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A lei do jeitinho brasileiro

09/08/2014 às 12:07
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O “jeitinho”, a pechincha, a lábia, a ginga, as manobras políticas e os “favores” são a porta de entrada da corrupção.

“A cabeça do brasileiro”, lançado em 2007 pelo sociólogo e cientista político Alberto Carlos Almeida, é, tomando as palavras do próprio autor, “um teste quantitativo da antropologia de Roberto DaMatta”. A obra nos revela que pessoas de escolaridade baixa têm menos propensão a expressar os valores democráticos e igualitários, enquanto que “Pessoas mais educadas tendem a se afastar da autoridade superior e rejeitar as relações sociais verticais, em benefício de relações de poder mais horizontais” Seu trabalho e suas conclusões se realizaram através da aplicação de 2.363 entrevistas feitas nas cinco regiões do país, cujos questionários foram confeccionados a partir da teoria antropológica de DaMatta. Os temas investigados na pesquisa e apresentados nos 11 capítulos do seu livro variam entre racismo, jeitinho, hierarquia, relações parentais, sexualidade, a presença do Estado, o público e a lei na sociedade brasileira. Entre outras observações, concluiu que quanto menor o grau de instrução dos entrevistados, maior o índice de aprovação da quebra das regras sociais patrocinadas pelo “jeitinho brasileiro”. “Entre esta população de baixa escolaridade, há também uma tendência em mostrar-se tolerante com a corrupção”, afirma o autor. O ponto que gerou polêmica em seu trabalho se dá pelo fato de que sua pesquisa retira o véu religioso, que no Brasil encobre o discurso acerca da pobreza e dos menos instruídos. Tradicionalmente, o governo e a Igreja sempre se encarregaram de “cuidar” dos pobres e dos analfabetos. Sobre eles, historicamente foi depositada, uma película de comiseração ideológica acerca de qualquer crítica que por acaso se pudesse fazer aos pobres ou iletrados. Outro aspecto impactante da pesquisa é a revelação de que a escolaridade baixa é a causa principal dos problemas brasileiros, num país (a observação não é do autor) onde o seu presidente se orgulhava em 2009 de não ter precisado de diploma para chegar à presidência. Para o autor, “É a educação que comanda a mentalidade”. A pesquisa mostra que a população de baixa escolaridade tende a aprovar mais a censura e a intervenção do Estado, entre outras coisas. Por exemplo, 17% da população aprovam o nepotismo nos cargos públicos. Também tem um índice maior de aprovação no que se refere ao tão famoso “jeitinho brasileiro”. As práticas sociais da população se agravam mais ainda, porque o “jeitinho”, da pechincha, da lábia, da ginga, das manobras políticas e dos “favores”, acaba sendo ele, a porta de entrada da corrupção. Mas, tragicamente, a pesquisa revela que, “o favor ainda é concebido pela população como algo legítimo na esfera pública”. Basta o leitor ouvir dos nossos políticos o número de vezes que estes se utilizam da palavra “negociação” quando deveriam se referir à palavra “discussão”. É sabido que o favor e o jeitinho sempre foram as práticas políticas mais convencionais da nossa história passada. Porém, daquela sala de visitas, a política brasileira passou definitivamente para o âmbito seguinte: o espaço das negociações. Lugar onde se fazem negócios. Transformaram a política em compras e vendas de votos, projetos e medidas provisórias. Vimos esta passagem com o escândalo e posterior condenação em 2013, dos “mensaleiros”. Sequer as pessoas se dão conta do significado trágico de que o jeitinho brasileiro, forma amável e carinhosa da identidade nacional é a porta de entrada para a corrupção. Perguntaria ao leitor, esclarecido, se este tipo de política, feita na Casa do Povo entre parentes, amigos e amantes, é, ”jeitinho”, é um favor ou uma forma corrupta de se fazer política? 

A história do jeitinho brasileiro

Em 1946 quando o médico húngaro Peter Kellemen veio morar no Brasil, procurou o consulado geral. O cônsul José de Magalhães e Albuquerque, deliberadamente resolveu colocar em seus documentos que Kellemen era agrônomo e não médico, pois sabia que “as besteiras sem importâncias” (as leis) impediriam o visto caso ele não modificasse a profissão do viajante. Foi assim que ficou oficialmente registrada na obra do próprio Kellemen, “Brasil para principiantes”, a primeira prática  do jeitinho brasileiro como podemos observar nas palavras do autor: “...acabara de falar com dois representantes do povo, onde as leis são reinterpretadas, onde funcionários pequenos ou poderosos criam suas próprias jurisprudências” (Kellemen, 1961; p.11)

O seu registro histórico e oficial, data desta época, porém a sua dicionarização ocorreu somente em 1982, no Novo Dicionário de termos e expressões de Tomé Cabral, publicado em Fortaleza e que incorporou a expressão “dar um jeitinho”, como sinônimo de facilitar algo difícil de ser executado. Em 1983, no Dicionário do Brasil Central, de Ortência Bariane, o termo jeitinho adquire autonomia e aparece isolado do verbo dar. “Pela primeira vez a idéia do jeitinho usado como elemento definidor do Brasil e dos brasileiros, como elemento de identidade social” (Barbosa, 2006; p. 184). No entanto, nos anos 50, os jornais, as rádios, revistas, músicas e a televisão difundiram de forma crescente a expressão. Até esta data, jeito se escrevia com “g”. A partir da modificação para o “j”, o jeito, expressão impessoal e universal, se torna afetiva, relacional e particular quando adquire sua forma diminutiva e carinhosa de “jeitinho”.

O jeitinho, entendido pelos brasileiros, é uma categoria intermediária que se situa entre a honestidade e a marginalidade, pois é justamente este o lugar do malandro, o “profissional do jeitinho”. Nos Estados Unidos, França ou Inglaterra, as fronteiras entre a transgressão da lei e sua obediência são claramente definidas pela população e governantes. No Brasil, existe uma lacuna, uma zona cinzenta entre o que é legal e do que é ilegal. Neste lugar as regras e as leis são relativas, porque podem valer ou não, dependendo de que contexto ela se encontra e, sobretudo “quem” são os atores sociais envolvidos nas negociações deste contexto. Desta brecha que relativiza a lei e as regras é que nasce a difundida expressão popular “Na vida, só não há jeito para a morte” (Barbosa, 2006; p. 47). O jeitinho é o elo entre o proibido e o permitido. Liga o impessoal ao pessoal e torna o que era público em privado. O jeitinho transforma a burocracia, as regras e a impessoalidade da lei, em simpatia, afeto e relações tremendamente personalistas. Diga-se de passagem, por este motivo que brasileiro valoriza tanto seus parentes e amigos, colocando-os sempre acima da lei. É pouco provável que entregássemos à justiça um amigo ou um irmão, por mais que tivessem cometido um crime grave. Brasileiro procura encurtar relações com estranhos. Talvez por isto que em 2010 Lula em visita à África, tenha chamado o ditador e assassino Muamar Gadaffi de “meu amigo”. Mais suspeito ainda foi a sua justificativa, quando indagado pela a imprensa: “não pode haver preconceitos contra ditadores”, afirmou o então carismático presidente. Com muita facilidade elegemos à condição de amigos, pessoas que acabamos de conhecer. Expressões socialmente difundidas, como por exemplo, “tio”,  retratam a intimidade parental com a qual valorizamos tudo que é familiar. Além de outras linguagens metafóricas que retratam nossa efêmera cordialidade: “Querida”, “amiga”, “parceiro”, “simpatia”, “companheiro”, “meu chapa”, “meu irmão”, “mano”, “compadre” ou ainda “amigão”, revelam a intensa necessidade de tornar o impessoal em personalismo e o estranho, em familiar. Em 2009, o medieval Conselho de Ética da Câmara  absolveu o ex corregedor  (aquele que exerce a função de corrigir) da Câmara Federal, Edmar Moreira. Qual era a acusação? Edmar sonegou impostos e se tornou famoso por possuir a réplica de um castelo da idade média, avaliado em 25 milhões de reais. Também se tornou notório pela afirmação que ressalta a importância do “fogo amigo” nas horas de apuro. Disse o nobre corregedor: “Os deputados têm o vício insanável da amizade”. Já em 1923, observações acerca desta forma de fazer política no Brasil eram reveladas nas palavras de Oliveira Vianna: “Pode-se negar tudo, menos um pedido de um amigo”.

Se de um lado, estas metáforas retratam uma sociedade profundamente relacional que se utiliza da simpatia e do jeitinho para conquistar espaços, do outro lado, expressões como “xerife”, “campeão”,”dotô”, “chefia”,“ diretoria” revelam a tremenda hierarquia da sociedade brasileira. Convém reafirmar mais uma vez que o jeitinho brasileiro não é apenas uma prática dos mais desfavorecidos para subir na escada da hierarquia. Tanto quem está embaixo quanto quem se encontra no topo da pirâmide social enxergam o jeitinho brasileiro como um valor nacional. Tributo da nossa esperteza personalista e da capacidade histórica de levar vantagens em tudo.

Na pesquisa de (Almeida, 2007) observa-se que ao apresentar uma dada situação para que os entrevistados respondam se, trata-se de “favor”, “jeitinho” ou “corrupção” o pesquisador conclui que uma grande parcela dos brasileiros não tem a concepção diferencial daquilo que é corrupção e do que é jeitinho. Por exemplo. “Passar uma conversa em um guarda para ele não aplicar uma multa”. Embora 53% tenham respondido “corrupção”, 6% viram neste ato um “favor” e 41% traduziram esta atitude como “jeitinho”. Como vimos anteriormente, há também nuances do jeitinho. Desde o “jeitinho positivo” ou o “bom jeitinho brasileiro”, até o “jeitinho” que em (Almeida, 2007) é sempre negativo. Por exemplo, dar “gorjeta” ao garçom para não esperar na fila do restaurante é um ato de corrupção. No entanto ele não é considerado de todo nocivo, especialmente porque transformamos o dinheiro da propina em “gorjeta”, da mesma forma que concebemos a corrupção como jeitinho para que possamos atestar um álibi para sua prática. Isto nos permitiria dizer que a população utiliza de “técnicas de neutralização” para justificar seus atos. Um mecanismo de defesa que permite ao ladrão pensar que este não furtou um carro, mas que o tomou temporariamente por “empréstimo”. Não seria esta a mesma lógica que norteou representantes do PT elaborarem um ato de repúdio ao presidente do STJ em 2013? Não estariam mergulhados na mesma lógica aqueles que querem que a população acredite que os mensaleiros são presos políticos? 

Afinal o que seria preciso acontecer para que um ato pudesse ser  caracterizado como um comportamento desviante? Como visualizar o jeitinho  com outros olhares? . Para o sociólogo Howard Becker, um ato será considerado desvio apenas se a opinião pública assim o considerar. É necessário uma “acusação pública” que reconheça a ação como ilegítima. Se “todo mundo faz”, as chances de concebermos este fazer como transgressão são mínimas. Mas se a opinião pública mudar a forma de entender o ato, este será transportado para outra categoria de valor. Por esta razão, se alguém pretende desencadear uma campanha ética sobre o jeitinho brasileiro e sobre a corrupção, será necessário antes, convencer um contingente significativo de pessoas, grupos e instituições a mudarem de opinião.  “Deste ponto de vista o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um transgressor... Já que o desvio é, entre outras coisas, uma conseqüência das respostas de outros” (Becker,1977 ;60)

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Considerações finais: Proposta para uma ação coletiva

Gnoato (2007 não publicado) confeccionou uma Pesquisa Dirigida (Minayo, 2000) e entrevistou mil e cinqüenta e nove universitários que responderam ao mesmo questionário da pesquisa de (Almeida,2007). O objetivo do questionário foi avaliar como estudantes universitários de Curitiba faziam a distinção entre o que é favor, o que é jeitinho e o que consideraram como corrupção. Resolvemos repetir o questionário com uma amostra de pessoas com formação superior, porque a conclusão do trabalho de Almeida levou-o a afirmar que quanto maior o grau de instrução das pessoas, maior é o grau de rejeição ao jeitinho. Também concluiu que na região sul do Brasil o jeitinho teria mais rejeição do que nas outras regiões. Isto levou-nos ao seguinte questionamento. Na Curitiba “europeia”, “cidade modelo”, “capital ecológica e social”, no sul do Brasil com uma amostra de estudantes universitários em Ciências Sociais e Humanas,  o jeitinho e a corrupção seriam rejeitados? As respostas dos entrevistadores foram comparadas com as respostas dadas pelos entrevistados da pesquisa nacional feita pelo sociólogo Alberto Carlos Almeida. Uma análise mais apurada sobre as comparações mereceria um capítulo à parte neste trabalho, mas pudemos concluir que as diferenças entre as respostas foram de pouca relevância frente ao que se imaginava obter de uma amostra acadêmica. O grau de instrução pode ser um indicativo de rejeição ao jeitinho, mas quantitativamente inexpressivo. Isto nos permitiria afirmar que o jeitinho brasileiro pertenceria muito mais ao nosso sistema de crenças do que a uma compreensão lógica e intelectualizada de uma razão ética. Estamos inclinados a conceber que  a educação formal  conduziria sim, em parte, à ressignificação da noção do jeitinho brasileiro, mas a nossa tradição histórico-cultural, transmitida pelos laços de afeto e de sangue conduziram com mais eficácia , o nosso irreflexivo cotidiano do que a lógica e a consciência pudesse nos conduzir  a uma razão ética. Isto porque consideramos que a relação que nós brasileiros temos com o jeitinho, até então foi mais vital do que intelectual. Entendemos que a nova juventude, distante das nossas raízes históricas possa abraçar uma causa menos familiar do que a casa, os parentes e os amigos.    

Podemos dar um jeito no jeitinho?

                          A partir destes dados, iniciou-se em 2008 uma campanha crítica e reflexiva sobre o jeitinho brasileiro em três instituições de ensino superior de Curitiba. Durante este ano e o ano seguinte, realizou-se um ciclo de debates no meio acadêmico e a confecção de camisetas com o seguinte apelo: “Se você não é malandro e nem otário vista esta camisa”. Em 2012 com o auxílio de estudantes universitários ampliamos a amostra da pesquisa e ressignificamos o apelo publicitário confeccionando adesivos com uma nova chamada: “Jeitinho é Corrupção”. Aproximamos o jeitinho da corrupção considerando que a prática do jeitinho é a porta de entrada da corrupção (Almeida, 2007; Gnoato, 2007 pesquisa não publicada). Esta proposta foi apresentada no Programa Light News da rádio Transamérica FM 95.1. Sua versão anterior havia sido apresentada em 2007 na TV Educativa e Rádio 91 Rock. FM. Nesta data também organizamos um Fórum de debate sobre o jeitinho brasileiro com a presença do antropólogo Roberto DaMatta e do sociólogo Alberto Carlos Almeida na cidade de Curitiba. Em 2012, o “Jeitinho é Corrupção” foi apresentado à Ordem dos Advogados do Brasil do Paraná e Instituições de Ensino médio e superior através de ciclos de palestras e também presente nas passeatas realizadas em Curitiba. A aprovação da população sobre o adesivo “Jeitinho é Corrupção” foi muito significativa. No entanto, o engajamento prático ou apoio e, sobretudo patrocínio para uma ação mais eficaz foi insignificante. Compreendemos que a partir de 2013, com os jovens indignados que migraram da casa para a rua em protesto, com a condenação dos mensaleiros. Com a dispersão do dinheiro público nos estádios para a Copa do Mundo, as eleições vislumbradas à nossa frente, em 2016; queremos e devemos crer na mudança. Esperamos a vinda de novos  heróis,  antes que o jeitinho venha a fazer parte das 20 mil leis inconstitucionais catalogadas atualmente no Brasil.

Referências

ALMEIDA, A. C. A cabeça do brasileiro. RJ/SP, Record; 2007

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro a arte de ser mais igual do que os outros. RJ,Campus;2006

BECKER, H. Outsiders. RJ, Zahar; 2009

DAMATTA, R  O que faz o brasil, Brasil? RJ, Rocco; 1984

GNOATO, G. A cabeça do curitibano (pesquisa não publicada) Curitiba; 2007

KELLEMEN, P. Brasil para principiantes. RJ, Civilização brasileira; 1961

MINAYO, M.C. O desafio do conhecimento, pesquisa qualitativa em saúde. SP. RJ. Ucitec; 2000

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Sobre o autor
Gilberto Gnoato

Doutorando em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná, Especialista em Antropologia, Especialista em Psicologia Clínica e Especialista em Psicologia Social, Ex-coordenador de Curso de Psicologia na cidade de Curitiba, Ex Diretor do Jornal do Leste- microrregião litorânea do Estado do Paraná, Comentarista do Programa Light News 95.1 FM da Rádio Transamérica de Curitiba, Autor de livros e artigos publicados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GNOATO, Gilberto. A lei do jeitinho brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4056, 9 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29642. Acesso em: 15 nov. 2024.

Mais informações

Publicado originalmente em 26/7/2014 e republicado para atribuição da autoria.

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