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Súmula vinculante e segurança jurídica.

Uma análise do caso da Súmula Vinculante nº 3

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O trabalho discorre sobre os pressupostos para a utilização do instituto da súmula vinculante como instrumento de realização do princípio da segurança jurídica, a partir do exame da atuação do STF no caso da Súmula Vinculante n. 3.

Sumário: 1 Introdução. 2 A segurança jurídica e a súmula vinculante. 2.1 A Segurança Jurídica. 2.2 Finalidades da súmula vinculante: segurança jurídica e efetividade. 2.3 A súmula vinculante e o Stare decisis. 2.4 Técnicas de aplicação e afastamento de precedentes do Common Law. 2.5 Pressupostos para aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante. 3 análise de caso. 3.1 Contextualização. 3.2 O afastamento da Súmula Vinculante n. 3 no julgamento do Mandado de Segurança 25.116. 4 Considerações Finais. 5 Referências.

Palavras chave: Segurança jurídica. Súmula vinculante. Requisitos para aprovação, aplicação e afastamento. Supremo Tribunal Federal.


1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é, a partir do exame da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da Súmula Vinculante n. 3[2], discorrer sobre a utilização da súmula vinculante[3] com um instrumento de realização do princípio da segurança jurídica.

  A valorização da jurisprudência em nosso ordenamento jurídico, evidenciada, por exemplo, pelos mecanismos formais de uniformização de jurisprudência introduzidos no processo civil brasileiro e pela criação de instrumentos de aceleração do processo com base na jurisprudência uniformizada, suscita vários debates na doutrina. Muito se discute sobre as causas e consequências desse fenômeno, que chega a ser visto por alguns como uma tendência de aproximação entre o nosso sistema jurídico – construído sob a tradição do Civil Law, que têm como principal fonte formal do direito as normas escritas – e o Common Law, cujo direito é, essencialmente, construído por meio da jurisprudência.[4]

Dentre esses instrumentos de uniformização da jurisprudência e de aceleração do processo, a introdução da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, gerou, em especial, bastante controvérsia[5]. Alguns a defendem, veementemente[6], outros a criticam de forma severa.[7]

A despeito de todas as discussões, o fato é que, seja ela boa ou ruim, há quase dez anos a súmula vinculante está em vigor e faz parte da realidade jurídica do Brasil, apresentando-se como uma tentativa de combater a insegurança jurídica e a relevante multiplicação de processos que dificultam a prestação jurisdicional no país (DINAMARCO, 2000, p. 1.445).

Por esse motivo, sem desmerecer a relevância das reflexões sobre as vantagens e desvantagens desse instituto, este estudo se propõe a investigar os pressupostos e requisitos necessários para que, no procedimento de aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante, esta sirva, na medida do possível, como um instrumento de combate à insegurança jurídica gerada pelas divergências de interpretação do Direito e pela instabilidade das decisões do Poder Público.

O intuito da pesquisa é, a partir do texto constitucional e das opiniões doutrinários sobre o tema, verificar, no caso concreto, em que medida o uso que o Supremo Tribunal Federal faz da súmula vinculante está em consonância com o ordenamento jurídico vigente, em especial com o princípio da segurança jurídica.

A segurança jurídica possui elevado grau de abstração em razão da sua pluralidade semântica e assume diferentes funções dependendo do contexto em que está inserida, podendo ser examinada em vários aspectos, dimensões e perspectivas (ÁVILA, 2012, p. 77-89)[8]. Por essa razão, é importante estabelecer em que sentido e sob que perspectiva esse termo está sendo empregado.

No presente estudo, cujo objetivo não é adentrar com profundidade a discussão sobre o conceito de segurança jurídica – matéria que, dada a sua complexidade, demandaria, por si só, um longo estudo – utilizaremos a definição formulada por Humberto Ávila e, por uma questão de coerência, também adota as demais definições, terminologias e classificações empregadas pelo autor ao tratar do princípio.

A opção por trabalhar com o conceito proposto por Ávila decorre, em primeiro lugar, do seu alinhamento aos objetivos deste estudo, visto que, tratando-se de um conceito mais complexo e abrangente, como o próprio autor declara, ele nos permite trabalhar com os diversos fundamentos, elementos, aspectos e dimensões da segurança jurídica.

Outra razão dessa escolha reside na preocupação desse autor com a prévia definição dos termos que emprega e da perspectiva que utiliza em cada caso. Considera-se essencial essa preocupação, por observar-se que na dogmática jurídica as divergências colocadas pela doutrina, quando examinadas a fundo, muitas vezes decorrem apenas de imprecisões terminológicas e das diferenças do enfoque adotado por cada autor para descrever um objeto.[9]

Esse problema é especialmente comum quando se tratam de temas com elevado grau de abstração, como a segurança jurídica, dada a pluralidade de significados, elementos, dimensões e perspectivas que o princípio comporta. Se esses pontos não forem previamente delimitados, torna-se inviável qualquer consenso doutrinário acerca do assunto. Não há como haver acordo sobre um objeto quando ele é observado por ângulos diferentes ou quando, embora sob a mesma denominação, os objetos examinados são distintos.

Optou-se por abordar o tema a partir do estudo de caso, por acreditar-se que o direito possui caráter instrumental, estando voltado para a solução de questões práticas da sociedade. Conforme observa Philipp Heck, o problema da criação do direito mediante a sentença judicial se encontra no centro da metodologia jurídica, pois a ciência jurídica é uma ciência normativa e prática. Sua finalidade não é a satisfação do desejo de saber, mais a resolução dos problemas da vida, e o direito que realmente importa para a vida é aquele que se realiza na sentença judicial. (HECK, 1999, p. 25-26).

Além disso, a utilização de exemplos aumenta o poder explicativo do texto, pois ajuda a tornar o estudo de assuntos densos, como o ora investigado, mais claro e objetivo. Nesse sentido, Ávila afirma que uma obra científica sem exemplos, além de precisar fugir do perigoso inimigo representado pela excessiva abstração, ainda acaba conduzindo a um paradoxo, porque tenta explicar o funcionamento sem mostrar como funciona, e a uma contradição performativa, porque tenha clarear sendo obscura. Alinhada a finalidade de facilitar o estudo do tema, a decisão de trabalhar com um único caso contribui para aumentar o seu poder ilustrativo e nos permite examiná-lo com maior profundidade. (ÁVILA, 2009, p. 32).

A escolha especificamente do caso da Súmula Vinculante n. 3, dentre tantas outras, decorre, além da curiosidade pessoal da autora sobre as questões relacionadas a esse enunciado[10], das peculiaridades envolvidas na aprovação da referida súmula e na posterior criação de exceção ao entendimento consubstanciado na sua parte final.

Isso porque, de acordo com a referida Súmula, o Tribunal de Contas da União (TCU) deve assegurar ao interessado o contraditório e a ampla defesa quando da sua decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que o beneficie, exceto quando se tratar da apreciação da legalidade de ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma[11] e pensão.

 Assim, conforme esse entendimento, tratando-se da primeira apreciação do ato concessivo pelo TCU, este não precisaria, antes de determinar a sua anulação ou revogação, chamar o interessado para se manifestar sobre a ilegalidade apontada no respectivo benefício. Nos casos da revisão ou cassação pela ilegalidade de aposentadorias, reformas e pensões já apreciadas anteriormente pelo órgão, há necessidade de contraditório prévio, consoante decidido no Mandado de Segurança 24.268.[12]-[13]

Contudo, posteriormente, no julgamento do Mandado de Segurança 25.116, o STF relativizou o entendimento acima, criando exceção à exceção prevista no referido verbete. Ao julgá-lo, o Tribunal adotou a tese de que, transcorridos cinco anos sem a apreciação do ato pelo TCU, em respeito ao princípio da segurança jurídica, haveria a necessidade de se assegurar o exercício do contraditório e da ampla defesa aos interessados, mesmo em se tratando de concessão inicial.

Nesse contexto, observa-se que o tema contempla aplicabilidade prática e que as questões nele inseridas merecem tratamento teórico mais aprofundado, cabendo analisar se, no caso concreto objeto deste estudo, a forma como o STF utilizou a súmula vinculante está alinhada à finalidade do próprio instituto de, entre outras coisas, diminuir a insegurança jurídica gerada pela falta de uniformidade e de estabilidade no processo de interpretação e aplicação do Direito pelos órgãos estatais.

Para isso, será preciso, inicialmente definir o princípio da segurança jurídica bem como tratar das finalidades da inserção da súmula vinculante no ordenamento jurídico Brasileiro. Em seguida, caberá apresentar algumas técnicas do Common Law de utilização de precedentes vinculantes e, depois, investigar os requisitos necessários para a aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante. Feito isso, será possível passar ao exame do caso concreto a fim de verificar se as finalidades e os requisitos do instituto foram, na prática, respeitados pelo Supremo Tribunal Federal aprovar a Súmula Vinculante n. 3 e, posteriormente, afastá-la no julgamento dos Mandados de Segurança 25.116.


2. A SEGURANÇA JURÍDICA E A SÚMULA VINCULANTE

A segurança jurídica pressupõe a estabilidade e a uniformidade na interpretação e aplicação do Direito pelo Estado, um dos objetivos almejados pela a súmula vinculante. De nada adianta que a lei seja conhecida e certa, se a sua interpretação e a aplicação variar a todo momento. Contudo, ao trocar as decisões individuais e concretas por enunciados gerais e abstratos, o Poder Judiciário assume nova feição e logo deve adotar novos critérios de segurança em suas decisões. Por esse motivo, na exata medida que tais enunciados sumulares, possam exalar efeitos gerais e abstratos, é imprescindível a utilização de critérios gerais que atribuam segurança e razoabilidade à sua adoção. (MARTINS, 2011, p. 196).

Investigar esses critérios de segurança que devem ser observados para a aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante é o objetivo da primeira parte deste estudo. Antes disso, porém, é necessário estabelecer o que se entende como segurança jurídica.

2.1 A Segurança Jurídica

     Como já mencionado, no presente estudo, adotaremos a definição de segurança jurídica formulada por Humberto Ávila. Este – ao propor um conceito não classificatório de segurança jurídica, mas gradual e polivalente, que, ao invés de se basear no dualismo segurança-insegurança, funda-se no espectro gradativo que oscila entre um estado de fato de maior ou menor segurança; um conceito mais complexo e abrangente, que não se circunscreve a um de seus elementos, a uma de suas dimensões ou a um de seus aspectos, mas a apresenta como norma que se compõe de uma multiplicidade de ideais, de dimensões e de aspectos a serem conjunta e equilibradamente considerados; um conceito centrado no controle argumentativo e constatável pelo uso da linguagem, por meio do conhecimento de critérios e de estruturas hermenêuticas, e para o qual o Direito é produto da experiência e resulta da conjugação de aspectos objetivos e subjetivos inerentes à sua aplicação, deslocando a compreensão do princípio do paradigma da determinação para o paradigma da controlabilidade semântico-argumentativa – define a segurança jurídica como (ÁVILA, 2012, p. 93, 118-119 e 274-278):

(...) uma norma-princípio que exige, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na sua cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração, surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro[14]. (ÁVILA, 2012, p. 274).

Partindo desse conceito, nota-se que quando este estudo fala da segurança jurídica ele se refere a uma norma jurídica, ou seja, a uma prescrição normativa por meio da qual se estabelece, direita ou indiretamente, algo como permitido, proibido ou obrigatório. Embora não se negue a necessária correlação de todos esses sentidos, não se trata aqui da segurança jurídica como um fato (dimensão fática) ou como um valor (dimensão axiológica). Trata-se de uma norma (dimensão normativa) que prescreve a adoção de comportamentos que incrementem a confiabilidade e a calculabilidade do ordenamento jurídico. (ÁVILA, 2012, p. 115-116).

Observa-se, ainda, que a segurança jurídica de que se fala é uma norma da espécie princípio, ou seja, uma norma imediatamente finalística, que estabelece um estado ideal das coisas (um fim) para cuja realização é necessária a adoção de comportamentos que provocam efeitos que contribuem para a sua promoção (meios). (ÁVILA, 2012, p. 118-119).

Quanto à definição dos fins e dos meios que a segurança jurídica enquanto norma-princípio preconiza, Ávila ressalta a necessidade de especificar vários aspectos relacionados a cada um dos elementos estruturais da segurança jurídica para que se possa verificar quais são as condutas (meios) a serem adotadas a fim de promover o estado das coisas cuja realização ela determina. Sem esse processo analítico de redução de ambiguidades, o princípio da segurança jurídica, além de poder ser manipulado de modo arbitrário, ainda pode suscitar uma série de discussões meramente aparentes. (Ávila, 2012, p. 120-123).

Nesse sentido, Ávila enumera as indagações essências à compreensão do alcance e do sentido desse princípio: a) quanto ao fim (aspectos finalísticos) – Segurança em que sentido (aspecto finalístico-material)? Segurança do quê (aspecto finalístico-objetivo)? Segurança para quem, na visão de quem e por quem (aspecto finalístico-subjetivo)? Segurança a ser aferida quando e a ser aplicada quando (aspecto finalístico-temporal)? Segurança em que medida (aspecto finalístico-quantitativo)?; b) e quanto aos meios (aspectos instrumentais): Segurança como (aspecto instrumental-material)? Segurança adotada por quem (aspecto instrumental-pessoal)? (Ávila, 2012, p. 121).

Em relação ao sentido da segurança que o princípio preconiza (aspecto finalístico-material), o estado ideal das coisas a ser realizado é um estado de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade. Nessa acepção, o ideal de cognoscibilidade refere-se a uma perspectiva estática e atemporal, significando a possibilidade, formal ou material, de conhecimento dos sentidos possíveis de um texto normativo, a partir de núcleos de significação que possam ser reconstruídos por meio de processos argumentativos intersubjetivamente controláveis. Em outras palavras, em uma perspectiva estática, para o direito ser seguro, é preciso que o indivíduo tenha capacidade de compreender o seu conteúdo. (ÁVILA, 2012, p. 128-129 e 274).

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A confiabilidade, por sua vez, refere-se a uma perspectiva dinâmica retrospectiva (voltada para o passado), denotando a exigência de estabilidade na mudança, como a proteção de situações subjetivas já garantidas individualmente e a exigência de continuidade do ordenamento jurídico por meio de regras de transição de cláusulas de equidade, abrangendo os elementos que proíbem a modificação ou determinado tipo de modificação no presente daquilo que foi conquistado no passado. Nessa perspectiva, a segurança jurídica estabelece a promoção de um estado das coisas em que os atos de disposição dos direitos fundamentais de liberdade são respeitados graças a exigência de estabilidade, de durabilidade e de irretroatividade do ordenamento jurídico. (ÁVILA, 2012, p. 130-131 e 274-275).

 Já a calculabilidade diz respeito a uma perspectiva dinâmica prospectiva (com foco no futuro), sendo vista como a capacidade de antecipar e medir o espectro reduzido e pouco variável de consequências atribuíveis abstratamente a atos ou fatos e o espectro reduzido de tempo dentro do qual a consequência definitiva será efetivamente aplicada, referindo-se aos elementos que prescrevem o ritmo da mudança, no futuro, daquilo que está sendo realizado no presente. Trata-se, pois, de um estado das coisas em que o cidadão é capaz prever, em grande medida, os limites da intervenção do Poder Público sobre os atos que pratica, conhecendo, antecipadamente, o âmbito de discricionariedade dos atos estatais. (ÁVILA, 2012, p. 131-132 e 274-275).

Quanto ao objeto (aspecto finalístico-objetivo), a segurança jurídica pode referir-se tanto ao ordenamento jurídico como um todo, quanto a uma norma geral ou individual ou, ainda, a um comportamento[15]. No tocante ao sujeito (aspecto finalístico-subjetivo), o princípio deve ser assegurado pelos três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, e destina-se a proteger o particular, não podendo ser invocado em benefício do Estado. (ÁVILA, 2012, p. 263-264).

Nesse sentido, Misabel Derzi assinala que, em uma relação vertical, como é a do cidadão com o Estado, esse princípio só pode ser aplicado de maneira unilateral em benefício do particular, para protegê-lo da atuação do Poder Público, quando os atos dele emanados são geradores de confiança. Para a autora, apenas admite-se a sua aplicação para favorecer uma pessoa jurídica de direito público contra outra pessoa jurídica de direito público ou contra o Estado, nunca contra o cidadão, pois todo aquele que tem posição soberana em relação aos acontecimentos não tem confiança a proteger. (DERZI, 2009, p. 324, 366 e 395-397).

Ainda no âmbito do aspecto finalístico-subjetivo, a segurança tanto pode ser considerada um princípio objetivo do ordenamento jurídico, em uma dimensão objetiva e impessoal, hipótese na qual se fala em princípio da segurança jurídica em sentido estrito; como também pode experimentar uma aplicação reflexiva relativamente a um sujeito específico, em uma dimensão subjetiva, referindo ao chamado princípio da proteção da confiança legítima (ÁVILA, 2012, p. 267).

Quanto ao momento, aspecto finalístico-temporal, deve-se buscar a segurança jurídica do passado, do presente e do futuro. A aplicação do princípio deve envolver a análise das três dimensões de tempo, não podendo, por exemplo, a pretexto de proteger a segurança do passado, coprometer, em maior medida, a segurança do presente e do futuro. Assim, quando a proteção da segurança jurídica em relação a uma das dimensões temporais ensejar a sua restrição em relação às outras, deve-se optar pela alternativa que, conjuntamente, promova em maior medida os ideais de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do Direito. O mesmo ocorre em relação aos demais aspectos finalísticos anteriormente mencionados. Por isso, quanto ao aspecto finalístico-quantitativo, deve-se garantir a segurança jurídica total (em todos os seus aspectos), de modo que, no conjunto, ela seja mais promovida do que restringida. (ÁVILA, 2012, p. 270-271).

Em relação aos meios necessários para a promoção da segurança jurídica (aspectos instrumentais), tem-se, como destinatários do dever de agir, os três Poderes e, como beneficiários do dever de agir, os cidadãos (aspecto instrumental-pessal). Já o aspecto instrumental-material refere-se à adoção de comportamentos que provoquem efeitos que contribuam para a promoção de um estado de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade do Direito. Assim, no aspecto material, a definição dos meios para a promoção da segurança jurídica, por tratar-se de um princípio, se dá, não pela descrição das condutas que devem ser realizadas, mas pelos efeitos dessas condutas. (ÁVILA, 2012, p. 187-188 e 264).

Por fim, segundo Humberto Ávila, a segurança jurídica possui caráter instrumental, pois ela não é um fim em sí mesmo. De um lado, ela serve para garantir os direitos fundamentais de liberdade e de propriedade, pois, sem confiabilidade e calculabilidade da atuação estatal, o indivíduo não tem como exercer o direito de, livremente, planejar e conceber o seu futuro. De outro lado, ela é um instrumento necessário para a realização das finalidades estatais, pois o exercício da ação e do planejamento estatal pressupõe uma permanência de regras válidas. Não se trata, contudo, de um benefício do Estado, mas de um benefício do particular, para que ele possa controlar a atividade estatal. (ÁVILA, 2012, p. 271).

A partir dessas considerações, verifica-se que a segurança jurídica de que se fala neste estudo não estabelece como fim a ser alcançado um estado de completa vinculação, consistência, certeza e previsibilidade do Direito, ideal que, dada a vagueza inerente ao próprio Direito, seria intangível. O que o princípio preconiza é, simplesmente, a aplicação racional e razoável do Direito. (ÁVILA, 2012, p. 283-284). É com base nessa perspectiva que analisaremos a atuação do Supremo Tribunal Federal no caso da Súmula Vinculante n. 3.

2.2. Finalidades da súmula vinculante: segurança jurídica e efetividade

A adoção do sistema da súmula vinculante é justificada, basicamente, por argumentos relacionados a dois objetivos: aumentar a celeridade da prestação jurisdicional, para que esta seja mais efetiva; e uniformizar a jurisprudência, para que a prestação jurisdicional seja mais previsível (calculável), cognoscível e confiável, trazendo, com isso, maior segurança aos cidadãos.[16]

 No presente estudo, optou-se por dar ênfase à segurança jurídica por dois motivos. O primeiro deles decorre do fato de que, no tocante ao objetivo de aumentar a celeridade processual, a verificação do seu alcance dependeria de dados empíricos cuja obtenção, não só seria muito complicada, como também foge ao escopo desta pesquisa. Conforme ressalta Barbosa Moreira, para chegarmos a uma conclusão segura acerca da repercussão da súmula vinculante na duração dos processos, seria necessário estabelecer uma comparação entre o período anterior a sua introdução no nosso ordenamento jurídico e período posterior a ela. Sem essa análise, qualquer afirmação categórica sobre o possível ganho de celeridade proporcionado pela súmula vinculante, está sujeita à crítica de ser “um argumento empírico sem base empírica”. (BARBOSA MOREIRA, 2007, P. 308).[17]

   O segundo motivo está relacionado ao conceito de segurança jurídica adotado neste trabalho. Na acepção ampla aqui empregada, a realização da segurança jurídica pressupõe também a efetividade da prestação jurisdicional. Isso porque, como já mencionado, a calculabilidade (um dos estados ideias parciais da segurança jurídica), determina que o cidadão tenha a capacidade de prever, com grande aproximação, não só as reduzidas consequências alternativamente aplicáveis aos seus atos, como também o espectro de tempo dentro do qual a consequência alternativa será definida, pois, conforme explica Ávila, a perpetuação do estado de indefinição impossibilita o cidadão de planejar seu futuro com segurança (ÁVILA, 2012, p. 629-630).

Assim, para que o Direito seja confiável e calculável, não basta que o cidadão tenha direito à prestação jurisdicional por parte do Estado, nem que ele possa prever, em certa medida, o resultado da prestação jurisdicional. É preciso também que esse resultado seja tempestivo, sob pena de perder a própria utilidade e, com isso, comprometer a credibilidade do Direito.  

Nesse ponto, cabe ressaltar que alguns doutrinadores apontam uma oposição entre as garantias constitucionais que visão a efetividade da jurisdição e àquelas que visão a segurança do procedimento de interpretação e aplicação do Direito[18]. Nesse sentido, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira divide em dois grupos os direitos fundamentais originários de as normas jurídicas processuais: um dos direitos pertinentes aos valores da efetividade e o outro dos direitos pertinentes aos valores da segurança jurídica. (OLIVEIRA, 2004, p. 5).

No primeiro grupo despontaria, fundamentalmente, a garantia de acesso à jurisdição (Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988), a qual pressupõe não apenas a abertura da porta do judiciário, mas também a prestação da jurisdição, tanto quanto possível, de forma eficiente, efetiva e justa, mediante um processo sem dilações ou formalismos exagerados. Do lado da eficiência, estariam também os direitos atrelados ao fator tempo, dentro do que está inserida a exigência de uma razoável duração do processo (Art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988). (OLIVEIRA, 2004, p. 5-6).

No segundo grupo, ter-se-iam as normas relacionadas à segurança jurídica, que deriva da própria noção do Estado Democrático de Direito, na medida em que salvaguarda a supremacia da Constituição e os direitos fundamentais, garantindo o cidadão contra o arbítrio estatal. Nesse contexto, estaria o devido processo legal (Art. 5.º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988), a proibição de juízos de exceção e o princípio do juiz natural (Art. 5.º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal de 1988), a igualdade (Art. 5.º, caput, da Constituição Federal de 1988), o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (Art. 5.º, LV, Constituição Federal de 1988), a proibição das provas obtidas por meios ilícitos (Art. 5.º, LVI, da Constituição Federal de 1988) e o dever de fundamentação das decisões (Art. 94, IX, da Constituição Federal de 1988). (OLIVEIRA, 2004, p. 6).

Esses grupos retratam, segundo Oliveira, um conflito dialético entre duas exigências contrapostas, mas igualmente dignas de proteção, asseguradas constitucionalmente: de um lado, a aspiração de um rito munido de um sistema possivelmente amplo e articulado de garantias “formais” e, de outro, o desejo de dispor de um mecanismo processual eficiente e funcional. Para o autor, esse conflito deve ser resolvido por meio da ponderação desses dois valores fundamentais (efetividade e segurança jurídica), a ser realizado no caso concreto, com vistas ao alcance de um processo tendencialmente justo. (OLIVEIRA, 2004, p. 6).

  Olhando para essas colocações a partir do conceito de segurança jurídica adotado no presente estudo, observa-se que o conflito apontado, embora exista, não se trata, propriamente, de um conflito entre a segurança jurídica, em sentido amplo, e a efetividade. O que se tem, ocasionalmente, é uma tensão, a ser verificada no caso concreto, entre algum dos elementos de algum dos ideais que compõe a segurança jurídica.

   Para melhor ilustrar esse raciocínio, imaginemos, por exemplo, um processo no qual há muitos sujeitos envolvidos, de modo que a realização da intimação de todos eles a cada ato processual demandaria muito tempo e terminaria por comprometer a celeridade do procedimento. Nessa situação, haveria um conflito entre a razoável duração do processo (que demanda um processo eficiente), e a garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (cujo exercício exige um lapso temporal razoável para a tramitação do processo dentro de todas as “formalidades” necessárias para se alcançar um resultado seguro e justo).

   Contudo, dentro da perspectiva de segurança jurídica aqui proposta, o que se tem nesse caso não é um conflito entre a segurança jurídica e a efetividade, mas uma tensão interna, dentro da própria segurança jurídica. De um lado, tem-se a exigência de que o direito seja aplicado em um prazo razoável, com vistas à realização de um estado ideal calculabilidade, no qual o cidadão tenha a capacidade de prever, com grande aproximação, não só as reduzidas consequências alternativamente aplicáveis aos seus atos, como também o espectro de tempo dentro do qual a consequência alternativa será definida, pois, conforme explica Ávila, a perpetuação do estado de indefinição impossibilita o cidadão de planejar seu futuro com segurança (ÁVILA, 2012, p. 629-630).

Do outro, tem-se a exigência de que o cidadão seja intimado a respeito de atos ou de procedimentos administrativos ou judiciais, como vistas à realização, no plano individual e procedimental, dos estados ideais de confiabilidade, cognoscibilidade e calculabilidade da manifestação judicial ou administrativa do Direito, pois, não havendo intimação, o interessado é surpreendido por decisões ou atos que restringem os seus direitos, não podendo contra aqueles autonomamente reagir (ÁVILA, 2012, p. 309).[19]

 Em outras palavras, o que se quer dizer é que a efetividade não se opõe a segurança jurídica; pelo contrário, faz parte dela, pois, para que o direito seja seguro e, portanto, confiável, calculável e cognoscível, é preciso que ele seja efetivo. É por isso que, ao tratar da segurança jurídica e das condições para a sua realização, Ávila fala não só da razoável duração do processo, como dos meios necessários para que o cidadão possa garantir a efetividade dos seus direitos, dentre os quais aborda o devido processo legal, a inafastabilidade da jurisdição e os respectivos corolários (ÁVILA, 2012, p. 587-595 e 629-631)[20].

Também não é por outro motivo que Heleno Torres, corroborando a ideia aqui defendida de que a efetividade não é algo externo à segurança jurídica, incluiu em sua obra sobre a segurança jurídica um tópico específico para tratar da coisa julgada e da razoável duração do processo, no qual afirma que esta última é uma garantia constitucional à segurança jurídica quanto à duração do processo (TORRES, 2012, p. 392-394)[21].

2.3 A súmula vinculante e o Stare decisis

De modo genérico, a principal distinção entre o nosso sistema, do Civil Law, e o Common Law está na fonte do direito. Enquanto para o nosso sistema romano-germânico a lei é a fonte primeira, para o Common Law a jurisprudência situa-se no mais alto nível das fontes jurídicas. (PORTO, p. 16). É por isso que as discussões sobre a súmula vinculante, seja para elogia-la, seja para criticá-la, normalmente envolvem alguma referência ao sistema jurídico do Common Law e à figura do stare decisis (sistema de precedentes vinculantes do Common Law, desenvolvida originalmente na Inglaterra).

Sérgio Porto, por exemplo, em comentário a proposta de criação da súmula vinculante, afirmou que, ainda que de maneira criticável, isso representaria uma verdadeira “pitada de commonlawlização” no direito nacional, por instituir algo similar ao propósito do stare decisis (PORTO, p. 20).

Existem, é verdade, significativas diferenças entre a nossa súmula vinculante e o sistema de precedentes vinculantes adotado nos países de tradição do Common Law.[22] Contudo, a despeito das inegáveis diferenças, acredita-se que algumas técnicas e conceitos de aplicação e afastamento de precedentes empregados no Common Law podem ser úteis ao sistema da súmula vinculante. Todavia, como adverte Evaristo Aragão Santos, não devemos simplesmente importar uma teoria do precedente formada para a realidade do Common Law, pois é preciso levar em consideração todas as peculiaridades do nosso sistema (SANTOS, 2012, p. 137).[23]

Conforme leciona Sérgio Porto, a doutrina norte-americana elenca uma série de motivos para a utilização do precedente vinculante, dentre os quais se ressaltam cinco: a) decidindo as demandas, os juízes devem dirimir questões de direito e o Direito deve dar a mesma resposta para as mesmas questões legais; para que isso ocorra por meio do sistema judicial, as cortes devem respeitar as resoluções hierarquicamente superiores; trata-se, portanto, nas palavras do autor, “do prestígio ao valor segurança jurídica”; b) uma justiça imparcial e previsível pressupõe que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia; c) se fosse de outra forma o planejamento nas demandas iniciais seria de difícil concepção; d) o stare decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, o que incrementa a credibilidade do poder judiciário junto à sociedade; e) além de servir para unificar o direito, o precedente vinculante serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facilitando o planejamento dos particulares, em face de um padrão de comportamento judicial preestabelecido (PORTO, p. 9).

  Observa-se, portanto, que todas as justificativas para a vinculação ao precedente no sistema do Common Law estão, direta ou indiretamente, relacionadas à ideia de segurança jurídica, a qual é inerente à própria existência do Direito (WAMBIER, 2000, p. 5). Seja por meio da codificação, seja por meio do stare decisis, ambos os sistemas buscam, ao fim, criar um mecanismos que traga maior segurança no processo de criação, interpretação e aplicação do Direito, para que os cidadãos possam desfrutar do presente e planejar seu futuro com tranquilidade e responsabilidade.

 Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni afirma que a segurança e a previsibilidade são valores almejados pelos dois sistemas, Civil Law e Common Law. A diferença é que, no primeiro, imaginou-se que tais valores seriam alcançados por meio da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes. Já no segundo, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de proporcionar a segurança e a previsibilidade que a sociedade necessita para se desenvolver. (MARINONI, 2010, p. 63).

Ressalta-se que, a despeito do papel mais relevante assumido pelo precedente na formação do Direito no Common Law, não se deve pensar que a necessidade de repeito ao precedente é algo exclusivo daquele sistema. Trata-e de uma necessidade dos dois sistemas, pois, como afirma Luiz Guilherme Marinoni, a garantia de previsibilidade das decisões judiciais é algo que diz respeito não só ao Common Law como também ao Civil Law. Tanto as decisões que afirmam direitos independentemente da lei quanto as decisões que interpretam a lei devem gerar previsibilidade aos jurisdicionados, “sendo completamente absurdo supor que a decisão judicial que se vale da lei pode variar livremente de sentido sem gerar insegurança”.  (MARINONI, 2012, p. 565)[24].

  Fábio Monnerat, a partir dos ensinamentos de Mancuso, ressalta o papel da jurisprudência uniformizada, em especial dos enunciados sumulados, nos países da família do Civil Law: ela opera como uma segura diretriz para o judiciário na subsunção dos fatos ao direito, pois sinaliza a interpretação predominante em casos análogos; contribui para uma ordem jurídica justa, ou isonômica, pois casos semelhantes recebem respostas uniformes; e complementa a formação da convicção do magistrado, atuando como fator de atualização do Direito Positivo e como elemento moderador entre o fato e a “fria letra da lei”. (MONNERAT, 2012, p. 345).

A grande diferença é que, no Civil Law, nós temos com o precedente uma relação ontologicamente distinta daquela desenvolvida no Common Law. Uma dessas distinções é que, em regra, nosso precedente tem natureza eminentemente interpretativa (interpretação da lei aplicada); Já no Common Law, embora o precedente interpretativo também deva ser seguido, admite-se que ele seja fonte criadora de direito em caráter ex novo. (SANTOS, 2012, p. 137).

2.4 Técnicas de aplicação e afastamento de precedentes do Common Law

Dentre as técnicas de aplicação e afastamento de precedentes utilizadas no Common Law, quatro conceitos se destacam, os quais podem nos servir de inspiração para solucionar algumas questões relativas ao manejo da súmula vinculante: ratio decidendi (holding), obter dictum, overrruling e distinguish[25].

Conforme lecionam Streck e Abboud, no Common Law, cada precedente tem uma ratio decidendi, a qual, tradicionalmente, configura o enunciado jurídico a partir do qual é decidido o caso concreto, que vincula os casos futuros. Todavia ela não é uma regra jurídica que pode ser considerada por si só, ela deve, obrigatoriamente, ser analisada em correspondência com a questão fático-jurídica (caso concreto) que ela solucionou. A importância de saber qual é a ratio decidendi contribui para se evitar decisões arbitrarias. (STRECK e ABBOUD, 2013, p. 43-44).

 Já a obter dictum representa a argumentação utilizada pela Corte dispensável à decisão, que, por não terem sido fundamentais para o deslinde da questão, não vinculam os casos futuros. Trata-se, portanto, de enunciado, interpretação, argumentação ou fragmento de argumentação jurídica expressos na decisão judicial cujo conteúdo e presença são irrelevantes para a solução final da demanda (STRECK e ABBOUD, 2013, p. 43).[26]

A partir desses conceitos, a doutrina do stare decisis funda-se na seleção de quais precedentes são similares o suficiente para confrontar o caso com as considerações de mérito da cadeia de precedentes; e na identificação e articulação dos elementos contidos nos precedentes, com vistas a identificar a ratio decidendi contida nos casos anteriores que pode ser utilizada para solucionar o caso e examinar as circunstancias que, uma vez presentes permitem que o juiz se afaste da aplicação do precedente, por meio da utilização do distinguishing. (STRECK e ABBOUD, 2013, p. 46).

O overruling e o distinguishing são técnicas de afastamento do precedente utilizadas no Common Law. No primeiro caso, o precedente é afastado e declarado superado, por força de modificações políticas, jurídicas ou sociais, entre o período de sua formação e sua aplicação. No segundo caso, a regra jurídica do precedente continua sendo válida, mas seu sentido se torna menos abrangente. (MONNERAT, 2012, 424-425).

Na aplicação do distinghishing o tribunal diz que, pela literalidade, o precedente se aplicaria ao caso, mas, em razão de alguma peculiaridade do caso novo que não estava presente no caso anterior, a regra deve ser reformulada para se adaptar as circunstâncias. Trata-se de uma diferenciação em relação aos casos nos quais se aplicou a regra do precedente. (MONNERAT, 2012, 424-426).

   Em ambas as situações (overruling ou distinghishing), o juiz precisa motivar sua decisão com argumentos convincentes quando não segue um precedente, conduta que, por ser tratada com estranheza, deve ser bem fundamentada, não podendo decorrer de preferências pessoais dos julgadores. (WAMBIER, 2012, p. 39-40).

   Apresentados brevemente esses conceitos sobre a aplicação e o afastamento de precedentes do Common Law, resta agora investigarmos os requisitos para a aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante.

2.5 Pressupostos para aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante

A eficácia vinculante prevista no texto da Constituição, tal como resultou da Emenda Constitucional n. 45 de 2004, está rigorosamente limitada às hipotestes previstas no Art. 103-A e subordinada ao concurso, que o STF não pode dispensar, dos pressupostos ali enumerados. A inclusão de qualquer proposição sem observância de tais limites e pressupostos violará a Constituição, conforme ressalta Barbosa Moreira (2005, p. 304).

O Art. 130-A, caput e § 1º, da Constituição Federal de 1988, estabelece que:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Da leitura dos dispositivos acima, é possível extrair os seguintes requisitos para a aprovação de uma súmula vinculante: a) haver voto favorável de dois terços dos membros do Tribunal; b) existirem reiteradas decisões sobre o assunto; c) tratar-se de matéria constitucional; d) ter por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas; e) haver controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública; f) a divergência acarretar grave insegurança jurídica e multiplicação de processos sobre questão idêntica.

 Com relação à exigência de reiteradas decisões sobre o assunto, esta decorre da necessidade de amadurecimento do entendimento antes da edição do enunciado com efeitos vinculante. Não deverá ser no primeiro contato com a matéria que o STF deverá editar uma súmula vinculante. O pressuposto é de que existam reiteradas decisões no mesmo sentido sobre a questão constitucional controvertida (NUNES, 2010, p. 160).[27]

 Conforme observa Daniel Ustárroz, da leitura do texto constitucional, verifica-se que deve haver debates sérios antes da atribuição de eficácia geral a qualquer enunciado, pois são requisitos: tanto a controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública quanto a reiteração de decisões sobre matéria constitucional. É indispensável, portanto, o cotejo de reiterados casos análogos com a maturidade alcançada pela análise de variados pontos de vista. (USTÁRROZ, p. 15-16).[28]

   A controvérsia a que se refere o texto constitucional não deve ser interna ao Tribunal. Como afirma Eduardo Parente, o precedente vinculante bom é o que nasce com a nitidez de que veio para ficar (ainda que possa ser alterado depois), que é fruto do posicionamento totalmente dominante do tribunal (preferencialmente unânime) e em cujo processo de elaboração e aprovação não houve vacilação ou dúvida séria entre os julgadores. (PARENTE, 2006, p. 61).

  James Martins enumera quatro critérios lógico-jurídicos que devem ser observados para assegurar a validade constitucional dos enunciados gerais elaborados pelos tribunais superiores. O primeiro é o de que haja um debate jurisprudencial quantitativa e geograficamente representativo. A atividade pretoriana sobre determinada matéria deve ser suficientemente numerosa para permitir que tenha debatido acórdãos de tribunais a quo de todo o país, de modo que a produção jurisprudencial dos tribunais de todas as regiões geográficas seja objeto de exame e debate suficientes para justificar qualquer enunciação que assuma caráter geral e abstrato. (MARTINS, 2011, p. 196).

O segundo critério é de que o debate jurídico seja qualitativamente completo, ou seja, deve-se poder concluir com segurança que os diversos argumentos doutrinários e jurisprudenciais foram considerados adequadamente, refutados ou acatados expressamente nos acórdãos que formam os paradigmas do enunciado sumular. (MARTINS, 2011, p. 197).

   O terceiro critério é o de que o debate jurisprudencial seja temporalmente maduro. Os enunciados gerais somente podem ser adotados se seu conteúdo estiver suficientemente sedimentado no tempo, ou seja, consolidado por meio de sucessivas apreciações pelo mesmo tribunal, em lapso de tempo adequado para o amadurecimento da posição pretoriana que se pretende enunciar com caráter geral. Nesse sentido, o tempo é elemento da segurança jurídica, especialmente quando se tratam de decisões que deverão amparar súmula com efeito vinculante. O debate jurisprudencial imaturo, utilizado como fundamento para prescrições enunciativas gerais, desafia o princípio da razoabilidade do tempo no processo, invadindo o campo da inconstitucionalidade. (MARTINS, 2011, p. 197).

  Jorge Amaury Nunes, ao discorrer sobre súmula vinculante e segurança jurídica, também ressalta que a formação de enunciados com efeitos vinculantes deve passar por um processo de maturação perante o STF, pois, do contrário, estará aquela Corte fazendo mau uso do instrumento jurídico colocado ao seu dispor pelo constituinte. (NUNES, 2010, p. 156)

Por fim, o quarto critério apontado por Martins é o da adequação prescritiva do enunciado. Significa que enunciado geral deve representar a síntese exata do conteúdo analítico e prescricional dos precedentes. Deve guardar estrita pertinência com o decidido. Além disso, a interpretação do enunciado geral com efeito vinculante, diferentemente da interpretação das normas jurídicas em geral, deve estar vinculada ao teor e ao sentido dos acórdãos ou das peças processuais que o suportam. (MARTINS, 2011, p. 197).

  Esse último critério, envolve um requisito relativo à elaboração do texto do enunciado e outro reletivo à sua aplicação e afastamento na apreciação de casos posteriores. Quanto à elaboração do texto, cabe ressaltar que, além de guardar estrita pertinência com o que foi decidido, o verbete, passando a ter efeito vinculante, deve ser elaborado com muito mais critérios e de forma a não gerar, na medida do possível, problemas interpretativos mais complexos do que gerados pela própria lei. (WAMBIER, 2000, p. 6).[29]

   No que diz respeito à interpretação do enunciado, cabe mencionar os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni. Este, na mesma linha de James Martins, defende que as súmulas não devem ser vistas como normas gerais e abstratas, compreendidas como se fossem autônomas em relação aos fatos e valores envolvidos nos precedentes que as inspiraram. Para o autor, ao considerarmos os fundamentos e valores que basearam os precedentes, seria possível ao juiz realizar o distinguishing, tomando em conta situação não prevista quando da promulgação dos precedentes da edição da súmula. (MARINONI, 2010, p. 482)

Marinoni, partindo da premissa de que a súmula vinculante é a inscrição de um enunciado a partir da ratio decidendi de precedentes que versaram uma mesma questão constitucional, considera indesculpável pensar em adotá-la, revisá-la ou cancelá-la como se fosse um enunciado geral e abstrato, ou mesmo tentar entendê-la levando em consideração apenas as ementas ou a parte dispositiva dos acórdãos que lhe deram origem. A ratio decidendi nada mais é do que o fundamento determinante ou o motivo essencial da decisão. Ora, se a elaboração da súmula vinculante depende da adequada percepção dos fundamentos determinantes do precedente, é evidente a impossibilidade de aplicá-la, revisá-la ou cancelá-la sem considerar os fundamentos determinantes dos precedentes que deram origem à sua edição. (MARINONI, 2010, p. 489-490).[30]

   Ainda quanto à aplicação da súmula vinculante, entende-se que ela não deve se dar de forma automática e mecânica, sendo necessário cuidado na verificação da identidade entre o caso que está sendo apreciado e os precedentes que motivaram a edição da súmula. Inexiste, portanto, autorização constitucional para a aplicação mecânica de enunciados, exigindo-se reflexão séria quanto à sua correspondência com o caso concreto. (USTÁRROZ, p. 13).

  Por fim, cabe ainda registrar que o afastamento da súmula vinculante, por meio de decisões que impliquem na revisão ou superação do entendimento nela consubstanciado, não pode ser apenas em decorrência de posições pessoais ou mudança de opinião dos julgadores. Tais decisões precisam ser fundamentadas em alterações jurídicas e/ou sociais consideráveis, ou mesmo em pontos jurídicos extremamente importantes não abordados na elaboração dos precedentes que motivaram a edição do enunciado com efeitos vinculantes, pois a sua alteração não pode ser trivial, sob pena de causar incerteza maior que a própria ausência do precedente. (PARENTE, 2006, p. 61). Além disso, é necessário que elas sejam devidamente motivadas, indicando os critérios que levaram ao afastamento da súmula, seja por que a sua orientação ficou ultrapassada, seja porque se está diante de novos critérios. (OLIVEIRA, 2012, p. 719).

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Sobre a autora
Ana Paula Sampaio Silva Pereira

Mestranda em Direito pelo UniCeub. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Faculdade Projeção. Graduada em Direito pelo Instituto de Educação Superior de Brasília. Ex-Analista do Tribunal Superior do Trabalho. Auditora Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ana Paula Sampaio Silva. Súmula vinculante e segurança jurídica.: Uma análise do caso da Súmula Vinculante nº 3. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4070, 23 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29319. Acesso em: 18 mar. 2024.

Mais informações

Texto elaborado a partir das leituras da disciplina "O Precedente e o Direito Jurisprudencial", do programa de Mestrado em Direito do Uniceub, ministrada pelo Prof. Dr. Jefferson Carús Guedes no segundo semestre de 2013.

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