3.105, o STF adotou uma particularíssima visão dos princípios que regem a seguridade social, afastando-se, em certa medida, da doutrina previdenciarista. Tal entendimento possui um desdobramento extremamente prejudicial aos direitos e garantias fundamentais, não apenas dos servidores, mas de todos os cidadãos que estão sujeitos à voracidade da atividade tributária do Estado. Na medida em que a exação previdenciária[4] não conhece limites em uma contrapartida estatal, (em especial a exação de contribuições, cujo caráter assemelha-se ao da taxa, em uma vinculação direta entre recolhimento e benefício) as contribuições poderão ser instituídas a bel prazer do Fisco, sem nenhuma repercussão em benefícios, em razão da solidariedade do sistema.
[1] O desafio de compatibilizar o primado do trabalho com os objetivos da ordem social (bem-estar e justiça sociais) não é menor que o desafio oferecido pela ordem econômica: fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170 da Constituição).
[2] Em janeiro de 2007 foi publicada a Lei 11.445 que estabeleceu o marco regulatório para o saneamento no Brasil.
[3] A revisão atuarial consiste na adequação das contas às tábuas biométricas de longevidade, natalidade, mortalidade e invalidez, bem como a atualização dos estudos demográficos.
[4] Nesse ponto, é importante lembrar que doutrina e jurisprudência sempre distinguiram a exação previdenciária dos demais tributos, conferindo-lhe um caráter mais aproximado das taxas (vinculação) e não de impostos (não vinculados).