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A resistência ao papel proativo do Poder Judiciário e algumas considerações contextuais sobre o princípio da separação dos poderes

18/08/2014 às 16:16
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O vetusto princípio da Separação dos Poderes, idealizado por Montesquieu no século XVIII, está produzindo, com sua grande força simbólica, um efeito paralisante às reivindicações de cunho social.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo intenta aferir alguns dos motivos das emergentes objeções à função proativa do Poder Judiciário, as quais se lastreiam na dogmática atinente ao princípio da separação dos poderes.


2 DESENVOLVIMENTO

Se é inevitável e inconteste a ascendência do Judiciário nas tarefas sociais, políticas e institucionais do país, convém frisar algumas críticas expendidas a esse novo papel que desponta, na medida em que o reconhecimento das potencialidades de tal Poder para o atendimento dos reclamos do Estado Social, do que decorre a necessidade de se afastar a concepção liberal-individualista obstinada em compreendê-lo tão somente como máximo garantidor dos direitos adquiridos, real instrumento de obediência aos ditames da lei e ao rígido regramento de controle social e de  pacificação de conflitos, tem sido objeto de muitas contestações.

De fato, setores conservadores e mantenedores do status quo continuam não admitindo a tarefa atuante, participativa e transformadora do Judiciário em face da enorme gama de complexos litígios que afloram no seio social, impondo uma resistência claramente intencionada a extirpar-lhe sua função estatal de efetivar direitos que, conquanto proclamados, não alcançam satisfação, como se ele somente se vinculasse a seu papel de legislador negativo, “esperando que lhe seja submetida à análise uma norma positivada a fim de decidir sobre sua constitucionalidade, ou seja, traduz um modelo centrado na lei e não na defesa de direitos” (ESTEVES, 2007, p.69).

Essa concepção, tão infiltrada na cultura jurídica brasileira, limita a atuação do Judiciário sob orientações que proíbem o juiz de aferir axiologicamente a lei e somente o legitimam a agir para reconstruir uma realidade que leve à subsunção de um fato a uma norma, sempre em conflitos particularizados, com a prevalência da garantia de direitos do indivíduo, o que culmina por contribuir para a manutenção da ordem jurídico-social estabelecida, sem atender, todavia, aos clamores de uma sociedade que se encontra sob a égide de um Estado democrático de direito, cuja função prospectiva, antes de se limitar a estabilizar as relações sociais e políticas vigentes, almeja transformações e progresso, tudo isso consubstanciado na dignidade da pessoa humana, fim e fundamento da Carta da República.

Compreensão, todavia, anacrônica, apegada à forma e ao passado e refratária aos influxos hodiernos, consignados, em suma, nas mudanças institucionais valorizadoras do alvissareiro papel construtivo que o Judiciário tem sido compelido a assumir. Função essa proveniente das próprias exigências do sistema, tendo em vista a incapacidade funcional dos poderes convencionalmente denominados “representativos” da República – Executivo e Legislativo – e da própria sociedade de desatar as controvérsias socialmente existentes.

Outro norte, portanto, deve ser buscado, de sorte a conceber nossa Justiça mais como meio de direção e promoção social, de correção de desigualdades e consecução de equilíbrio nas relações socioeconômicas que como instrumento tecnicista de garantia de certeza e segurança de direitos já tão historicamente assegurados em nossos ordenamentos. Buscar-se-á, nesse sentido:

[...] a transformação do juiz um legislador ativo e criativo, consciente de que a justiça não pode ser reduzida a uma dimensão exclusivamente técnica, devendo ser concebida como instrumento para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa [...] Capaz de identificar e esclarecer o significado político das profissões jurídicas, possibilitando-lhes assim um distanciamento crítico e uma clara consciência das inúmeras implicações de suas funções em sociedades fortemente marcadas pelo crescente descompasso entre a igualdade jurídico-formal e as desigualdades socioeconômicas (FARIA, 1989, p. 96-97).

No que se refere ao dogma da separação de poderes, sempre invocado com o condão de amainar as potencialidades desse papel destacado do Judiciário, impõe-se absorver que o esquema da distribuição de funções estatais, tal como concebido por Montesquieu, na prática, jamais subsistiu. Com efeito, sempre houve penetração entre as funções das três esferas de poder, as quais, como se sabe, exercem, cada uma, tarefas preponderantes, mas não exclusivas, cometendo, todas, funções legislativas, administrativas e judiciárias.

Isso demonstra que todos os órgãos estatais exercem função política, refutando-se os argumentos de que ao Judiciário compete uma função meramente jurisdicional, passiva ou de autocontenção. Inexiste separação de poderes estanque que possa referendar o discurso defensor da manutenção de um modelo organizacional de Estado que não se compatibiliza com as necessidades enfrentadas hoje pelos magistrados, os quais, vertiginosamente, têm recebido apelos a substancializar, no plano fático, os direitos fundamentais constitucionais. Nessa linha:

O princípio parte da identificação das principais funções a serem desempenhadas pelo Estado, para a consecução de seus fins, o que, à evidência, está sujeito a toda sorte de condicionamentos históricos, não se podendo, por exemplo, impugnar a cientificidade do modelo concebido por Montesquieu, no século XVIII, tendo em vista a implantação de um Estado democrático-liberal, com os olhos voltados para o welfare state de nossos dias [...] não pode ser compreendido sem a indispensável imbricação com um determinado sistema constitucional, que lhe confere características peculiares, de modo a torná-lo único em sua concreta encarnação naquele arquétipo [...] Ademais, se em um Estado que se ocupe, primordialmente, da contenção do poder a rígida distribuição de funções, com hipóteses restritas de interpenetração de competências, se afigura satisfatória, no contexto de um Estado que combine a proteção da liberdade com a construção da igualdade, o rateio funcional há que assumir contornos profundamente diversos, compatíveis com a necessária eficiência na atuação estatal, admitindo-se, sem pudores, o compartilhamento de atividades e o exercício de múltiplas funções por um mesmo órgão (RAMOS, 2010, p. 112-114) (grifos do autor).

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O argumento central das posições contrárias ao ativismo judicial tem sido, portanto, a ofensa ao princípio da separação dos poderes, cujo enaltecimento em excesso, contudo, implica considerar tal princípio um fim em si mesmo, sobrevalorizando-lhe o teor histórico-acadêmico em detrimento do escopo primordial de criação das funções repartidas: a garantia da liberdade do indivíduo e a otimização do desempenho das tarefas estatais. A respeito, diz Krell (2002, p. 85)

Torna-se cada vez mais evidente que o vetusto princípio da Separação dos Poderes, idealizado por Montesquieu no século XVIII, está produzindo, com sua grande força simbólica, um efeito paralisante às reivindicações de cunho social e precisa ser submetido a uma nova leitura, para poder continuar servindo ao seu escopo original de garantir Direitos Fundamentais contra o arbítrio e, hoje também, a omissão estatal.

É preciso concluir, nesse momento de neoconstitucionalismo, em que avultam a principiologia, a busca por realizar o direito posto e o caráter prospectivo da Constituição, que a doutrina da separação de poderes, tal como germinada no século passado, não tem irretocável serventia em sua concepção original, sendo necessário conformá-la à estruturação do Estado Moderno, dinâmico e multifuncional. Assim, é possível dizer que

[...] o princípio da separação de poderes, tão caro aos liberais, necessita de um processo de transformação, já que o Estado contemporâneo não aceita mais a rigidez da separação de poderes, até porque essa separação rígida só “fortalece” os poderes (órgãos), deixando de lado o indivíduo – ator principal de um texto constitucional democrático (...) O princípio da separação de poderes é, antes de tudo, mecanismo de repartição de funções, de tal forma que cada um dos poderes, a seu turno, especialize-se em sua matéria, e segundo instrumento de contenção de poderes, permitindo-se, pois, que um fiscalize o outro. O princípio da separação de poderes vale unicamente por técnica distributiva de funções, e não em termos de incomunicabilidade, antes sim de íntima cooperação, harmonia e equilíbrio, sem nenhuma linha que marque separação absoluta ou intransponível (PEDRA, 2008, p.62-63).        

Nessa linha, diante de um quadro de alargamento das tarefas do Estado, resultado da evolução vertiginosa das cadeias econômicas, sociais e tecnológicas que desenham a contemporaneidade, exigindo, em contraposto, a necessidade de regulamento de condutas e de circunstâncias inéditas e em constante transformação e de imposição de uma agenda prospectiva inclinada a converter em realidade os enunciados do texto constitucional, é desarrazoado desprezar a relevância de um poder destinado a manter o equilíbrio do jogo democrático, engendrar programas positivos no seio social, concretizar promessas aparentemente inalcançáveis e servir de contrapeso às injunções eventualmente violentadoras do Estado de Direito.


3 CONCLUSÃO

Em cena o Poder Judiciário, ganha consistência a necessidade de coadunar o clássico modelo da separação dos poderes à realidade vigente, pois já não se trata primordialmente de limitar poderes ou frear abusos, mas, sim, de realizar as tarefas almejadas pela Constituição Federal, que impõe a força vinculante de seus preceitos e a superioridade de seus princípios.

 Inadmissível, portanto, o argumento da violação ao princípio quando, com efeito, a própria Lei Maior, conhecedora das vicissitudes dos demais poderes da República e dos interesses socialmente desejáveis de seu tempo, deposita, no Poder Judiciário, as esperanças de sua própria efetivação, buscando vislumbrá-lo como o arquiteto social da força viva brasileira e o guardião da fundamentalidade dos preceitos constitucionalmente albergados.


4 REFERENCIAL TEÓRICO

ESTEVES, JOÃO LUIZ M. Direitos fundamentais sociais no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Método, 2007.

FARIA, José Eduardo (org.). Direito e Justiça: a função social do Judiciário. Sâo Paulo: Ática, 1989

KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: S.A. Fabris Editor, 2002.

PEDRA, Anderson Sant’ Ana. A constitucionalização do direito e o controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. In: Agra, Walber de Moura et al (org.). Constitucionalismo: os desafios no terceiro milênio. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Sobre o autor
Lucas Sales da Costa

Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lucas Sales. A resistência ao papel proativo do Poder Judiciário e algumas considerações contextuais sobre o princípio da separação dos poderes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4065, 18 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29596. Acesso em: 16 abr. 2024.

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