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Globalização, neoliberalismo e o Direito no Brasil: a jurisprudência dos tribunais superiores em matéria urbanístico-ambiental

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Examina-se a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros em matéria urbanístico-ambiental, especificamente nos casos de concessão de alvará para postos de combustíveis, à luz da globalização, do neoliberalismo, da livre iniciativa e da livre concorrência.

A globalização pode ser vista como um conjunto de processos que modificaram a forma espacial de organização humana para padrões transcontinentais e inter-regionais de atividade, de interação e de exercício de poder. Ela se configurou como um fenômeno multidimensional que envolve os domínios de atividades e de interação que incluem as esferas econômica, política, tecnológica, militar, legal, cultural e ambiental, com diferentes modelos de relacionamento. Tal fenômeno denota a escala crescente, a magnitude progressiva, a aceleração e o aprofundamento do impacto dos fluxos e dos padrões inter-regionais de interação social. Ela se refere a uma mudança ou transformação na escala de organização social que liga comunidades distantes e amplia o alcance das relações de poder nas grandes regiões e continentes do mundo. Dentre as principais transformações, cabem citar aquelas que envolvem os processos econômicos globais. O crescimento do comércio, da produção e das transações financeiras e o fortalecimento das corporações multinacionais podem ter profundos efeitos nas políticas macroeconômicas, o que muitas vezes faz com que a autonomia dos governos democraticamente eleitos seja limitada pelo poder econômico não-eleito e não-representativo (HELD & MCGREW, 2000).  

Simultaneamente, na década de 1980, a crise da dívida e a recessão evidenciaram a profunda instabilidade do modelo econômico, a qual levou a uma desaceleração das taxas de crescimento econômico, aliada à elevação das taxas de inflação, desemprego em massa, miséria e profundas desigualdades socioeconômicas. Novos líderes conservadores criticaram o keynesianismo e o papel excessivo do Estado na economia e citaram como evidência o fracasso econômico de Estados tradicionalmente intervencionistas. Criticaram-se as políticas de substituição das importações e o intervencionismo do Estado. O neoliberalismo constituiu-se como o suporte político-ideológico das mudanças efetivadas nas relações entre Estado e sociedade, em resposta à crise econômica. A necessidade de assegurar a prevalência das decisões de mercado conduziu a um minimalismo estatal, de forma a desarticular as formas de resistência às exigências do capital privado. Embalado pelo fenômeno da globalização da economia, o neoliberalismo trouxe a transnacionalização dos mercados; a desregulamentação das instâncias decisórias dos conflitos; a interpenetração de interesses privados e interesses públicos; a proliferação de espaços sociojurídicos autônomos; e a flexibilização dos direitos sociais (HELD & MCGREW, 2000).

Conceitos desenvolvidos por teóricos de orientação liberal e neoliberal como “livre iniciativa” e “livre concorrência” se disseminaram ao redor do planeta e foram inclusive internalizadas no direito de uma série de Estados. No caso brasileiro, por exemplo, o Artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, dispõe o seguinte, in verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, (grifo nosso) tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV – livre concorrência” (grifo nosso).

Os objetivos deste artigo são explicar as influências da globalização e do neoliberalismo na incorporação, no Direito brasileiro – mais especificamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 –, dos conceitos de livre iniciativa e de livre concorrência. A partir dessa investigação, pretendemos examinar a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros em matéria urbanístico-ambiental, especificamente nos casos de concessão de alvará para instalação e funcionamento de postos de combustíveis entre 2000 e 2010. Sustentamos que, em face da disseminação universal da ideia de que a atividade econômica deve ser realizada em regime de livre concorrência num contexto de avanço da globalização, o Estado reconhece a responsabilidade de incentivar o livre mercado, ao passo em que também deve se colocar como agente normativo e regulador, exercendo as funções de fiscalização deste mercado. Apontamos que os tribunais superiores brasileiros – neste caso, o STF – prezam pela supremacia do interesse público nas suas decisões, deixando o interesse privado em segundo plano, apesar de a própria Constituição garantir a proteção a este interesse com base nos conceitos liberais e neoliberais nela incorporados. Na próxima seção, examinaremos as influências da globalização e do neoliberalismo na incorporação dos conceitos de livre iniciativa e de livre concorrência no Direito brasileiro, mais especificamente na Constituição brasileira de 1988. Antes de tecermos as considerações finais, examinaremos a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros em matéria urbanístico-ambiental nos casos de concessão de alvará para instalação e funcionamento de postos de combustíveis entre 2000 e 2010.


A livre iniciativa e a livre concorrência no Direito brasileiro

Na perspectiva de John Maynard Keynes, o Estado era concebido como agente indispensável de controle da economia, com objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego. Keynes defendeu uma política econômica de Estado intervencionista, por meio da qual os governos usariam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos, como recessão, depressão e booms. O autor atribuiu ao Estado o direito e o dever de conceder benefícios sociais que garantam à população um padrão mínimo de vida, como a criação do salário mínimo, do seguro-desemprego, da redução da jornada de trabalho e a assistência médica gratuita. O “Estado de Bem Estar Social" contrapunha-se ao Estado Neoliberal, teorizado de forma intensa por Milton Friedman. Tal autor argumenta que a liberdade econômica constitui requisito essencial da liberdade política e permite aos indivíduos cooperarem sem coerção ou direção centralizada, reduzindo a área sobre a qual é exercido o poder político. O livre mercado – que realiza a liberdade dos indivíduos na economia - proporciona um contrapeso a qualquer concentração do poder político que porventura venha a surgir e que fica concentrado na mão de poucos que poderão abusar dele. O livre mercado dispersa o poder econômico e diminui as disputas sociais e políticas, pois cada um pode se expressar sem a necessidade de uma conformidade coletiva. Além disso, ele pode favorecer a democracia, na medida em que as pessoas poderão agir de acordo com suas vontades individuais e escolher sem a coerção de um agente superior. O predomínio de mercado estimularia o aumento da qualidade dos bens produzidos pelas empresas, já que, sem a proteção do Estado, a disputa entre elas é realizada de forma direta, com o objetivo de atingir o consumidor. As privatizações são essenciais, pois as empresas estatais são ineficientes e os lucros não compensam as despesas para a sua manutenção (DELLAGNEZZE, s.d.).

Como aponta Leme (2010), os princípios fundamentais do Estado de Bem Estar Social eram seguridade social; a ampliação das oportunidades de emprego e renda - garantia do pleno emprego -; e a ampliação das políticas sociais redistributivas e compensatórias para minimizar as desigualdades sociais. A "cidadania social" se expressaria nos direitos adquiridos e corresponderia a um padrão social mínimo que o Estado Moderno deveria assegurar aos seus cidadãos. Porém, os autores monetaristas defenderam o retorno do livre mercado dentro de um sistema de liberdades naturais,  retomando muitas das concepções da economia política de Adam Smith. Segundo esses autores, o Estado agiria como árbitro e não jogador, uma vez em que as regras do jogo não poderiam ficar sob tutela dos indivíduos no livre mercado num contexto de trocas cada vez mais multilaterais e transnacionalizadas. Segundo Friedman, cabe ao governo proteger a sociedade da violência ou de possibilidades de invasão de outras sociedades independentes; garantir a coesão interna, e realizar e conservar algumas obras públicas que, sendo essenciais para a garantia de uma melhoria na qualidade de vida da população, não seriam atrativos de investimentos diretos. A liberdade era vista por tais autores como uma característica inerente e essencial que deveria ser garantida a todos os indivíduos, e o mercado era concebido como o espaço natural pelas quais as liberdades individuais ocorreriam e tenderiam ao equilíbrio (LEME, 2010).

Diante da percepção da ineficiência do Estado em gerir a economia de mercado, o neoliberalismo se consolidou como uma reação teórica e política ao Estado intervencionista e de Bem-Estar, em particular com a chegada ao poder de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos EUA.  Essa perspectiva defende o afastamento do Estado do controle da economia, o que permitiria maior facilidade na circulação de capital e maior liberdade para o setor privado com a menor intervenção do Estado. A participação do Estado na economia se daria a partir da execução de políticas econômicas que garantam estabilidade do sistema econômico e permitam a defesa do livre mercado, da livre concorrência e das liberdades individuais. Caberia aos governos garantir a lei comum e equilibrar e incentivar iniciativas da sociedade (DOUDEMENT, s.d.).

Desde o fim da década de 1980, o gigantismo do Estado brasileiro começou a diminuir o seu tamanho, baseado numa orientação neoliberal. A influência do neoliberalismo pôde ser observada tanto na Constituição como nas leis infraconstitucionais. A partir da inserção do Brasil no Consenso de Washington, o Estado, para legislar, precisa estar atento ao mundo para identificar o que realmente pode regular. Uma vez que o Estado não pode mais controlar de forma efetiva todos os setores que antes dominava, os meios jurídicos tradicionais tendem a perder sua eficácia regulativa, o que faz com que a sociedade busque meios alternativos para a solução de seus conflitos. Concomitantemente, é possível observar a expansão das normas privadas, com o empresariado lançando mão de novas regras e criando outras para regulamentar seus conflitos (DOUDEMENT, s.d.).

Entretanto, a própria Constituição brasileira ressalta, em seu Artigo 3º, que, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estão a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nesse sentido, fica claro que a razão da existência de um Estado é proporcionar ao seu povo os objetivos fundamentais indicados acima. A conquista de tais objetivos, entretanto, somente se torna possível quando há recursos suficientes para atender as necessidades de cada setor da sociedade. Segundo a Constituição de 1988, a atividade econômica deve ser realizada em regime de livre concorrência. Com o livre mercado, a atividade econômica deve ser exercida pelas empresas e instituições financeiras privadas. O Artigo 173 da Constituição limita, mas permite que Estado atue na economia também como agente econômico, por intermédio de suas empresas públicas e sociedades de economia mista, para atender aos interesses coletivos ou da segurança nacional. Ademais, pelo Artigo 174, o Estado pode atuar na economia como agente regulador e fiscalizador da atividade econômica. Nesse sentido, é possível dizer que o Estado brasileiro combinou elementos de Estado de Bem Estar Social e de Estado Neoliberal: o Estado tem a responsabilidade de ser o agente normativo e regulador, exercendo as funções de fiscalização; todavia, ele também incentiva o livre mercado (DELLAGNEZZE, s.d.).


O interesse público e o interesse privado

Em relação à concessão de alvará para estabelecimento e funcionamento de postos de gasolina, deve-se observar que há um choque de interesses entre os donos de tais estabelecimentos e o Município. De um lado, os empresários defendem que, pelo que estatui a Constituição de 1988, deve prevalecer a liberdade de concorrência, até porque o Brasil é um Estado Democrático de Direito, que adotou como paradigma o neoliberalismo. Assim sendo, não pode o Município deixar de autorizar a instalação dos postos de gasolina, pois estaria ferindo dispositivo constitucional, ou seja, a livre concorrência imperante no Estado Neoliberal. Nesse sentido, destacam-se os seguintes dispositivos constitucionais, a saber: arts. 1º, inciso IV; 5º, inciso XIII; e 170, inciso IV. O art. 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, estatui que a República Federativa do Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito, fundada nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nesse sentido, os empresários não poderiam ser impedidos de exercer sua atividade econômica. Em tese, não podem ter sua liberdade de iniciativa tolhida. Já o art. 5º, inciso XIII, da Carta Magna propugna a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício e profissão, conforme estabelecer a lei, ou seja, mais uma garantia a favor de tal atividade ser exercida pelo alvará de concessão. Por fim, o art. 170, inciso IV, da Carta Política aponta que este dispositivo reafirma a livre concorrência, estabelecendo que a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, assegurando a todos uma existência digna. Mais uma vez, a Constituição de 1988 garante os direitos dos empresários.

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Por outro lado, deve-se ressaltar o interesse público relevante apontado pelo Município no sentido de coibir essa expedição de alvará. Trata-se de interesse pautado na segurança da população, advindo, por exemplo, dos riscos de explosões que podem surgir com a instalação e funcionamento de postos de combustíveis, pois consiste em atividade geradora desses riscos. Também se deve apontar a questão ambiental, vale dizer, os riscos de danos ao meio ambiente provenientes dessa atividade, como, por exemplo, a contaminação de lençóis freáticos, com a instalação dos tanques-reservatórios de combustíveis no subsolo.

Para fundamentar o argumento da prevalência do interesse público, podem-se verificar algumas decisões do TJ/MG acerca do assunto nesse sentido. Na apelação cível nº 1.0000.00.341475-2/000, proveniente da Comarca de Frutal/MG, a Corte Mineira confirmou a sentença de primeiro grau, que negou o alvará de licença para instalação do posto de combustíveis na medida em que o deferimento da licença não era obrigatório, porém sua recusa foi ditada pelo interesse público. No Agravo nº 000.262.295-9/00, da Comarca de Cataguases/MG, o Tribunal de Justiça de MG decidiu a lide baseado no argumento de que a empresa de combustíveis não está preocupada, nesse recurso apresentado, com qualquer agressão que venha a sofrer o patrimônio urbanístico municipal, somente levando em consideração o princípio da livre iniciativa que a beneficia. Nessa mesma linha de raciocínio, também as seguintes decisões do TG/MG: Apelação Cível nº 000.204.836-1/00, da Comarca de Belo Horizonte; Apelação Cível nº 1.0000.00.184978-5/000, da Comarca de Belo Horizonte; Apelação Cível nº 000.186.385-1/00, da Comarca de Belo Horizonte; e Apelação Cível nº 000.135.307-7/00, da Comarca de Belo Horizonte. Em todos esses julgados, discute-se, em última instância, a questão do interesse público e sua supremacia para decidir acerca da concessão de instalação e funcionamento de postos de gasolina.

A Lei Municipal impor limite de distância entre os postos de combustíveis, é uma questão de segurança para a população, dentro dos limites do poder de polícia administrativa. E uma questão de lançamento de poluição no meio ambiente, pois o funcionamento normal de um posto de gasolina implica poluição aérea ou, no caso de lavagem de veículos, o vazamento de águas usadas nas vias públicas. O meio ambiente é agredido com o funcionamento dos postos de gasolina e a proximidade deles induz maior agressão. Nem a Constituição de 1988 nem outras leis infraconstitucionais ferem Lei Municipal que limita a distância mínima entre os postos de gasolina, pois cabe ao Município, no exercício regular de seu poder de polícia administrativa, controlar as construções, eis que as mesmas possuem ligação direta com a segurança, a saúde, o sossego e o conforto dos cidadãos. Assim, não se trata de uma questão de cercear a livre iniciativa ou a liberdade de concorrência, mas de uma questão de segurança, interesse público, que se sobrepõe ao particular obviamente, garantindo a manutenção da ordem pública.

Nesse sentido, devem-se sopesar ambos os argumentos para decidir numa esfera mais ampla. Os tribunais superiores decidem na totalidade dos casos no sentido de dar prevalência ao interesse público em detrimento da liberdade de concorrência. Isso porque acima da letra da lei, inclusive das normas constitucionais positivadas, há os princípios de Ordem Pública, o interesse público relevante, que devem prevalecer na equação livre iniciativa-interesse público relevante. Em outros termos, na exegese da Carta Magna, devem ser levados em conta os princípios norteadores do Direito, no sentido de melhor interpretar e aplicar as normas jurídicas positivadas. Por isso, os tribunais decidem a favor do Município. Em tais decisões, prevalece o interesse público em detrimento da liberdade econômica. Analisando a jurisprudência do STF entre os anos de 2000 e 2010, podemos destacar duas decisões que versam sobre deferimento ou indeferimento de pedido de licença de localização para instalação e funcionamento de postos de gasolina no Município de Belo Horizonte. O cerne da discussão dessas decisões da Corte Constitucional consiste em determinar se, ao não conferir ao particular alvará de construção do posto de combustível, estar-se-ia intervindo na liberdade econômica garantida constitucionalmente aos cidadãos brasileiros.

Na verdade, o argumento do Supremo Tribunal Federal baseia-se no fato de que, para “garantir a segurança da população, evitando-se a concentração de estabelecimentos nos quais são comercializados produtos de risco”, não se tem a intenção de intervir na atividade econômica de terceiros (STF, Informativo nº 334, 15 a 19 de dezembro de 2003, Recurso Extraordinário, nº 204.187/MG, Relatora Ministra Ellen Gracie, julgado em 16/12/2003)

Reza o art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, in verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Iniciemos nossa análise das decisões do STF pelo Recurso Extraordinário nº 235.736-7, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, pela Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga em face do Município de Belo Horizonte. Segue ementa:

Ementa: Administrativo. Município de Belo Horizonte. Pedido de Licença de Instalação de Posto de Revenda de Combustíveis. Superveniência de lei (Lei nº 6.978/95, art. 4º, § 1º) exigindo distância mínima de duzentos metros de estabelecimentos como escolas, igrejas e supermercados. Alegada ofensa aos arts. 1º, IV; 5º, XIII e XXXVI; 170, IV e V; 173, § 4º e 182 da Constituição Federal. (STF, Recurso Extraordinário nº 235.736-7, Relator Ministro Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 21/03/2000, publicado no DJ em 26/05/2000)

Destaca-se primeiramente que os incisos XXII e XXIII, do art. 5º, da Constituição Federal, não foram prequestionados. Ademais, o requerimento de licença de instalação do posto de revenda de combustíveis gerou mera expectativa de direito,

insuscetível – segundo a orientação assentada na jurisprudência do STF -, de impedir a incidência das novas exigências instituídas por lei superveniente, inspiradas não no propósito de estabelecer reserva de mercado, como sustentado, mas na necessidade de ordenação física e social da ocupação do solo no perímetro urbano e de controle de seu uso em atividade geradora de risco, atribuição que se insere na legítima competência constitucional da Municipalidade. (STF, Recurso Extraordinário nº 235.736-7, Relator Ministro Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 21/03/2000, publicado no DJ em 26/05/2000)

No relatório, o Ministro Ilmar Galvão afirma que se trata de um Recurso Extraordinário interposto para impugnar decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, fundamentando-se no art. 102, inciso III, alíneas a e c, da Constituição de 1988. A Corte Mineira reconheceu a validade das normas relativas à construção de postos de gasolina constantes da Lei Municipal nº 6.978/95, de Belo Horizonte, negando a existência de direito adquirido à expedição de alvará de construção de posto de combustíveis conforme pleiteado pela recorrente. Ressalta o Ministro que a decisão recorrida negou a existência de tal direito adquirido embora tenha cumprido as exigências da lei que vigorava à época do requerimento, a saber, Lei nº 2.390/74, do Município de Belo Horizonte.

A recorrente, por sua vez, advogou que a Lei nº 6.978/95 violava os seguintes dispositivos constitucionais: arts. 1º, inciso IV; 5º, incisos XIII, XXII, XXIII e XXXVI; 170, incisos IV e V; 173, parágrafo 4º; e 182, quando impunha uma distância mínima entre postos de gasolina e entre estes e outros estabelecimentos como colégios, igrejas e supermercados. A empresa autora do recurso sustentou que a decisão recorrida, quando da negativa da existência de direito adquirido à obtenção de licença de construção, viola o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição de 1988, ainda que tenha cumprido todas as exigências solicitadas pela lei que vigorava ao tempo de seu requerimento.

O Município de Belo Horizonte, em sede de contrarrazões, sustentou que a Lei nº 6.978/95, ao impor limitações à construção de postos de gasolina, estabelecia uma disciplina, dentro do previsto no art. 30, incisos I e VIII, da Constituição Federal de 1988, a atividades que colocam em risco a saúde, a segurança, o meio ambiente e o tráfego, além de afetar os interesses da coletividade. Ademais, o recorrido também sustenta que a recorrente tinha mera expectativa de direito em ter sua solicitação deferida, à luz da Lei nº 2.390/74, o que não se confirmou com o advento da Lei nº 6.978/95.

O Procurador-Geral da República, Vicente Paulo Saraiva, em seu parecer, opinou pelo não-conhecimento do presente recurso, apesar de o mesmo ter sido devidamente processado e admitido na origem. Em seguida, o Relator proferiu seu voto, constatando, da análise dos autos, que a ofensa ao art. 5°, incisos XXII e XXIII, da Constituição, não foi prequestionada, afastando-se a possibilidade de exame. Na verdade, o julgado recorrido restou impugnado com fulcro nos arts. 1°, inciso IV; 5°, incisos XIII, XXII, XXIII e XXXVI; 170, incisos IV e V; 173, parágrafo 4°; e 182, da Constituição Federal.

O entendimento do acórdão atacado de não reconhecer, ante o advento da Lei 6.978/95, direito adquirido à recorrente à construção do posto de combustíveis, mesmo tendo cumprido as exigências estabelecidas pela Lei 2.390/74, que vigorava quando do requerimento de concessão do alvará, não pode ser visto como contrário ao art. 5º, inciso XXXVI, da Carta Magna. A recorrente, ao encaminhar seu requerimento à Prefeitura de Belo Horizonte, tinha mera expectativa de direito, que não é resguardada pela garantia constitucional. (STF, Recurso Extraordinário nº 235.736-7, Relator Ministro Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 21/03/2000, publicado no DJ em 26/05/2000)

O Ministro Ilmar Galvão ressalta ainda que a lei superveniente entrou em vigor no curso do processo de pedido de alvará para construção, revelando que a recorrente nesse momento não tinha a faculdade de construir, ou seja, não tinha licença para construção, vale dizer, é descabido “falar em imunidade à incidência das regras supervenientes”. (BRASIL, 2000, p. 553-554) No mesmo diapasão, há os seguintes precedentes, entre outros: Recurso Extraordinário n° 118.226, Relator Ministro Célio Borja, Diário de Justiça de 13/10/1989; e mais recentemente, Recurso Extraordinário n° 212.780, cujo relator foi o Ministro Ilmar Galvão, publicado no Diário de Justiça de 25/06/1999.           O requerimento administrativo da recorrente foi indeferido pois o local em que se pretendia construir o posto de gasolina estava situado a menos de duzentos metros de uma igreja e de uma supermercado e não por existir nessas imediações outro estabelecimento com mesma natureza (STF, Recurso Extraordinário nº 235.736-7, Relator Ministro Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 21/03/2000, publicado no DJ em 26/05/2000). Cabe ressaltar que a Lei n° 6.978/95, em seu art. 4°, parágrafo 1°, inciso I, prevê que é defeso instalação de postos de combustíveis que estejam localizados a menos de duzentos metros de escolas, quarteis, creches, asilos, igrejas, hospitais, residências e casas de saúde, supermercados, etc. O alvará de construção foi negado com fulcro nesses dispositivos legais.

A norma supracitada ordena física e socialmente a ocupação do solo urbano no Município de Belo Horizonte, conforme rezam os arts. 30, inciso I e VIII, e 182, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; [...] VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. (grifo nosso)

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (grifo nosso)

Esse ordenamento físico e social tem por finalidade controlar o uso do solo na comercialização de combustíveis, atividade que gera riscos à população, vale dizer, atividade que deve ser balizada pelo interesse público relevante no sentido de impedir sua execução se houver riscos às pessoas que vivem no Município. Portanto, não resta caracterizado ofensa ao disposto na Constituição, nos artigos supracitados, uma vez que as limitações impostas têm o objetivo de garantir a segurança em locais de grande afluência de pessoas e não estabelecer reservas de mercado, como aponta a recorrente (BRASIL, 2000, p. 554).

Assim sendo, o Relator não conheceu do Recurso Extraordinário em seu voto. Por fim, votou o Ministro Sepúlveda Pertence. Ele inicia seu voto salientando que, segundo o exposto pelo Ministro Relator, caiu por terra o argumento que defende a liberdade de concorrência para que o posto de gasolina seja autorizado a funcionar, sendo concedido o alvará de construção. Salienta também que pareceu ser este caso semelhante aos julgados relativos à autorização para funcionamento de farmácias, em que se discutiu a possibilidade de se autorizar a construção de tais estabelecimentos sem considerar uma distancia mínima entre as mesmas. Nesse sentido, Recurso Extraordinário n 199.517, julgado em 04-06-1998, publicado no Diário de Justiça de 13-11-1998, Recurso Extraordinário n 203.909, julgado pela Primeira Turma, Relator Ministro Ilmar Galvão, em 04-08-1998. No caso em tela, dos postos de combustíveis, havia um dispositivo legal, cuja constitucionalidade não foi contestada, pelo que supõe o Ministro Pertence, “reclamando distanciamento entre os postos de gasolina e outros tipos de estabelecimento comercial ou templo religioso, supostamente, por motivos de segurança” (BRASIL, 2000, p. 556). Nesse diapasão, acompanhou o Relator. A decisão da Primeira Turma, portanto, foi no sentido de não conhecer do Recurso Extraordinário, por unanimidade. Julgado em 21 de março de 2000.

Continuemos nossa análise das decisões do STF pelo Recurso Extraordinário nº 204.187-4, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, pela Central Pneus LTDA, em face do Município de Belo Horizonte. Segue ementa:

Postos de gasolina. Atividade de alto risco que justifica o prudente distanciamento, na mesma área geográfica, de estabelecimentos congêneres. Inexistência de inconstitucionalidade do art. 3º, letra b, da Lei 2.390, de 16.12.74, do Município de Belo Horizonte (MG). RE conhecido, mas improvido. (STF, Recurso Extraordinário nº 204.187-4, Relatora Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 16/12/2003, publicado no DJ em 02/04/2004)

No relatório, a Ministra Ellen Gracie ressalta que se trata de um Recurso Extraordinário interposto contra decisão oriunda do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, a qual indeferiu mandado de segurança impetrado por um posto de gasolina, empresa cuja atividade consiste na distribuição e comércio de petróleo e derivados. Tal empresa se insurgira contra decisão administrativa que indeferiu seu alvará de localização para funcionamento, por desrespeitar o exigido no art. 3º, letra b, da Lei nº 2.390/74, do Município de Belo Horizonte, cujo conteúdo disciplina a construção e o funcionamento de posto de gasolina, estabelecendo que deve haver uma distância mínima de 800 metros de raio entre este estabelecimento comercial e outros congêneres (BRASIL, 2003, p.819).

A empresa recorrente argumenta, com fulcro no art. 102, inciso III, alíneas a e c, da Carta Federal, que o acórdão recorrido teria ferido os arts. 5º, inciso XIII, e 170, inciso IV, ambos da Constituição Federal, além de ter julgado válida a lei municipal de Belo Horizonte, contestada frente à Carta Política. O Recurso Extraordinário foi conhecido e no STF o Subprocurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, opinou pelo seu desprovimento. Ademais, no seu voto, a relatora ressalta a fundamentação do acórdão recorrido, a saber:

“No caso específico dos postos de gasolina, é evidente o interesse que deriva da segurança que é necessário prevenir, impedindo sua concentração, ou, em outras palavras, exigindo certo distanciamento, dos que vierem a ser instalados em relação aos já existentes, fixado em oitocentos metros, no art. 3º, letra “b” da citada lei” (fl. 162)

“Também não se pode crer que aquele dispositivo signifique intervenção no Município em atividade econômica, pois não há proibição de instalação de postos de gasolina, não se tolhe a iniciativa privada de instalá-los, apenas se regulamenta a sua localização, por interesses presumidamente públicos.” (fls. 162)

(STF, Recurso Extraordinário nº 204.187-4, Relatora Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 16/12/2003, publicado no DJ em 02/04/2004)

Deve-se entender o real motivo de a lei municipal estar limitando a autorização de instalação de postos de gasolina no perímetro urbano. Na verdade, o Município pode, segundo a Ministra Ellen Gracie, relatora, evitar a concentração de postos de combustíveis uma vez que a comercialização de etanol e derivados de petróleo é uma atividade geradora de riscos por serem substâncias altamente inflamáveis. Essa medida de evitar a concentração de postos de combustíveis tem por objetivo garantir a segurança em locais de grande circulação de transeuntes, o que não significa porém estabelecer reservas de mercado, conforme aponta a empresa recorrente.

Nesse sentido, a lei municipal em tela também contém comando que estabelece uma distância mínima entre os postos de gasolina e escolas, quartéis, asilos, hospitais e casas de saúde (Lei nº 2.390, art. 3º, alínea c). Nessa situação, a Corte Constitucional já decidiu oportunamente, no julgamento do RE nº235.736, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, no sentido de afastar a alegação de ofensa ao principio da livre concorrência, constitucionalmente garantido.

Conforme voto da Ministra Relatora, não pretende o Supremo Tribunal Federal cercear o direito à livre concorrência, constitucionalmente garantido até porque vivemos em um Estado Democrático de Direito, em um Estado Liberal, em que a liberdade econômica deve prevalecer. O que baliza essa decisão da Corte Constitucional é a supremacia do interesse público, sendo que a Douta Ministra Ellen Gracie decidiu no sentido de limitar geograficamente a instalação de postos de combustíveis, não no sentido de cercear a liberdade econômica dos empresários. Trata-se de determinar um “prudente distanciamento, na mesma área geográfica, de atividades de alto risco à população”. (BRASIL, 2003, p. 820)

Ainda em seu voto, a Ministra Relatora aponta que o legislador municipal excluiu das limitações previstas na lei em questão as empresas que contam com a participação ou têm interesses das três esferas governamentais (federal, estadual e municipal). Trata-se do art. 8º da Lei nº 2.390. No entanto, tal falha legislativa não pode justificar a exclusão das limitações, até porque lei posterior (Lei nº 6.978/95) não reproduziu o disposto no referido art. 8º. Essa lei posterior “atualizou a disciplina da construção e funcionamento de postos de abastecimento de combustíveis e lubrificantes, mantendo o distanciamento entre empresas congêneres, [...] A falha foi reparada”. (BRASIL, 2003, p. 821). Assim sendo, a Ministra conheceu do recurso, contudo negou-lhe provimento.

Por sua vez o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, ressalta que este caso tem surgido de vez em quando em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, especialmente com relação a farmácias, no tema da liberdade constitucional de concorrência. A Corte, nesses casos, tem julgado no sentido de rechaçar a possibilidade de o legislador estabelecer esses critérios de admitir que a livre concorrência se sobreponha ao interesse público.

Afirma em seu voto o Ministro que esse assunto tem sido frequentemente discutido em sede de direito comparado. Na Alemanha, “há o famoso caso do ‘Apothekenurteil’, relativos às farmácias”. (BRASIL, 2003, p. 822) O legislador da Baviera, no referido caso, determinou que novas farmácias só poderiam ter autorização para se instalarem e funcionarem se houvesse autorização administrativa para tal. Contudo, nessa situação, o Supremo Tribunal Federal concluiu, após uma longa pesquisa, que essa exigência de autorização administrativa é incompatível com a liberdade de profissão. Tendo tecido as considerações supracitadas, o Ministro acompanhou a Relatora em seu voto. A decisão, portanto, da Segunda Turma foi, por votação unânime, de conhecer deste Recurso Extraordinário, negando-lhe provimento, nos termos do voto da Senhora Ministra Relatora Ellen Gracie em 16 de dezembro de 2003.

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Sobre os autores
Diego Santos Vieira de Jesus

Professor da Graduação e da Pós-Graduação lato sensu em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI / PUC-Rio) e da Graduação em Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM-RJ)

Henrique de Oliveira Santos

Professor de Direito Administrativo no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Diego Santos Vieira ; SANTOS, Henrique Oliveira. Globalização, neoliberalismo e o Direito no Brasil: a jurisprudência dos tribunais superiores em matéria urbanístico-ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4093, 15 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29520. Acesso em: 18 abr. 2024.

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