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O “efeito Alina Percea”, crowdfunding, mensalão e imposto de transmissão por doação

02/07/2014 às 11:11
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É possível que um projeto de milhares de reais financiado por crowdfunding não oneroso de meta incondicionada esteja sim isento do pagamento de ITD. Mas, para que isso ocorra, é preciso que todas as colaborações, individualmente, estejam na faixa de isenção do tributo.

O título parece um pot-pourri esquizofrênico. Mas não é. Faz sentido. Acredite.


Alina Percea era uma romena que estudava na Alemanha e que – sob a alegação de financiar seus estudos – leiloou sua virgindade na internet por € 10 mil. De tão popular, a iniciativa chegou aos ouvidos do Fisco Alemão, que a autuou pelo não pagamento de tributos. “Prostituição não é ilegal na Alemanha, mas não pagar tributos é”, assim disse o Fisco. A divulgação que fez o negócio de Alina ficar famoso e valioso mundo afora acabou causando um rombo... no seu rendimento. Curiosamente, o motivo de seu sucesso foi o mesmo de sua ruína. No final das contas, estima-se que a moça perdeu, além de sua candura, mais da metade do valor do agrado de seu admirador em tributos[1]. Ela provavelmente não conhecia o crowdfunding.

O crowdfunding (ou financiamento coletivo) consiste na criação de uma estrutura virtual para captação de dinheiro por um período de tempo determinado, de diversas fontes diferentes – o maior número possível, com foco em pessoas físicas – e viabilizar financeiramente um projeto específico[2].

Existem várias formas de crowdfunding. O tipo mais comum atualmente é o oneroso de meta condicionada. “Oneroso (ou retributivo)” porque o colaborador busca uma recompensa ou benefício direto, proporcional ao valor fornecido. E “meta condicionada” porque há a fixação de um valor mínimo para a viabilidade do projeto, que caso não alcançado implicará obrigatoriamente na devolução do valor fornecido ao colaborador.

Mas também merece destaque o crowdfunding não oneroso de meta incondicionada. Nesse tipo, “não oneroso (ou altruísta)” significa que o colaborador pretende apenas ajudar a viabilizar o projeto, sem buscar uma recompensa ou benefício direto. E “meta não condicionada” significa que há a fixação de um valor mínimo para a viabilidade do projeto, mas caso não seja alcançado não há a obrigatoriedade de devolução do valor fornecido ao colaborador. Na prática, não se exige do beneficiário idealizador do projeto qualquer contrapartida, equiparando-se à doação pura do Código Civil[3]. Justamente por isso, esse tipo de financiamento é o dernier cri do cenário político-criminal brasileiro.

Tanto isso é verdade que, atento às novas tendências, um ex-deputado lançou um site para arrecadar fundos e pagar a multa de mais de R$ 660 mil fixada pelo Supremo Tribunal Federal, em decorrência da sentença condenatória proferida no processo do Mensalão. Mesmo sem retribuição ou promessa de devolução do dinheiro caso a meta não fosse alcançada, em aproximadamente dez dias as contribuições superaram a quantia pretendida – e ainda teve um pomposo troco, que pelo visto vai virar caixinha. A iniciativa foi tão bem sucedida que outros co-réus na mesma ação criminal já estão mexendo os pauzinhos para se valer desse milagroso expediente multiplicador. É o Deputado-Esperança! O jingle de autoria de Michael Sullivan e Paulo Massadas para o famoso crowdfunding global vem automaticamente à cabeça: “ter um amigo, na vida é tão bom ter amigo”.

Ora, se o crowdfunding não oneroso de meta incondicionada configura doação, a incidência do Imposto de Transmissão por Doação (“ITD”) é corolário. No juridiquês tributário, “trata-se da subsunção do fato concreto à hipótese legal”. Em termos bem simplórios, o ITD é imposto de competência estadual cujo fato gerador é a transmissão a título gratuito de bens ou direitos de qualquer natureza, a base de cálculo é o valor do bem ou direito transmitido e o contribuinte geralmente[4] é o donatário.

A princípio, o ITD poderia ser considerado um tributo com um grau menor de complexidade. Mas a intrincada estruturação do crowdfunding pode criar um nó górdio para contribuintes e para o Fisco, não apenas por ser um novel instituto, fruto do rápido avanço das relações interpessoais e da tecnologia da informação, mas também pela dificuldade de enquadramento na lei. Se por um lado a incidência do imposto no financiamento coletivo em foco não gera maiores questionamentos; do outro há dúvidas sobre a operacionalização de maneira racional e justa dessa cobrança.

A peculiaridade que mais chama atenção[5] na incidência do ITD sobre esse tipo específico de financiamento coletivo refere-se aos valores e à multiplicidade de pessoas envolvidas. O Fisco geralmente prevê a isenção do imposto para baixos valores, levando em consideração o custo-benefício da movimentação da máquina administrativa para fiscalização e arrecadação. E como a arrecadação para viabilizar o projeto é feita em dinheiro por meio da internet, a identificação dos doadores e dos valores doados em dinheiro – que já é difícil no mundo não virtual – fica ainda mais difícil.

Explica-se melhor. Cada contribuição em dinheiro de baixo valor é considerada uma doação autônoma e não entra na faixa de tributação do ITD, ainda que sejam direcionadas a uma única pessoa. As leis estaduais têm o costume de prever a incidência do ITD sobre valores recebidos acumuladamente por um donatário de um único doador, mas não sobre valores recebidos acumuladamente por um donatário de diversos doadores diferentes, ainda que para um único objetivo.

Em tese, é possível que um projeto de milhares de reais financiado por crowdfunding não oneroso de meta incondicionada esteja sim isento do pagamento de ITD. Mas para que isso ocorra é preciso que todas as colaborações, individualmente, estejam na faixa de isenção do tributo. Da mesma forma, é preciso total e irrestrita transparência no procedimento para afastar quaisquer dúvidas quanto à origem dos recursos utilizados no financiamento coletivo e atestar sua licitude, inclusive perante outros tributos.

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Por mais que a doação seja de fato isenta, precisa-se provar de forma inequívoca que assim o é, por meio de documentos idôneos – “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Caso contrário, o Fisco Estadual poderá fazer o arbitramento da base de cálculo e exigir do beneficiado desse tipo crowdfunding o pagamento do ITD sobre a totalidade do valor não comprovado, como se doação única fosse, com base no artigo 148 do Código Tributário Nacional[6].

Assim como no caso de Aline Percea, o êxito da campanha de arrecadação de fundos por meio de financiamento coletivo para o pagamento de multa imputada ao ex-deputado em decorrência da condenação no processo do Mensalão está diretamente ligado à ampla divulgação na internet. Fato gerador, valor total arrecadado e contribuinte são autodevassados, confessados. E o preço que se paga por isso é despertar e alimentar o afã arrecadador do Erário, que passa a ter a faca e o queijo na mão, reduzindo a quase zero as chances de contestação.

Por isso, para não ter o mesmo triste fim da ex-donzela – com o pagamento de imposto acrescido de juros de mora e multa – e comprovar a licitude da empreitada, o beneficiário desse crowdfunding de fundo político-criminal deverá informar ao Fisco de seu domicílio tributário: (i) a identidade de todos os colaboradores-doadores; (ii) o valor doado por cada um deles; e (iii) o caminho percorrido pelo dinheiro doado, desde o bolso de cada colaborador-doador até o bolso do beneficiário-donatário (ou da aplicação do dinheiro diretamente no objetivo pretendido, caso esses valores não transitem fisicamente em sua conta, eis que o pagamento de dívida por terceiro não interessado presume a doação, de acordo com o artigo 304, parágrafo único, do Código Civil[7]), por meio da apresentação de documentos fiscais e contábeis.

Na Alemanha ou no Brasil, não há como manter a castidade tributária incólume. Se correr o Fisco pega; se ficar o Fisco come! Ainda há tempo para o gross up do ITD e para a denúncia espontânea do artigo 138 do Código Tributário Nacional[8]. A conferir.


Notas

[1] http://www.dailymail.co.uk/news/article-1185928/Teen-auctioned-virginity-8-000-lose-half--prostitutes-Germany-taxed-50-earnings.html

[2] O crowdfunding inicialmente era utilizado com maior frequência por empresas de grande porte para a arrecadação de fundos direcionados a projetos filantrópicos. A questão é que a internet vem popularizando e dando novos contornos a essa prática. O crowdfunding vem sendo cada vez mais utilizado por pessoas físicas e empresas de menor porte para projetos privados. Sobre o atual perfil do crowdfunding brasileiro, recomenda-se a análise do relatório da Catarse em http://pesquisa.catarse.me/

[3] “Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”

[4] Faz-se o destaque do “geralmente” porque diante da inexistência de regra constitucional ou federal definindo o contribuinte do ITD como regra, o Estados têm liberdade para fazê-lo, levando em consideração qualquer das pessoas relacionadas à ocorrência do fato gerador. Como há a diminuição do patrimônio do doador e o acréscimo do donatário, a tendência é escolher este último como contribuinte. De qualquer forma, nas leis em que não é considerado contribuinte o donatário costuma ser considerado responsável tributário, o que na prática não o exime em definitivo do pagamento do tributo.

[5] Existem outras questões interessantes relativas ao crowdfunding e ao ITD que também demandam um estudo mais aprofundado (tais como a incidência do ITD sobre o crowdfunding oneroso de meta condicionada, o momento exato da ocorrência do fato gerador, enquadramento dos colaboradores ou do criador-administrador da estrutura virtual para captação de recursos como responsáveis tributários, entre outras) mas optou-se aqui por restringir o escopo do debate em prol de uma leitura mais dinâmica.

[6] “Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.”

[7] “Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor. Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste.”

[8] “Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.”

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Sobre o autor
Alaim Rodrigues Neto

Advogado, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade Nacional de Direito (UFRJ/FND) e especialista em Direito Tributário, inscrito na OAB/RJ desde 2003.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES NETO, Alaim. O “efeito Alina Percea”, crowdfunding, mensalão e imposto de transmissão por doação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4018, 2 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29893. Acesso em: 18 abr. 2024.

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