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Fundamentos do sistema jurídico romano-germânico.

Origem, atributos e aproximação com o sistema anglo-saxônico

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Examinam-se as origens e fundamentos do regime de civil law, considerando-se sua construção histórica e caracteres primordiais, com ênfase para o primado da lei, o papel da jurisprudência e a tendência à aproximação com o sistema saxônico.

Resumo: Neste estudo, examinam-se as origens e fundamentos do regime de civil law, considerando-se sua construção histórica e caracteres primordiais, com ênfase para o primado da lei, o papel da jurisprudência e do precedente e a recente tendência à aproximação com o sistema anglo-saxônico.

Sumário: 1. Introdução. 2. Construção histórica. 3. Fundamentos. 3.1. A tendência à codificação e o primado da lei. 3.2. O papel da jurisprudência e do precedente. 4. Aproximação entre os sistemas de common law e de civil law. 5. Conclusão


1. Introdução

O sistema jurídico romano-germânico, que, em oposição ao fenômeno tipicamente inglês da common law, é denominado pelos britânicos de civil law, formou-se na Europa continental, a partir do século XIII d.C., e, ainda hoje, conserva essa região como seu principal centro (DAVID, 1972, p. 57). Decorre dos princípios e regras dos antigos direitos romano e canônico, os quais, associados aos costumes dos povos germânicos que definitivamente ocuparam a Europa central após o século V d.C., formaram um conjunto elaborado de normas jurídicas que estão na base dos ordenamentos dos países direta ou indiretamente influenciados pelas nações do continente europeu (LIMA, 2013, p. 79-82). Neste estudo, examinam-se as origens e fundamentos do regime de civil law.


2. Construção histórica

A história do sistema jurídico romanista se desenvolve em três períodos: um, que se inicia com o renascimento dos estudos de direito romano nas universidades, por volta dos séculos XII e XIII d. C.; outro, no qual, durante cerca de cinco séculos, a doutrina tem destaque e chega a exercer grande influência no conteúdo de diferentes direitos nacionais; e um último, iniciado no século XVIII com a Escola do Direito Natural, e que persiste até os dias atuais, em que há o predomínio da legislação como fonte do direito (DAVID, 1972, p. 57).

O Império Romano, fundado por Augusto em 27 a.C., conheceu uma civilização brilhante, cujo gênio legou ao mundo um sistema jurídico nunca antes visto. As invasões de diversos povos bárbaros, em especial os germanos, contudo, levaram à queda do Império Romano do Ocidente no século V d.C. (MELLO; COSTA, 1995, p. 172). 1 Em decorrência, as populações romanizadas e os bárbaros passaram a viver lado a lado, seguindo, uns e outros, as suas próprias leis. Gradualmente, foi-se verificando a miscigenação entre os diversos grupos étnicos e, com a feudalidade crescente, voltaram a vigorar os costumes locais, com perda do valor primitivo conferido à lei (DAVID, 1972, p. 58).

Esse movimento de abstração normativa conduziu a um declínio do direito escrito, que, por sua vez, levou à decadência da própria ideia de Direito durante a Alta Idade Média (séculos V ao XI d.C.). Com efeito, muitos dos costumes vigentes no auge do período medieval contavam com a utilização de ordálios ou “juízos de Deus” (judicium Dei) como critérios para a solução de litígios. Tratava-se de uma espécie de prova judiciária usada para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza, cujo resultado era interpretado como um juízo divino. 2

Tal apelo a um processo místico, de resultado aleatório e potencialmente injusto, associado à inexistência de uma autoridade que garantisse, por meio da força, nas demandas de interesse individual, a execução dos julgados em favor do vencedor, contribuíram para o descrédito da ideia de Direito, ocasionando a resolução de conflitos pela lei do mais forte, pela decisão arbitrária de um chefe ou pelo estímulo à fraternidade e à caridade, estes últimos, ideais profundamente desenvolvidos pela teologia cristã. É o que esclarece René David:

Para que serve conhecer e precisar as regras do direito quando o sucesso duma parte depende de meios tais como o juízo de Deus, o juramento das partes ou dos “conjuradores” (compurgação) ou a prova dos “ordálios”? Para que serve obter um julgamento se nenhuma autoridade, dispondo de força, está obrigada ou preparada para pôr esta força à disposição do vencedor? Nas trevas da Alta Idade Média, a sociedade voltou a um estado mais primitivo. Pode existir ainda um direito: a existência de instituições criadas para afirmar o direito (as rachimburgs francas, as laghman escandinavas, as eôsagari islandesas, as brehons irlandesas, as withan anglo-saxônicas) e até mesmo o simples fato da redação de leis bárbaras tende a convencer-nos disso. Mas o reinado do direito cessou. Entre particulares como entre grupos sociais os litígios são resolvidos pela lei do mais forte ou pela autoridade arbitrária de um chefe. Mais importante que o direito é sem dúvida a arbitragem, que visa menos a conceder a cada um o que lhe pertence, segundo a justiça e como o direito exige, do que manter a solidariedade do grupo, assegurar a coexistência pacífica entre grupos rivais e fazer reinar a paz. O próprio ideal de uma sociedade fundada no direito é abandonado pela maior parte: uma sociedade cristã não deverá antes procurar fundar-se sobre as ideias de fraternidade e de caridade? S. Paulo, na sua primeira epístola aos Coríntios, exalta a caridade em vez da justiça e recomenda aos fiéis que se submetam antes à arbitragem dos seus pastores ou dos seus irmãos em vez de recorrerem aos tribunais. Santo Agostinho defende a mesma tese. No século XVI, também um adágio, na Alemanha, diz Juristem, böse Christen (Juristas, maus cristãos); se se aplica de preferência aos romanistas, o adágio vale para todos os juristas; o próprio direito é coisa má. (DAVID, 1972, p. 59-60)

O afastamento geral da ideia de Direito não coincide, contudo, com um período de total inexistência de legislação. No Império Romano do Oriente, e, em certa medida, na Itália, Justiniano publicou, de 529 a 534 d. C. um conjunto de obras que, no século XVI, veio a ser denominado de Corpus Iuris Civilis (o Código, o Digesto ou Pandectas, as Novelas e as Institutas).3 Os dois primeiros são compilações consolidadas e sistematizadas, respectivamente, das leis e doutrinas romanas, do reinado de Adriano ao de Justiniano; as Novelas registram as normas editadas por Justiniano e seus sucessores diretos, ao passo que as Institutas representam um manual de estudos, contendo os princípios do Direito extraídos do Código e do Digesto, elaborado por uma comissão de juristas nomeada pelo Imperador, formada por Triboniano, Doroteu e Teófilo, professores das escolas de Constantinopla e de Bento, nos moldes das Institutas de Gaio, do século II d. C. (MELLO; COSTA, 1995, p. 202). No território do antigo Império Romano do Ocidente, a partir do século VI, foram redigidas leis bárbaras para a maioria das tribos germânicas, reunidas, em 1861, na coleção das Monumenta Germaniae Historica. Na França e na península Ibérica, a Lex Romana Wisigothorum ou Breviário de Alarico, promulgada em 506 d.C. – compilação de leis romanas em vigor no reino visigodo de Tolosa, durante o reinado de Alarico II (487-507 d.C.) –, ilustra, igualmente a utilização do direito escrito pelos povos bárbaros que ocuparam o continente europeu (DAVID, 1972, p. 58).

Por conseguinte, não obstante o valor conferido ao costume e o desapego à noção de Direito na Europa Ocidental dos séculos V ao XI, fruto da descentralização política inerente à estrutura feudal, associada ao aumento da influência dos ideais de fraternidade e caridade da Igreja, sobreviveu um corpo normativo escrito, produzido no limiar da Idade Média, que serviria de base à reformulação de uma teoria jurídica no alvorecer da Idade Moderna. O renascimento comercial e urbano iniciado no século XI e, de resto, o inteiro fenômeno do renascimento cultural na Europa, que atingiu seu apogeu dos séculos XIV ao XVI, marcando o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, repercutiu no plano jurídico com a retomada de consciência da necessidade do direito.

Com o ressurgimento das cidades e do comércio, a sociedade constata novamente a imprescindibilidade do direito, visto como o único instituto capaz de assegurar a ordem e a segurança que permitem o progresso. Abandona-se o ideal de uma sociedade cristã fundada na caridade e a própria Igreja distingue a sociedade religiosa dos fiéis da sociedade laica, elaborando um direito privado canônico. Estabelece-se a distinção entre religião e ordem civil (regras morais e regras de direito) e se confere ao sistema jurídico uma função própria e autônoma. O retorno à noção romana de que a sociedade deve ser regida pelo direito é, pois, no século XII, uma revolução: filósofos e juristas passam a exigir que as relações sociais se baseiem no direito e que se encerre o regime de anarquia e de arbítrio que reina há séculos na Europa continental (DAVID, 1972, p. 60).

A formação do sistema de direito romano-germânico, pois, está ligada ao renascimento cultural que se produz nos séculos XII e XIII no Ocidente europeu, que preparou o caminho para o amplo movimento de retorno aos valores da antiguidade clássica operado nos séculos XIV a XVI. O principal meio pelo qual as novas ideias se espalharam, favorecendo a retomada do valor conferido ao direito romano, foi constituído pelos novos focos de cultura criados na Europa, em especial as universidades, dentre as quais a primeira e mais ilustre foi a Universidade de Bolonha, na Itália (DAVID, 1972, p. 61).

Invenção tipicamente medieval, era na universidade que os homens adquiriam formação específica nas chamadas “disciplinas maiores”, a saber, direito, teologia e medicina, que tomavam de 6 a 8 anos de estudo, normalmente dos 20 aos 26 anos de idade, após uma formação básica em “artes liberais”, dos 14 aos 20 anos de idade, composta de duas grandes partes, o trivium (lógica, retórica e gramática do latim) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Logo sugiram centros de excelência nos diferentes campos de conhecimento: Paris, nas áreas de filosofia e teologia, Bolonha, no direito, Salerno, na medicina e, posteriormente, Montpellier, em direito e medicina (LOPES, 2008, p. 104).

O ensino do direito nas universidades medievais, contudo, não era pautado em regras positivas, mas em princípios gerais e postulados filosóficos que buscavam expressar os sentidos da justiça. Tratava-se de realidade imposta, inclusive, por restrições de ordem prática, na medida em que o direito positivo, na maioria dos países, incluindo a Itália e a França, berço do novo modelo de estudos, apresentava-se de modo caótico e incerto, ante o predomínio do regime feudal e a inexistência de um soberano geral e incontestado, em cenário no qual se presenciava intenso conflito entre as ordens normativas positivas, tais como os direitos reais, feudais, comunais e corporativos (DAVID, 1972, p. 62).

Nesse contexto, objeto de grande admiração era o direito romano, sobre o qual a Igreja havia edificado o direito canônico. O direito romano encontrava-se disponível na forma das compilações de Justiniano e seu conteúdo havia sido preservado na língua que a Igreja conservou e divulgou, o latim. Ademais, era a lex romana a obra de uma civilização brilhante, “que se estendera do Mediterrâneo até o Mar do Norte, de Bizâncio à Bretanha, e que evocava no espírito dos contemporâneos, com nostalgia, a unidade perdida da Cristandade” (DAVID, 1972, p. 63). Em decorrência, e tendo em vista, ainda, o caráter transnacional das universidades e a incoerência das ordens normativas internas, que inviabilizavam o estudo do direito positivo, o direito romano e o direito canônico passaram a ser utilizados como o modelo de sistema jurídico sobre o qual deveriam as faculdades debruçar-se em esforço de análise e interpretação.

O estudo sistemático dos direitos romano e canônico pelo meio acadêmico culminou na constituição do denominado jus commune, o direito comum das universidades, ensinado nos diferentes Estados nacionais, que serviu de base à formação do jurista do continente europeu. Diferentemente dos juízes e solicitadores da Inglaterra, que aprendiam a profissão a partir de um treinamento eminentemente prático, o jurista europeu era tipicamente letrado e sua formação, centrada em princípios suprapositivos, contribuiu para a estabilização da ideia de Direito nas sociedades politicamente divididas do alvorecer da Idade Moderna. Nesse sentido, José Reinaldo de Lima Lopes afirma que

é o caráter transnacional do ensino jurídico que acrescenta à cristandade uma familiaridade a mais: o ius commune, o direito comum a todos, que é o direito romano interpretado pelos doutores. Até quando se formam os Estados Nacionais, o ius commune continua a ter um papel de harmonização, que desaparecerá finalmente só no século XVIII. A universidade medieval promoveu o surgimento dos juristas e eles se identificaram com ela. Desde então, exceto na Inglaterra, os juristas serão letrados. Ao mesmo tempo, foi o estudo universitário do direito que permitiu enfrentar as disputas entre o direito secular e o canônico, os direitos reais, os direitos feudais, comunais e corporativos. Os juristas medievais retomam, secularizando-a e formalizando-a, a discussão sobre liberdade, legalidade, equidade, misericórdia, justiça. (LOPES, 2008, p. 105)

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Em 1620, em Upsala, Suécia, inicia-se um processo de valorização dos direitos nacionais pela comunidade acadêmica, que teve como marco expressivo a instituição, em 1679, na Universidade de Sorbonne, em Paris, de uma disciplina de direito francês. Mas é somente no século XVIII que se verifica uma generalização do movimento pela Europa, incluindo-se definitivamente o estudo do direito positivo nacional pelas universidades de Wittenberg, Alemanha (1707), da Espanha (1741), de Oxford e Cambridge, no Reino Unido (1800) e de Portugal (1772). A pesquisa e o ensino do direito romano, contudo, permaneceriam como os elementos mais importantes dos cursos de Direito até o século XX e o período das grandes codificações, ocupando o direito nacional, em relação a ele, papel claramente secundário (DAVID, 1972, p. 64).

Durante todo esse período, contudo, a abordagem do direito romano pelas universidades não foi uniforme, tendo sido várias as escolas que se sucederam, cada uma com preocupações e métodos próprios (DAVID, 1972, p. 67). Uma primeira escola, a dos glosadores, no século XII, procurou reencontrar e explicar o sentido das leis romanas (MASSAÚ, 2013, p. 1). 4 Nessa época, alguns textos das compilações de Justiniano foram abandonados, por se referirem a instituições da Antiguidade que caíram em desuso. Atingiu seu ápice com a Grande Glosa de Acúrsio, que, retomando o trabalho de seus predecessores, produziu uma obra que comporta cerca de 96.000 glosas (DAVID, 1972, p. 67). O movimento subsequente, denominado de escola dos pós-glosadores, no século XIV, é marcado pela progressiva distorção do direito romano, com sua adaptação às novas necessidades sociais, e pela forte sistematização do direito, com a definição de ramos inteiramente novos, a exemplo dos direitos comercial e internacional privado. A esse direito romano amplamente modificado, ministrado nas universidades europeias nos séculos XIV e XV, deu-se o nome de usus modernus Pandectarum (DAVID, 1972, p. 64). Nos séculos XVII e XVIII, uma nova escola, dita do “direito natural”, triunfa nas universidades, tendo por preocupação, em lugar de compreender as regras de direito romano, descobrir e ensinar os princípios de um direito puramente racional (DAVID, 1972, p. 66). Diferenciou-se do trabalho dos pós-glosadores por abandonar o método escolástico, elevar o estudo do direito a um alto grau a sistematização e recusar a concepção clássica alicerçada na vontade divina e na natureza das coisas. O direito passa a ser visto como o resultado puro e simples da vontade humana, com a constatação de que, se o homem cria o direito, pode também modificá-lo. Nessas circunstâncias, somente a razão pode servir de guia à construção de um direito justo, pelo que o papel das universidades deveria ser, em esforço racional, “proclamar as regras de justiça de um direito universal, imutável, comum a todos os tempos e a todos os povos.” (DAVID, 1972, p. 67) É essa exaltação da razão pela filosofia iluminista, associada à nova função reconhecida à lei pelas doutrinas voluntaristas que acabou por preparar o caminho para a via da codificação. 5


3. Fundamentos

A doutrina comparatista costuma elencar características próprias dos direitos da família romano-germânica não verificáveis nos países de common law. Trata-se de institutos ou princípios estruturais do sistema jurídico justificados por uma formação histórica peculiar, notadamente, a influência do direito comum das universidades construído sobre a base dos direitos romano e canônico.

Uma primeiro elemento típico do regime de civil law é a divisão sistemática entre direito público e privado (DAVID, 1972, p. 98). O direito romano é, basicamente, um direito privado, e a instituição do direito público, na Europa continental, surge apenas tardiamente e de modo deficiente, na medida em que o problema originário da legitimidade e imparcialidade do juiz, qual órgão do Estado, para decidir demandas movidas contra a Administração Pública, mostrou-se complexo e de difícil solução. O que hoje parece uma solução evidente – independência funcional do Poder Judiciário, temperada pela imposição da supremacia do interesse público sobre o privado, com presunção de legitimidade dos atos administrativos 6 – revelou-se, no período de formação dos Estados nacionais, desenvolvimento de intrincada composição, na medida em que governo e sociedade não estavam acostumados a essa sistemática, pesando, em verdade, severa desconfiança por parte dos particulares acerca da idoneidade do julgamento de dessa sorte de demandas. Como esclarece René David,

No plano prático, apresentam-se verdadeiras dificuldades. Como organizar jurisdições, estatuindo em nome do Estado, e que sejam, no entanto, bastante independentes do Estado? A solução de questões de direito público pela via jurisdicional pressupõe juízes que não se considerem como funcionários. Por outro lado, como levar a administração a aceitar a competência destas jurisdições e a executar as decisões por elas pronunciadas? A existência de um direito verdadeiramente público, que seja o equivalente do direito privado, exige essencialmente uma certa formação psicológica da opinião pública e dos administradores: em uns e outros, uma estrita concepção da “razão do Estado” e o sentimento de que o interesse público bem concebido exige a execução das decisões emanadas dos tribunais em matéria de direito público, mesmo quando resultem para a administração dificuldades imediatas ou certo prejuízo. (DAVID, 1972, p. 99)

O fato é que, tanto pela relativa novidade da matéria quanto pela sensibilidade política em torno do tema, o direito público atingiu, nos países de tradição romano-germânica, um grau de desenvolvimento e perfeição bastante inferior ao do direito privado. A divisão básica entre direito público e privado no sistema de civil law, além de se justificar pela discrepância dos períodos de surgimento das respectivas regras de fundo, acompanhou as reais dificuldades da ciência do Direito em formular teorias e arranjos estruturais que viabilizassem a execução prática de normas limitativas do poder público. Nos países de common law, inexiste essa diferenciação: construído eminentemente sobre considerações de processo e, ao menos originalmente, desvinculado do vasto arcabouço privatista do direito romano, todo o direito anglo-saxônico é tido como direito público. E, talvez pela ausência de uma formação científica para os juristas de common law, não houve sistematização das soluções judiciais para as demandas entre particulares ao ponto de se cristalizar uma divisão categórica entre os ramos de direito público e privado. De seu turno, o direito romano-germânico desconhece a divisão entre common law e equity, soando até mesmo absurda para um jurista de civil law, formado por universidades que operavam longas considerações de ordem jusnaturalista, a concepção um direito que, em si mesmo, não seja equitativo.

Outro caractere fundamental do sistema romano-germânico é a comunhão, pelos países dele integrantes, de determinados ramos do direito desconhecidos do regime de common law, a exemplo do direito das obrigações. Originário do direito romano, o regramento das obrigações teve sua perfeição técnica altamente desenvolvida ao longo dos séculos em que foi objeto de reflexão e aprimoramento nas universidades europeias, encontrando-se presente em todos os direitos da família de civil law. Apesar disso, o próprio conceito de obrigação, elementar nos países de tradição romanista, inexiste no direito anglo-saxônico, sendo a própria palavra intraduzível para o inglês jurídico (DAVID, 1972, p. 104). No âmbito do direito público, outrossim, não obstante a existência de certas distinções pontuais, há uma identidade sistemática dos princípios basilares nos diferentes ordenamentos, a qual também se explica pelo intercâmbio de ideias propiciado pelo meio acadêmico. Com efeito, “a ciência jurídica nada mais fez, por vezes, que dar executoriedade, no plano do direito, às ideias e tendências que inicialmente se manifestaram em outro plano, filosófico ou político”, pelo que a influência de obras como as de Montesquieu e Rousseau, no direito constitucional, e Beccaria, no direito criminal, é considerável e nítida nos países do raio de alcance do civil law (DAVID, 1972, p. 105).

O papel da doutrina na elaboração da regra de direito é outra característica marcante do sistema romanista. Nos países de tradição romano-germânica, o direito está longe de ser o resultado exclusivo de uma reflexão teórica, estabelecida a priori, na busca de uma construção perfeitamente lógica. Há uma supletividade expressiva do ordenamento pelo trabalho da jurisprudência, não se podendo dela olvidar quando o objetivo seja a busca pela norma aplicável a determinada situação concreta. Ocorre que a doutrina, em todos os países do civil law, não se contenta com a tarefa de sistematizar o direito legislativo e jurisprudencial, mas se considera investida da função de “formular, acima dessa massa que progressivamente se forma ao acaso dos acontecimentos e sob pressão da urgência, sem princípios diretores bem definidos, as regras de direito que futuramente inspirarão os juízes e os práticos.” (DAVID, 1972, p. 112) Isto é: o jurista de civil law considera-se apto a, em trabalho de sistematização, elaborar proposições normativas, situando a regra de direito na posição intermediária que figura abaixo da lei e acima da decisão judicial, na busca incessante pelo grau ideal de generalidade da norma. Trata-se de tarefa árdua, mas de importância fulcral no sistema romanista. Em verdade,

A regra de direito decanta e purifica a prática, rejeitando os elementos discordantes ou supérfluos. Simplifica o conhecimento do direito, reduzindo a massa dos elementos que devem ser tomados em consideração. Confere um sentido a estes elementos, mostrando como concorrem para assegurar uma melhor justiça social e uma ordem econômica ou moral mais segura. Permite à opinião pública, ao legislador, intervir mais eficazmente no sentido de corrigir certos comportamentos ou mesmo orientar a sociedade em direção a determinados fins. Esta função atribuída ao direito conforma-se plenamente com a tradição, segundo a qual o direito tem de ser concebido como um modelo de organização social. O caráter ordenador e político, e não estritamente contencioso do direito, encontra-se confirmado e reforçado na época atual, em que se espera que o direito contribua para criar uma sociedade muito diferente da do passado. A concepção da regra de direito admitida na família romano-germânica é a base fundamental da codificação, tal como se concebe na Europa continental. (DAVID, 1972, p. 113)

A interpretação do direito é outro traço distintivo do sistema romano-germânico. Tendo em vista o nível de generalidade das proposições jurídico-normativas, o raciocínio do jurista de civil law é todo pautado em uma tarefa de interpretação das fórmulas legislativas, diversamente do que ocorre no common law, onde a técnica jurídica se caracteriza pelo método das distinções. Enquanto no sistema saxônico a regra de direito ideal é a mais específica possível, na tradição romanista espera-se que o preceito normativo deixe certa margem de liberdade para a atuação do magistrado, sendo a função da lei unicamente “estabelecer quadros para o direito e fornecer ao juiz diretivas” (DAVID, 1972, p. 115), na medida em que é impossível ao legislador prever, na sua variedade, todos os problemas concretos que se apresentarão na prática. Há, pois, “regras de direito secundárias” (doutrina e jurisprudência) ao lado de “regras primárias” (leis ou atos normativos do Poder Executivo). A diferença básica entre os regimes de civil law e de common law, neste ponto, é que as regras de direito secundárias nos países de origem romano-germânica ostentam maior generalidade que as normas de direito jurisprudencial anglo-saxônico (DAVID, 1972, p. 117).

3.1. A tendência à codificação e o primado da lei

Em todos os países que adotam o civil law, há uma prevalência explícita do direito escrito e legislado em detrimento das demais fontes do direito. Doutrina, jurisprudência e costume gozam, nitidamente, de um status normativo inferior, sendo utilizados exclusivamente como fonte supletiva, no caso de a legislação não solucionar a contento determinada questão (LIMA, 2013, p. 82). As leis, ademais, são estruturadas segundo um padrão hierárquico, no topo do qual figura a Constituição, e sob cujos preceitos são editados uma série de outros atos normativos de hierarquias diferentes (lei complementar, lei ordinária, decretos, portarias, ordens de serviço, etc.).

No século XIX, o triunfo dos ideais positivistas desencadeou um movimento de codificação nos países da família romano-germânica. 7 Influência decisiva nesse processo exerceu a França, com a publicação, em 1804, do Código de Napoleão, o Código Civil Francês, e, posteriormente, mais quatro códigos napoleônicos (Código Penal, Código de Processo Penal, Código de Processo Civil e Código Comercial). Nos diversos Estados do civil law, encontram-se os mesmos cinco códigos de base, sendo exceção, na Europa, os países nórdicos, que optaram por promulgar, cada um deles, um único Código, voltado a abarcar todo o direito nacional – caso da Dinamarca, em 1683, Noruega, em 1687, e Suécia e Finlândia, em 1734. Idêntica disposição demonstrou a Prússia, como o Allgemeines Landrecht, de 1794 e a Rússia, com o Svod Zakonov, de 1832 (DAVID, 1972, p. 128-129).

3.2. O papel da jurisprudência e do precedente

Há, pois, no sistema romano-germânico, uma disposição judicial inteiramente diversa da que existe nos países em que vigora a common law. O juiz do civil law, tradicionalmente, sente-se necessariamente subordinado ao conteúdo da lei, e a solução dos litígios dá-se pela técnica interpretativa e não pelo retorno às decisões judiciais pretéritas, submetidas ao método das distinções. Diferentemente do que ocorre no regime anglo-saxônico, em que, historicamente, coube aos juízes construir literalmente o conteúdo das regras de direito, nos países de tradição romanista, há um respeito cerimonial do magistrado às proposições normativas, porquanto elaboradas cuidadosamente pelo legislador e sistematizadas de forma racional e lógica pela dogmática jurídica, no decorrer de séculos de ciência do Direito.

Não significa isso dizer, contudo, que a jurisprudência não seja importante fonte do direito nos países de civil law: como já referido, há, também nesses países, uma consciência geral da incapacidade do legislador de antever todos os fatos passíveis de submissão ao crivo do Judiciário, diante do que, não raro, a própria lei autoriza o recurso, nas decisões judiciais, à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito. É o caso, por exemplo, do art. 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” (BRASIL, 1942, p. 1). Por analogia pode-se compreender, por óbvio, as decisões judiciais já proferidas para casos semelhantes, pelo que a jurisprudência é, inegavelmente, recurso fundamental para o suplemento da ordem jurídica.

Verifica-se, porém, por tudo quanto já exposto, uma cultura geral na qual o magistrado abstém-se o quanto possível de, declaradamente, criar o direito. Chega-se ao ponto de mascarar a atividade normativa por uma suposta interpretação do direito, notadamente, quando do manejo de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados. O direito jurisprudencial, pois, nos países de civil law, é reconhecidamente fraco quando em comparação com a lei; é frágil e suscetível de modificação a todo tempo, vez que, em regra, não obriga ou compele senão às partes do litígio, não vinculado o órgão jurisdicional que emanou o julgado, nem as jurisdições a ele inferiores, e, muito menos, particulares não integrantes da relação processual originária; é, precisamente, o oposto do precedente de common law, ostentando, em regra, eficácia meramente persuasiva.

Nesse contexto, evidente que a hodierna rejeição à regra do precedente vinculante ou stare decisis pelo regime de civil law não é fruto do acaso. É o resultado da opção histórica dos países do continente europeu pela adoção do modelo pré-fabricado do direito romano, em oposição à estratégia tipicamente inglesa de outorgar aos magistrados o poder de, a partir do caso concreto, construir um direito de base jurisprudencial. A regra do stare decisis é contrária à original tradição romanista exatamente porque não há, nos países de civil law, a necessidade verificada nos regimes anglo-saxônicos de conter o arbítrio do julgador, que, em sede de common law, é livre para ditar o direito segundo o que lhe pareça a justiça no caso concreto, vez que a lei, ali, somente possui eficácia na medida em que reconhecida pelo precedente. A partir da segunda metade do século XX, porém, esse quadro passou a apresentar forte tendência de mudança.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Fundamentos do sistema jurídico romano-germânico.: Origem, atributos e aproximação com o sistema anglo-saxônico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4102, 24 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30041. Acesso em: 23 abr. 2024.

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