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O ITCD, a quebra do sigilo fiscal pela Fazenda do DF, o direito fundamental à privacidade e o direito tributário internacional

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11/08/2014 às 11:45
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Desrespeitando o procedimento de notificação do contribuinte para cobrança fiscal, a Fazenda do DF lançou edital ilegal contendo dados pessoais dos devedores que declararam terem realizado doações. É possível responsabilizar o Fisco? Óptica internacional.

Resumo: Desrespeitando o procedimento de notificação do contribuinte para cobrança fiscal, a Fazenda do DF lançou edital ilegal contendo dados pessoais dos devedores que no IR de 2008 declararam terem realizado doações. A própria Administração reconheceu a nulidade do ato, todavia, ante a impossibilidade de apagar os efeitos gerados pela divulgação da lista de devedores, lembrando que o Diário Oficial está disponível a qualquer cidadão por meio da internet, a discussão ao qual o artigo se propõe perpassa pela possibilidade de responsabilização civil da Administração, a título de danos morais, na expectativa de atenuar o prejuízo da humilhação pública sofrida, levando-se em conta o caráter pedagógico de tal mecanismo; são trazidos à baila, por oportuno, dois precedentes específicos sobre o caso. Entende-se que tal discussão traz à tona um antigo debate acerca da amplitude da proteção constitucional à privacidade e ao sigilo fiscal. Ao longo do texto destacam-se também a relação conflituosa, tênue, intrínseca – mas indispensável – existente entre sigilo fiscal, interesse público, transparência tributária e prerrogativas, que desequilibram a balança e nos distanciam do equilíbrio, do norte, da mens legis ao qual o poder constituinte – não só originário, mas derivado – pretendeu estabelecer. Adentrando, ainda, numa perspectiva de direito comparado sob a óptica do direito tributário internacional, observa-se que é premente a necessidade de se reestruturar e sofisticar o sistema tributário com as balizas mais atuais, podendo talvez absorver a experiência de países como a Holanda, que mesmo simplificando de sobremaneira o sistema arrecadatório, conseguiu criar um meio eficaz de diálogo entre fisco e contribuinte, fortalecendo os laços de confiança.

Palavras-chave: Tentativa de cobrança ilegal do ITCD pela Fazenda do DF. Responsabilidade civil da Administração. Amplitude do direito fundamental à privacidade e seus desdobramentos. A relação entre sigilo fiscal, transparência tributária, fiscalização e interesse público no plano interno e externo. Direito tributário internacional.

Sumário: 1 O lançamento ilegal do ITCD pela Fazenda do DF. 2 Da violação ao sigilo fiscal e suas implicações. 2.1 O direito fundamental á privacidade.     2.2 Precedentes do Juizado Especial da Fazenda Pública do DF e STJ.     2.3 Uma análise de direito tributário internacional.     2.4 Elisão fiscal e o abuso de direito na seara tributária internacional. 3 Conclusão


1 O lançamento ilegal do ITCD pela Fazenda do DF

Em 08 de abril de 2013 a Secretaria de Fazenda do Distrito Federal efetuou, via edital, o lançamento e a notificação de contribuintes que declararam doações no IR de 2009 – ano base 2008. Foram publicados no DODF os valores doados, números de CPF, nome dos doadores e donatários, assim como o montante devido.

O fato chamou atenção exatamente por não ter havido qualquer tentativa de notificação pessoal prévia. Além da surpresa dos próprios contribuintes com a quebra do sigilo fiscal, a divulgação na mídia especializada e a notoriedade da dívida perante a sociedade de modo repentino, a atitude do Fisco traduziu-se em uma flagrante coação para o pagamento do tributo.

Em 10 de abril de 2013 o Secretário de Fazenda do Distrito Federal publicou a Portaria n. 74, a qual cancelava o edital de lançamento do referido imposto, sob o fundamento de não ter atendido as condições estabelecidas na Lei Distrital 4.567/2011, que rege especificamente o processo administrativo fiscal local.

Será que a anulação de ato ilegal em função do poder de autotutela da Administração – vale lembrar o teor da súmula 473/STF[2] – tem o condão de reparar a violação ao direito fundamental à privacidade e ao sigilo fiscal? Afinal, apesar da anulação do edital, este jamais desaparecerá do Diário Oficial, estando sempre disponível para consulta a qualquer cidadão.


2 Da violação ao sigilo fiscal e suas implicações

O tema é polêmico. Jurisprudência e doutrina divergem quanto aos parâmetros a serem observados. Às vezes, pecam pelo casuísmo. Embora o STF tenha estabelecido anteriormente diretrizes basilares, em termos práticos, contudo, ainda engatinhamos na tarefa de conferir ao contribuinte o respeito que merece, tal como delimitado pela Constituição Federal.

Merece toda a atenção o estudo de melhores barreiras para a quebra direta do sigilo fiscal e dos efeitos indiretos na sociedade, sem, claro, alterar a transparência tributária.

Então, questiona-se: será que a Administração Pública deve ser responsabilizada civilmente, e obrigada a indenizar, a título de danos morais, eventuais quebras de sigilo fiscal?

O direito positivo simboliza que sim. No caso em tela, o lançamento de imposto por edital sem prévia tentativa de notificação pessoal configura clara afronta aos direitos e garantias previstos no Código Tributário Nacional e na Carta Magna, às vezes com danos indeléveis.

O ato causou tanta perplexidade que fora veiculado em alguns meios de comunicação[3]:

O Diário Oficial do DF desta segunda-feira, 8, trouxe um edital de lançamento de imposto de duvidosa legalidade. A secretaria da Fazenda do DF, a pretexto de lançar o imposto de transmissão causa mortis e doação, publicou no DO, na página 38, o nome e CPF de todos que fizeram e receberam doações nas declarações de IR de 2008/09.

Veja a íntegra da publicação.

A lista inclui muitos nomes conhecidos, inclusive deputados, senadores, ministros de Estado e dos tribunais superiores.

Diante da repercussão do caso, o governo do DF baixou a portaria 74/13 (v. abaixo) cancelando o edital. Segundo informações, o governador decidiu demitir o subsecretário da Receita, Espedito Henrique de Souza Jr, chefe dos autores da "invenção".[4]

No mundo hodierno está cada vez mais fácil obter acesso instantâneo a informações pessoais. Por esse motivo, torna-se tão relevante a proteção aos dados sigilosos. Quanto ao ato em questão, apesar da anulação do edital, este jamais desaparecerá do DODF, portanto, protrair-se-ão no tempo seus efeitos negativos.

O Poder Judiciário não pode ser conivente com abusos de direito perpetrados pelo Estado, como, por exemplo, a divulgação direta de lista de devedores, devendo exercer com afinco seu papel de último pilar da democracia, em respeito ao sistema de freios e contrapesos - checks and balances.

A anulação do edital de lançamento do ITCD pela própria Secretaria de Fazenda – Portaria n. 74 – e a subsequente demissão do subsecretário esgotam as dúvidas quanto à ilegalidade do ato. Um dos fundamentos, aliás, que baseiam o direito à reparação cível nesses casos está expresso na Constituição Federal e no Código Civil:

Constituição Federal

Artigo 5º, inciso X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Artigo 5º, inciso XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Código Civil

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Artigo 186. Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

Artigo 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

A reparação por danos morais pela violação ao sigilo fiscal está condicionada à demonstração do ilícito, seus efeitos na esfera da moral e na honorabilidade da vítima, além do nexo causal. O legislador optou ainda por adotar a teoria do risco administrativo, dispensando a necessidade de prova da culpa do causador do dano.

Ademais, o fato gerador do ITCD é instantâneo – a doação – não havendo motivo para sujeitar-se ao lançamento anual por edital, o que reforça a idéia de quebra do sigilo fiscal.

2.1 O Direito fundamental à privacidade

O § 2º do art. 36 da Lei Distrital 4.567/2011 viola o art. 11, § 1º da própria Lei, o Código Tributário Nacional e a Constituição:

Art. 36, § 2º Tratando-se de tributo sujeito a lançamento anual, a Notificação de Lançamento efetuada em caráter geral, por meio de edital publicado uma única vez no DODF, conterá:

I – identificação geral dos notificados;

II – data de emissão;

III – data de vencimento;

IV – informações essenciais ao cálculo do tributo;

V – prazo de 30 (trinta) dias para impugnação, contado da publicação;

VI – nome do titular do órgão expedidor ou de servidor autorizado, com indicação de seu cargo ou função.

Art. 11. Far-se-á a intimação:

I – pessoalmente, por servidor competente, mediante assinatura do sujeito passivo, seu mandatário ou preposto, ou, em caso de recusa, com declaração escrita de quem os intimar;

II – por via postal, com aviso de recebimento;

III – por publicação no Diário Oficial do Distrito Federal – DODF;

IV – por meio eletrônico, atestado o recebimento mediante:

a) certificação digital;

b) envio ao endereço eletrônico atribuído ao contribuinte pela administração tributária.

V – pela publicação no sítio da Secretaria de Estado de Fazenda na Internet, nos seguintes casos:

a) deferimento integral em processos de jurisdição voluntária;

b) quanto a atos futuros, nas hipóteses de que trata o art. 20, quando o sujeito passivo for noti­ficado por qualquer um dos meios dispostos nos incisos acima.

§ 1º A intimação quanto aos atos, procedimentos e processos previstos nos Títulos III, IV e V só será efetuada por publicação no DODF depois de esgotados os meios previstos nos incisos II e IV do caput, ressalvado o disposto no inciso V do caput, nos §§ 2º e 3º, no art. 49, § 2º, no art. 77, § 2º e no art. 80.

É ilegal o dispositivo da legislação distrital que admite a notificação editalícia direta; e, inconstitucional, a violação, sem o aval do judiciário, do direito à privacidade. Em sede de controle difuso de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela inconstitucionalidade de norma que permite a quebra direta do sigilo fiscal pela autoridade fazendária:

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte. (RE 389808, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2010, DJe-086 DIVULG 09-05-2011 PUBLIC 10-05-2011 EMENT VOL-02518-01 PP-00218 RTJ VOL-00220- PP-00540)[5]

Importante destacar os fundamentos foram utilizados pelo Pleno:

Ministro-Relator: [...] apenas se permite o afastamento do sigilo mediante ato de órgão equidistante, mediante ato do Estado-juiz, que não figura em relação jurídica a envolver interesses, e, mesmo assim, para efeito de persecução criminal.

As questões envolvidas na espécie são muitas. A primeira delas diz respeito à rigidez, a acarretar a supremacia, da Constituição Federal. Ato normativo abstrato autônomo há de respeitar o que nela se contém.

O segundo aspecto tem ligação com o primado do Judiciário. Não se pode transferir a atuação deste, reservada com exclusividade por cláusula constitucional, a outros órgãos, sejam da administração federal, sejam da estadual, sejam da municipal.

Vale notar que, nesses dois últimos patamares, também existem entidades cujo objeto, cuja destinação, assemelha-se à da Receita Federal. Admitindo-se que a Receita Federal pode ter acesso direto, por que meio for, a dados bancários de certo cidadão, dever-se-á caminhar no mesmo sentido, por coerência sistêmica para dar idêntico poder às Receitas estadual e municipal.”

Ministro Gilmar Mendes: Por que há de ser tão difícil, numa matéria que é relevante e tão suscetível a abusos, obter-se essa declaração do próprio judiciário, diante uma medida cautelar?.[6]

Ressaltam o que dispõe o parágrafo 1º do art. 145 da Carta Magna e concluem que se trata de um típico caso de reserva legal:

No que diz respeito ao acesso à conta com todas as suas consequências, não se trata de negar esse acesso, mas simplesmente de exigir – essa é a premissa do voto do Relator e também do voto do Ministro Celso de Mello proferido na cautelar – que, tendo em vista o valor de que se cuida dos direitos fundamentais, haja a observância do princípio da reserva de jurisdição. Portanto, não se trata de impedir o acesso.

Min Ricardo Lewandosky: [...] quando o parágrafo 1º do art. 145 faz alusão ao respeito aos direitos individuais, isso, a meu ver, indica exatamente que deve ser ouvido o Judiciário. Porque o Judiciário é o guardião último dos direitos fundamentais. Então o meu voto está exatamente nessa linha.

“Art. 145 , § 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.[7]

Visto a importância constitucional do direito à privacidade, a divulgação por edital de informações privadas ou lista de devedores da Fazenda Pública, sem autorização do judiciário, deve ser entendido, segundo a doutrina, como uma atitude além de ilegal e inconstitucional, imoral e irresponsável, pois a publicização de dados através da rede mundial de computadores alcança cada vez mais proporções logarítmicas.

[...] a decisão final veio ao STF que, no caso concreto, estabeleceu a necessidade de autorização judicial para a quebra de sigilo bancário, por se tratar de verdadeira cláusula de reserva de jurisdição, não tendo, portanto, o Fisco esse poder.

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Em seu voto, o Min. fala em um verdadeiro  “estatuto constitucional do contribuinte – consubstanciador de direitos e limitações oponíveis ao poder impositivo do Estado” destacando-se, no caso, o direito à intimidade e à privacidade.

Celso de Mello afirma, ainda, que as garantias não são absolutas. Aliás, nenhum direito e garantia fundamental é absoluto, devendo, na hipótese de colisão, ser feito juízo de ponderação.

Portanto, para eventual quebra de sigilo bancário, é imprescindível “...a existência de causa provável, vale dizer, de fundada suspeita quanto à ocorrência de fato cuja apuração resulte exigida pelo interesse pública. Na realidade, sem causa provável, não se justifica, sob pena de inadmissível consagração do arbítrio estatal e de inaceitável opressão do indivíduo pelo Poder Público, a ‘disclosure’ das contas bancárias, eis que a decretação da quebra do sigilo não pode converter-se num instrumento de indiscriminada e ordinária devassa da vida financeira das pessoas em geral.

E, ao final, conclui o Ministro Celso de Mello: “...entendo que a decretaçào da quebra do sigilo bancário, ressalva a competência extraordinária das CPI’s (CF) art. 58, parágrafo 3º), pressupõe, sempre, a existência de ordem judicial, sem o que não se imporá a instituição financeira o dever de fornecer, seja à administração tributária, seja ao Ministério Público, seja, ainda, à Polícia Judiciária, as informações que lhe tenham sido solicitadas”.

Por todo o exposto, a tendência do STF (e se aguarda o julgamento da ACO 1.271, que retoma a análise dos poderes da CPI estadual – matéria pendente) é permitir, conforme visto nos precedentes citados e como já vinha julgando, a quebra do sigilo bancário não somente pelo Judiciário como, também, pela CPI (sendo que, nesse caso, haveria transferência de sigilo, devendo a CPI e seus integrantes responsabilizarem-se pela manutenção do sigilo, só podendo utilizar as informações nos limites de sua atuação e nos termos da lei e da Constituição, sob pena de serem responsabilizados).[8]

Na lição de Gilmar Ferreira Mendes:

O sigilo bancário tem sido tratado pelo STF e pelo STJ como assunto sujeito à proteção da vida privada dos indivíduos.

[...]

O tribunal não admite o acesso direto da Receita Federal às movimentações bancárias dos contribuintes. Não recusa que a Receita obtenha esse tipo de informação, mas a subordina à intermediação tutelar do Judiciário.[9]

Paulo Gonet Branco ainda acrescenta:

O STF tampouco consente que a autoridade policial compartilhe com a Receita informações que obteve por meio de quebra de sigilo bancário em inquérito policial, objetivando que o Fisco apure aspectos da vida tributária do investigado que não guardem relação com o delito de que é suspeito e que ensejou a obtenção das informações bancárias.

O sigilo haverá de ser quebrado em havendo necessidade de preservar um outro valor com status constitucional, que se sobreponha ao interesse na manutenção do sigilo. Além disso, deve estar caracterizada a adequação da medida ao fim pretendido, bem assim a sua efetiva necessidade [...].

A quebra do sigilo bancário – ou fiscal -, assim, deve ser adotada em caráter excepcional.

[...]

Uma vez quebrado o sigilo, os autos que recebem essas informações devem correr em segredo de justiça. Há responsabilidade civil do Estado no descaso para com esse dever.

[...]

A proteção do sigilo fiscal impede, também, que se publique “lista de devedores da Fazenda Pública”.[10]

Ainda que assim não fosse, mesmo havendo alteração legislativa por emenda constitucional, haveria óbice para a quebra direta do sigilo fiscal pela Administração tributária, tendo em vista o princípio da vedação ao retrocesso social:

[...] uma vez concretizado o direito, ele não poderia ser diminuído ou esvaziado, consagrando aquilo que a doutrina francesa chamou de effet cliquet.

Entendemos que nem a lei poderá retroceder, como, em igual medida, o poder de reforma, já que a emenda à Constituição deve resguardar os direitos sociais já consagrado.

[...]

Para Canotilho (Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 468) isso quer dizer que os direitos sociais e econômicos também passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo.[11]

Imprescindível citar o que diz o Código Tributário Nacional:

CTN - Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. (Redação dada pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 1o Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: (Redação dada pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

I - requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

II - solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 2o O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

§ 3o Não é vedada a divulgação de informações relativas a: (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

I - representações fiscais para fins penais; (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

II - inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

III - parcelamento ou moratória. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001)

Não é admissível que a legislação local admita uma arbitrariedade ilegal e inconstitucional, dando margem para que contribuintes tenham a sua intimidade devassada, ao bel arbítrio dos agentes públicos, justamente porque ela faz parte do núcleo essencial e intransponível dos direitos fundamentais. A violação ao sigilo fiscal deve ser vista como “ultima ratio”, já que o interesse público impõe, por outro lado, a inexistência de proteção absoluta.

2.2 Precedentes do Juizado Especial da Fazenda Pública do DF e STJ

Há dois julgados díspares sobre o tema no Juizado Especial da Fazenda Pública do Distrito Federal. Um da 2ª Turma, se posicionando contra o dever de indenizar, e outro, a favor, da 1ª Turma.

ADMINISTRATIVO. ITCD. NOTIFICAÇÃO DE LANÇAMENTO POR EDITAL. SIGILO FISCAL. NÃO VIOLADO. ILEGALIDADE. INEXISTENTE. DANO MORAL. NÃO CONFIGURADO.1. A notificação de lançamento de tributo por edital não ofende a qualquer dos elementos constituintes do sigilo fiscal previsto no art. 198 do Código Tributário Nacional.2. Não é ilícita a notificação de lançamento de tributo por edital eis que presente autorizativo legal no art. 11, § 1º da Lei Distrital nº 4.567/2011.3. Ausente ato ilícito não se configura dever de indenizar. Inteligência do art. 927 do Código Civil.4. Recorrente vencido arcará com custas processuais e honorários de advogado fixados em 20% do valor corrigido dado à causa.(Acórdão n.733997, 20130111049562ACJ, Relator: FLÁVIO AUGUSTO MARTINS LEITE, 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, Data de Julgamento: 12/11/2013, Publicado no DJE: 14/11/2013. Pág.: 293)[12]

Nota-se que ficou distorcida, para os desembargadores da 2ª Turma, a possibilidade legal da troca de informações entre os fiscos federais, estaduais, distrital e municipais, com a nítida finalidade de expor e constranger os contribuintes mencionados no tal edital.

JUIZADO ESPECIAL. FAZENDA PÚBLICA. LEI 3.804/2006 E LEI 4.567/2011. LANÇAMENTO. NOTIFICAÇÃO. IMPRENSA OFICIAL. VIOLAÇÃO DO SIGILO FISCAL. DIREITOS FUNDAMENTAIS À INTIMIDADE E PRIVACIDADE (ART. 5º, X, CF). PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE (ART. 5º, LIV, CF). PRINCÍPOS DA LEGALIDADE E MORALIDADE DA ADMINITRAÇÃO PÚBLICA (ART. 37, CF). VIOLAÇÃO. ABUSO DE PODER. ATO ILÍCITO. DANO MORAL. CARACTERIZAÇÃO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - A regra é que órgãos fazendários e seus agentes deverão guardar sigilo das informações obtidas ou fornecidas pelo contribuinte, sob pena de serem responsabilizados civil e criminalmente. A possibilidade de compartilhar tais informações com outras entidades tributárias, das diversas esferas da administração pública, depende de prévio convênio, sem prejuízo da preservação do sigilo de quem recebê-los. - O sigilo fiscal está intimamente ligado à proteção dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, cuja violação enseja na reparação civil e moral, conforme preceitua a Carta Magna (art. 5º, inciso X). - A Administração Pública sujeita-se aos princípios da legalidade e da moralidade (art. 37, CF). De igual forma, a legalidade e a legitimidade dos seus atos devem ser analisados também à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Restam malferidos esses princípios, quando a administração, podendo atingir o fim almejado sem violar direitos fundamentais do contribuinte e causar qualquer prejuízo, opta pelo meio que expõe sua intimidade e privacidade, conferindo publicidade a atos dentro do procedimento fiscal, cuja divulgação alcança caráter vexatório, por figurar caráter sancionatório e ao mesmo tempo, maneira de agilizar o pagamento do tributo. - Na arbitragem da indenização do dano moral, devem ser observados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de modo que o valor amenize a dor psicológica do lesado, sem lhe proporcionar o enriquecimento indevido, ao mesmo tempo desestimule a reiteração de ato semelhante pelo agente, mas sem proporcionar sua ruína. No caso de notificação de lançamento tributário pela imprensa oficial, deve-se considerar o prejuízo possível segundo o senso e a experiência, uma vez que a indenização tem caráter mais eminentemente sancionatório a compensatório, uma vez que não há demonstração de maiores repercussões na esfera econômica-social. - Recurso parcialmente provido.(Acórdão n.738638, 20130110539342ACJ, Relator: LEANDRO BORGES DE FIGUEIREDO, Relator Designado:LUÍS GUSTAVO B. DE OLIVEIRA, 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, Data de Julgamento: 05/11/2013, Publicado no DJE: 27/11/2013. Pág.: 211)[13]

Com muito mais razão estão os desembargadores da 1ª Turma, que fundamentaram seus votos da seguinte forma:

O Distrito Federal reputou a legalidade de sua ação com base no que dispõe a Lei Distrital 4.567/2011, que rege o procedimento fiscal contencioso e voluntário. Afirmou que o art. 11, §1º c/c art. 36, §2º, da Lei n.º 4.567/2011 permitiria a notificação do lançamento pelo diário oficial, quando se tratar de tributo sujeito a lançamento anual.

Já a primeira vista, depara-se com ato normativo de discutível constitucionalidade, uma vez que, pelos requisitos estabelecidos pelo próprio §2º do art. 36 para o edital, haveria contrariedade ao art. 198 do Código Tributário Nacional e, por conseqüência, à Constituição Federal.

Mas ainda que superável o vício de constitucionalidade, uma vez que o fisco não poderia ficar a mercê das manobras dos contribuintes para recolher o tributo que lhe é devido, nascendo daí a necessidade de um mecanismo de intimação ficta, a aceitação dessa hipótese, em respeito aos princípios da legalidade, moralidade, razoabilidade e proporcionalidade, além de proteção aos direitos à intimidade e privacidade, somente seria aceitável, quando esgotados os meios de intimação pessoal possíveis e previstos na própria lei, ou seja, por servidor competente, via postal e meio eletrônico.

Isto porque a publicidade desnecessária – por não haver interesse público no seu conhecimento - e indesejável - por revelar informações do âmbito da intimidade e privacidade do contribuinte - é repugnada pelo Direito.

Mostra-se igualmente sem razão a alegação do Distrito Federal, de que se trataria de imposto sujeito a lançamento anual, regra excepcionada pelo art. 11 e §2º do art. 36 da Lei no. 4.567/2011. Segundo a Lei n.º 3.804/2006, o fato gerador da obrigação tributária, no caso de doação, será a data em que ocorrer o fato ou a formalização do ato ou negócio jurídico (art. 3º). Situação muito diversa dos tributos incidentes sobre a renda e o patrimônio.

Conclusão. Não existem dúvidas de que a Secretaria de Fazenda do Distrito Federal somente teve acesso aos fatos geradores do tributo, por conta do convênio firmado com a Secretaria da Receita Federal, na forma do art. 199, regra de exceção ao segredo fiscal (art. 198, CTN). Mas a exceção era apenas quanto ao fornecimento e conhecimento dessas informações e não quanto sua guarda e preservação do seu sigilo. De igual modo, a utilização dos mecanismos de publicidade dentro do procedimento fiscal deverá resguardar o sigilo fiscal, regra de proteção aos direitos à intimidade e privacidade. Há a necessidade de adequação dos atos administrativos dentro do procedimento fiscal, porque estarão sujeitos à análise quer a luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como da legalidade e moralidade, sob pena de figurar ato ilícito por abuso de direito.

2o vogal: Senhor Presidente, adoto a posição do 1.o Vogal, porém fazendo-o com mais veemência. Para mim, é inconstitucional a forma da publicação de intimação feita pelo erário do Distrito Federal no que tange ao desrespeito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.

Não passa na cabeça de jurista algum no Brasil a possibilidade, ainda que embasado em qualquer legislação infraconstitucional, de se inaugurar um processo administrativo ou judicial por uma citação ou intimação ficta, sem antes tentar a citação/intimação pessoal. Para mim, fere frontalmente o devido processo legal. Há uma desapropriação indireta de bens — é ao que o processo fiscal acaba levando — e, neste caso, há essa violação da garantia.

Só faço isso com mais veemência porque, para mim, é inconstitucional a primeira publicação, que é o alvo da discussão.[14]

Ademais, assim se posiciona o Superior Tribunal de Justiça:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LANÇAMENTO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE ENVIO DE NOTIFICAÇÃO AO ENDEREÇO DECLARADO PELO CONTRIBUINTE. IRREGULAR A NOTIFICAÇÃO POR MEIO DE EDITAL. SÚMULA 83 DO STJ. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE FATOS, PROVAS E DO DIREITO LOCAL. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 7 DO STJ E 280 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1.   A notificação por edital do lançamento do crédito tributário só se justifica quando o sujeito passivo se encontra em local incerto e não sabido, devendo, nos demais casos, ser realizada pessoalmente e por escrito, segundo inteligência do artigo 145 do CTN, o qual exige a notificação regular do contribuinte (AgRg no Ag 670.408/MG, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, DJU 08.08.2005).

2.   [...].

3.   Agravo Regimental do ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL desprovido.

(AgRg no AREsp 42.218/MS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/04/2013, DJe 03/05/2013)[15]

2.3 Uma análise de direito tributário internacional

Face as distorções no direito tributário interno, as sinuosas violações ao direito à privacidade por parte da Administração Tributária brasileira e, também, a globalização, cada vez mais a experiência em paraísos fiscais torna-se atrativa. O que, claro, não é vantajoso para nenhum país.

Oswaldo Othon[16] discorrendo acerca do sigilo bancário de trinta países que compõem a Organisation for Economic Co-operation and Development – OCDE, somente dois não permitem que agentes públicos tenham acesso direto aos dados sigilosos, quando há suspeitas de atividades ilícitas.

Portugal deixou de integrar esse grupo constrangedoramente minoritário ao aprovar, em 29 de dezembro de 2000, a Lei n. 30-G, bem semelhante à nossa Lei Complementar 105.

As recomendações da OCDE e da própria União Européia são enfáticas em relativizar o acesso direto das informações tributárias, possibilitando, assim, que os Estados fiscais democráticos cumpram os seus encargos.[17]

Portanto, em grande parte dos países a Administração Tributária pode e deve fiscalizar os contribuintes com autonomia. O que é defeso é o abuso de tal direito; em termos claros, devassar a vida privada sem qualquer indício inicial.

No direito estrangeiro o sigilo bancário frente as questões fiscais perdeu muito do seu status na década de 90. Aliás, nos Estados Unidos a matéria jamais foi alçada a direito fundamental e a Administração Fiscal sempre teve a possibilidade de ampla investigação. Na Alemanha o sigilo bancário não é protegido nem pela Constituição nem pelas leis ordinárias; a abertura da conta pode ser feita pelas autoridades fiscais no exercício de atividade fiscalizadora regular, nos procedimentos de investigação e nos procedimentos criminais. Na Áustria o art. 38 da Lei Bancária prevê o levantamento do segredo no caso da razoável suspeita de lavagem do dinheiro ou do pedido da autoridade administrativa nos casos de violações fiscais. Na Itália havia o tabu do segredo bancário que aos poucos começou a ser desmistificado diante da necessidade de acordar o passo com as outras nações da União Européia e da pressão da opinião pública contra o crescimento da evasão fiscal; [...] a decisão da Corte Constitucional de 18.2.92, que proclamou não ser o segredo bancário um fim em si mesmo, pelo que não poderia representar um obstáculo as investigação sobre as violações tributárias, permitiram que a abertura do sigilo fosse requerida [...].[18]

[...] na Holanda, contribuintes confiáveis (mais transparentes) são recompensados com menos burocracia (menos obrigações acessórias) e certeza sobre a interpretação do Fisco (sabem antecipadamente se o seu planejamento tributário será aceito ou não).[19]

No Brasil, a proteção à vida privada vem perdendo força com a atuação cada vez mais rigorosa do Fisco, mas, talvez, ao menos até certo ponto, houve um movimento de convergência desse rigor em direção aos ideais de transparência tributária. Afinal, um país onde muitos pagam o preço por poucos, pode-se compreender o porquê da necessidade de fiscalização expressiva, da dificuldade de estabelecer-se um diálogo, da burocracia. Dito de outro modo: o clamor social quanto às injustiças no tratamento tributário dado pela Administração brasileira não parece tão justificável assim quando contracena com o “jeitinho brasileiro”; as incansáveis tentativas de burla à lei, por vezes, parecem esvaziar o que legitima o discurso.

De fato, a falta de instrumentos adequados de fiscalização possibilitou a criação de grandes redes de movimentação de recursos financeiros por todo o mundo, originados de, ou destinados a, condutas ilíticas. Entre as mais óbvias temos: o narcotráfico, o terrorismo, o contrabando/descaminho e a lavagem de dinheiro.

Essa maior relativização do sigilo bancário ocorre em todo o mundo, especialmente após as diversas acusações surgidas contra instituinções financeiras, inclusive aquelas localizadas na Suiça, que envolveram até recursos mantidos pelo III Reich durante a Segunda Guerra Mundial e, ainda, o famigerado ataque terrorista contra os Estados Unidos da América, em 11 de setembro de 2011, que deu origem à publicação do US Patriot Act (public Law 107-56) criando mecanismos de acesso a informações bancárias e comunicações, em alguns casos independentemente de autorização judicial.[20]

Por outro lado, ainda a sensação que se tem é que os grandes contribuintes continuam em situação deveras confortável quanto ao pagamento de seus tributos, possuindo benesses inimagináveis para o contribuinte comum.

Ademais, tratando da vinculação dos órgãos administrativos aos direitos fundamentais, não só no direito interno, mas na sistemática de cooperação internacional – mediante tratados, por exemplo –, e com uma visão mais otimista:

[...] queremos frisar que entendemos que os direitos fundamentais não se encontram na esfera de disponibilidade dos poderes públicos, ressaltando-se que, numa acepção positiva, os órgão estatais se encontram na obrigação de tudo fazer no sentido de realizar os Direitos Fundamentais.

Sob o tema da cooperação, entendemos que podem existir problemas atinentes a direitos fundamentais quando fornecidas informações referentes a concessão de créditos bancários, informações contrárias a ordem pública, informações que revelem planos de negócios, segredos industriais que envolvam sigilo profissional, bancário (dependendo do caso), que não obedeçam ao contraditório, a ampla defesa, entre outros que aqui veremos. Finalizamos no sentido de que a Administração tributária está vedada de fornecer informações que possam eventualmente ferir direitos fundamentais.[21]

Pois bem, se mesmo em convenções de cooperação internacional em matéria fiscal os países signatários encontram, via de regra, óbice nos direitos fundamentais, o que dirá no plano interno, em que o Estado pode fragilizar ainda mais o contribuinte, enquanto deveria protegê-lo.

A título de exemplo, o parágrafo 2º do art. 198 do CTN, alterado pela LC 104/01, que trata do intercâmbio de informações sigilosas no âmbito da Administração, buscou dar mais segurança ao contribuinte, primando pelo direito fundamental à privacidade, todavia, na prática, desconfia-se da sua aplicação, porque ela relega à lealdade e honestidade do próprio fisco a segurança da informação, sem qualquer garantia para o contribuinte.[22]

O estado atual sobre o conceito de privacy é o de um palheiro num furacão nos termos postos por um magistrado norte-americano no caso logo referido “...a heystck in a hurracane” Ettore v. Philco Telev. Corp 229 F:2ed 418 (3d Cir. 1956).[23]

2.4 Elisão fiscal e o abuso de direito na seara tributária internacional    

A elisão fiscal está diretamente atrelada ao problema do abuso de direito. Há preocupação clara de vários ordenamentos jurídicos, e inclusive de tratados internacionais, em aprimorar normas anti-abuso.

A definição de abuso de direito, em verdade, nunca foi definido na esfera tributária norte-americana ou europeia. No primeiro caso, porque o conceito foi emprestado do direito civil; no segundo, porque foi copiado de outros ordenamentos e não houve ao certo a respectiva adaptação para internalizar.[24]

Dito isso, o direito do contribuinte em elaborar seu planejamento tributário dentro dos parâmetros legais não se contrapõe à transparência tributária, ou ao interesse público. Aliás, em termos precisos manifestou a Suprema Corte norte-americana, aduzindo, que, “the legal right of a taxpayer to decrease the amount of what otherwise would be his taxes, or altogether avoid them, by means which the law permits (…), cannot be doubted”[25].

Voltando nossos olhos para os Estados Unidos, nota-se como aspecto da luta contra o abuso dos tratados tem uma relevância de primeiro plano, de acordo com a política própria dos EUA de utilizar as convenções não somente como instrumento para garantir a limitação da dupla tributação, mas também e, sobretudo para enfrentar a elisão e a evasão fiscal. [...] o modelo dos EUA inclui disposições antiabuso (ex.: como as Limitations on benefits, LOB) especificamente designadas para enfrentar as formas de abuso das convenções internacionais conhecidas como treaty shopping, as quais restringem muito a aplicação das convenções assinadas pelos Estados Unidos nos casos em que indivíduos residentes sejam controlados por sociedades ou pessoas residentes em outros países, evitando assim a abertura de benefícios da convenção bilateral a estes indivíduos.

[...] Na abordagem na União Européia, fundamental é a consideração dos interesses em jogo, que para a Comunidade Européia são, de um lado, o respeito às liberdades fundamentais (em aplicação do direito primário) e das diretivas relacionadas direta e indiretamente (direito secundário) e, de outro lado, os interesses fiscais dos Estados.

[...]

A noção restritiva de abuso, portanto, encontra-se em conflito com os princípios de certeza e de confiança dos contribuintes, que também fazem parte do Community Legal System. [...].

A conclusão é que não se pode desejar que o processo de harmonização fiscal na Europa, sobretudo, no que diz respeito a entidades e sociedades atinja resultados mais concretos e incisivos porque, como a experiência demonstra, um mercado comum se torna sempre mais livre na interdependência das relações econômicas, criando como epifenômeno um aumento das medidas de abuso e, por outro lado, estimulando os Estados à concorrente reação de autodefesa, introduzindo outros vínculos fiscais para que a noçào de abuso, conforme atualmente configurada, continue a ter um nível de proteção dos interesses nacionais muito baixo.[26]

No Brasil, em se tratando de elisão fiscal, tem-se um vácuo; a norma geral antielisiva além de ser genérica nunca foi disciplinada por lei ordinária, conforme determina o parágrafo único.

Lidar com planejamento tributário agressivo é atualmente um grande desafio para administrações fiscais em todo o mundo. De modo geral, nos diversos países, o tratamento jurídico da questão funda-se em uma norma geral antielisiva (general anti-avoidance rule). Isto é, um princípio normativo estabelece que operações são ilícitas para fins fiscais se, ao invés de realizadas com proposito negocial, têm o intuito preponderante de obter vantagens tributárias[1]. O desafio que tal norma, de sentido bastante vago, deixa aos operadores do Direito é o seguinte: como definir, em situações concretas, a expressão “propósito negocial”?

[...]

Alguns juristas defendem que criar regras mais específicas, hábeis a definir com nitidez o sentido concreto da norma geral antielisiva, seria a melhor maneira de lidar com o problema. John Braithwaite (Australian National University) mostra, todavia, que esta não é a melhor resposta. O esforço do Estado em elaborar regras detalhadas, supostamente capazes de dar conta de todos os possíveis casos de planejamento tributário, paradoxalmente, acaba por gerar ainda mais insegurança jurídica: o excesso de regras aumenta a complexidade do sistema tributário e a contingência das decisões do fisco.

Se elaborar mais regras não é a melhor solução, como, então, proceder? Braithwaite afirma que os países que encontraram as melhores respostas aos dilemas gerados pelo planejamento tributário agressivo foram aqueles que aprenderam a combinar princípios gerais, regras específicas e procedimentos dialógicos. Os fiscos destes países apostam na transparência e na construção de caminhos institucionais aptos a gerar uma troca eficiente de informações com contribuintes.[27]

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Sobre o autor
Carlos Alencastro

Advogado. Pós-graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCASTRO, Carlos. O ITCD, a quebra do sigilo fiscal pela Fazenda do DF, o direito fundamental à privacidade e o direito tributário internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4058, 11 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29202. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Estudo realizado para atuação como advogado no caso em voga.

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