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Pequenos detalhes que conferem tratamento isonômico e legal em licitações:

Estudo do impacto das Instruções Normativas da RFB nº 787/07 e 1420/13, na qualificação econômico-financeira realizada em processos licitatórios

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Este artigo trata do impacto das Instruções Normativas RFB 787/07 e 1420/13 na análise da qualificação econômico-financeira das empresas em processos de Licitação e demonstra a necessidade de levar em consideração o diálogo entre as fontes do Direito.

1. Introdução

É incontroverso que os princípios da isonomia e legalidade norteiam os processos licitatórios, nos termos do art. 3º da Lei Federal nº 8.666/93, assim como toda a ação executada pela Administração Pública, mas fatos concretos do dia a dia da Administração Pública podem ou fortalecer a aplicação destes princípios ou, enfraquecê-los.

O objetivo do presente artigo é levantar a discussão acerca da aplicação do princípio da isonomia no tratamento dos fornecedores frente à aplicação do inciso I do art. 31 da Lei Federal nº 8.666/93, qual seja, apresentação de balanço patrimonial do último exercício social já exigíveis e apresentados na forma da lei, combinado com a aplicação do art. 5º da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1420, de 19 de dezembro de 2013 que substituiu a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 787, de 19 de novembro de 2007, que determina a transmissão anual da Escrituração Contábil Digital (ECD).

Pretende-se defender que, mesmo sendo as Instruções Normativas da Receita Federal do Brasil nº 1420/13 e nº 787/07 normas de cunho predominantemente tributário, a razão do art. 5º de ambas tem fundamento no Direito Empresarial, qual seja as formas de demonstração do patrimônio de determinadas sociedades empresárias. Sendo assim, entende-se que a norma de cunho administrativo deve se render à norma civil quando tratar de conceitos e institutos regulados por outro ramo do Direito.

Este é o caso do inciso I do art. 31 da Lei Federal, nº 8.666/93, relativo a um dos limites da qualificação econômica financeira em licitações, conforme se pretende demonstrar a seguir.

2. Análise da exigibilidade do balanço patrimonial E de demais demonstrações contábeis

A análise da questão proposta por este artigo determina que iniciemos pela apreciação do ordenamento jurídico que permite a exigência de comprovação de condições econômicas e financeiras por meio de apresentação de balanço patrimonial e demonstrações contábeis.

Determina o referido instituto legal analisado que:

Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:

I - balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e apresentados na forma da lei, que comprovem a boa situação financeira da empresa, vedada a sua substituição por balancetes ou balanços provisórios, podendo ser atualizados por índices oficiais quando encerrado há mais de 3 (três) meses da data de apresentação da proposta; (grifo nosso)

As duas expressões destacadas são, no nosso entendimento, limites à atuação da Administração Pública. Por óbvio o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis só podem ser exigidos pela Administração Pública quando por força de lei já devam estar disponíveis para concretização de seus devidos fins.

A exigibilidade de apresentação de Balanço Patrimonial e demais Demonstrações Contábeis é obtida a partir da Lei de Sociedades Anônimas, Lei Federal nº 6.404/76, e do Livro II do atual Código Civil Brasileiro – Do Direito de Empresa.

A regra geral em ambos os instrumentos legais é haver deliberação acerca da aprovação do Balanço Patrimonial e demais Demonstrações Contábeis até o fim do mês de abril, conforme disposto no inciso I do art. 1.078 do Código Civil e no inciso I do art. 132 da Lei de Sociedades Anônimas.

Porém, a leitura de toda a lei demonstra haver algumas situações excepcionais que estendem o prazo determinado pela regra geral. São elas no Código Civil:

Art. 1.069. Além de outras atribuições determinadas na lei ou no contrato social, aos membros do conselho fiscal incumbem, individual ou conjuntamente, os deveres seguintes:

[...]

V - convocar a assembleia dos sócios se a diretoria retardar por mais de trinta dias a sua convocação anual, ou sempre que ocorram motivos graves e urgentes;

[...]

Art. 1.073. A reunião ou a assembleia podem também ser convocadas:

I - por sócio, quando os administradores retardarem a convocação, por mais de sessenta dias, nos casos previstos em lei ou no contrato, ou por titulares de mais de um quinto do capital, quando não atendido, no prazo de oito dias, pedido de convocação fundamentado, com indicação das matérias a serem tratadas;

II - pelo conselho fiscal, se houver, nos casos a que se refere o inciso V do art. 1.069. (grifo nosso)

Nestes casos deve-se observar os critérios legais referentes à convocação. São duas as condições para que a assembleia seja convocada: disponibilização dos livros contábeis a serem apresentados na assembleia para análise dos sócios que não participem da administração nos trinta dias anteriores à assembleia e cumprimento do prazo mínimo de oito dias entre a primeira publicação de convocação e a assembleia.

Assim, considerando que a assembleia ocorrerá no dia final determinado pela regra geral, 30/04, os livros contábeis devem estar disponíveis no máximo a partir de 31/03 e a primeira convocação deve ocorrer, no máximo, até 22/04.

Contudo, ocorrendo as exceções previstas nos arts. 1.069 e 1.073, ambos do Código Civil, estes prazos alteram-se conforme demonstrado no quadro abaixo:

Quadro 1 - Prazos para Apresentação dos Livros Contábeis Conforme Código Civil

Determinação legal

Art. 1.069 - V

Art. 1.078, §1º

Art. 1.073, I

Art. 1.078, §1º

Descrição

Cabe ao Conselho Fiscal convocar a assembleia dos sócios se a diretoria retardar por mais de trinta dias a sua convocação anual

Data da assembleia se os documentos Livros Contábeis já tiverem sido postos à disposição dos sócios

A reunião ou a assembleia podem também ser convocadas por sócio, quando os administradores retardarem a convocação, por mais de sessenta dias

Data da assembleia se os documentos Livros Contábeis já tiverem sido postos à disposição dos sócios

Prazo

23 de maio

31 de maio

22 de junho

30 de junho

Fonte: Elaboração própria com base na Lei Federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil Brasileiro.

Quanto à Lei de Sociedades Anônimas as exceções ora tratadas encontram-se nos seguintes artigos:

Art. 123. Compete ao conselho de administração, se houver, ou aos diretores, observado o disposto no estatuto, convocar a assembleia-geral.

Parágrafo único. A assembleia-geral pode também ser convocada:

a) pelo conselho fiscal, nos casos previstos no número V, do artigo 163;

b) por qualquer acionista, quando os administradores retardarem, por mais de 60 (sessenta) dias, a convocação nos casos previstos em lei ou no estatuto;

[...]

Art. 163. Compete ao conselho fiscal:

V - convocar a assembleia-geral ordinária, se os órgãos da administração retardarem por mais de 1 (um) mês essa convocação, e a extraordinária, sempre que ocorrerem motivos graves ou urgentes, incluindo na agenda das assembleias as matérias que considerarem necessárias; (grifo nosso)

Da mesma forma que nas explicações anteriores, considerando que a assembleia ocorrerá no dia final determinado pela regra geral, 30/04, os livros contábeis devem estar disponíveis no máximo a partir de 31/03 e a primeira convocação deve ocorrer, no máximo, até 22/04, no caso de Sociedade por Ação Fechada, e 15/04 de Sociedade por Ação Aberta.

Contudo, ocorrendo as exceções previstas nos arts. 123 e 163 ambos da Lei de Sociedades Anônimas, estes prazos se alteram conforme demonstrado no quadro abaixo:

Quadro 2 - Prazos para Apresentação dos Livros Contábeis Conforme Lei de Sociedades Anônimas

Determinação legal

Art. 163

Art. 133

Art. 123

Art. 133

Descrição

Cabe ao Conselho Fiscal convocar a assembleia dos sócios se a diretoria retardar por mais de trinta dias a sua convocação anual

Data da assembleia se os documentos Livros Contábeis já tiverem sido postos à disposição dos sócios

A reunião ou a assembleia podem também ser convocadas por sócio, quando os administradores retardarem a convocação, por mais de sessenta dias

Data da assembleia se os documentos Livros Contábeis já tiverem sido postos à disposição dos sócios

Prazo Sociedade por Ação Fechada

23 de maio

31 de maio

22 de junho

30 de junho

Prazo Sociedade por Ação Aberta

16 de maio

31 de maio

15 de junho

30 de junho

Fonte: Elaboração própria com base na Lei Federal nº 6.404 de 15 de dezembro de 1976 – Lei de Sociedades Anônimas

Cumpre ressaltar que Motta (2008) em seu livro Eficácia nas Licitações e Contratos faz singela observação acerca do tema ora em análise, reproduzida: “[...]o problema consistiria, concretamente, nos prazos referentes à exigibilidade de tais documentos, para fins de habilitação. Por vezes coloca-se nítido impasse entre a exigência do balanço e o fator temporal”. (Motta, 2008, p. 389)

Muito embora o referido autor conclua em consonância com o Professor Jessé Torres Pereira Júnior, ou seja, os livros contábeis são exigíveis a partir de 30 de abril, fica demonstrado que há dissidência de entendimento quanto ao prazo adotado pelo autor.

Pode-se observar conforme artigo publicado no site Portal de Licitações que os próprios Tribunais de Contas possuem divergência de entendimento:

Porém, a aplicação dessas duas normas (Código Civil e Instrução Normativa RFB nº 787/2007) não é pacífica. Temos duas posições bastante nítidas:

1ª POSIÇÃO: Tanto a data de 30 de abril como 30 de junho, são válidas para empresas optantes pelo lucro presumido e lucro real, respectivamente. Na prática e em grande parte dos casos atuais, está sendo admitido o seguinte posicionamento:

a) Para as empresas optantes pelo regime tributário de Lucro Real, o Balanço Patrimonial do exercício de 2012 deverá ser aceito até junho/14, uma vez que o Balanço de 2013 somente será exigido após o último dia útil do mês de junho de 2013, consoante dispõe o artigo 5º da IN RFB nº 787/07 e IN DNRC nº 107/08.

b) Para as empresas optantes pelo regime de Lucro Presumido, prevalece o procedimento determinado pelo Código Civil (arts. 1078, 1181 e 1184) e Lei das SAs (arts. 132 e 176) cujo prazo limite para a formação e registro do Balanço Patrimonial (Livro Diário) na Junta Comercial é o último dia do mês de abril do exercício seguinte (p.ex.: o balanço de 2013 deverá ser registrado até 30 de abril de 2014).

Nesse sentido foi o Voto do Ministro Valmir Campelo (TCU), no Acórdão nº 2669/13 – Plenário:

[...]

2ª POSIÇÃO: nesta corrente a data limite para a apresentação, registro e, conforme o caso, envio da escrituração contábil para a Receita, tem o limite fixado em 30 de abril. Nesse sentido, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), mediante relatório do Conselheiro Eduardo Bittencourt Carvalho no TC-016967/026/07: (PORTAL DE LICITAÇÃO, 2014)

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Finda a explanação acerca da exigibilidade dos Livros Contábeis e sua possibilidade de alargamento temporal, passa-se agora à análise sucinta da apresentação dos demais aspectos legais. Análise esta que será breve, vez que a análise da exigibilidade do último balanço patrimonial é o foco desde artigo.

Nos termos do art. 1.181 do Código Civil a apresentação dos livros contábeis das sociedades empresárias regidas por este código somente se dá com a autenticação no Registro Público de Empresas Mercantis. Já nos termos §1º do art. 176 da Lei de Sociedades Anônima a referida apresentação se dá com a publicação das demonstrações financeiras.

Além disso, nos termos dos artigos contidos no Capítulo IV – Da Escrituração, do Título IV do Livro II do Código Civil de 2002, há uma série de outras determinações para que os livros contábeis sejam apresentados na forma da lei. Da mesma forma ocorre no Capítulo XV da Lei de Sociedades Anônimas.

Por fim, conclui-se que a ação da Administração Pública está limitada não só pela legislação administrativa, mas, em se tratando de qualificação econômica financeira, principalmente, a referida limitação do poder da Administração está na legislação civil e comercial.

3. Aplicação do inciso I do art. 31 da Lei Federal nº 8.666/93 – Divergências de entendimento quanto à exigibilidade do último balanço patrimonial.

O impasse quanto ao prazo para exigibilidade do último balanço patrimonial observado por Motta (2008) e pelos autores deste artigo pode ser verificado nos entendimentos divergentes exteriorizados pelo Governo Federal e pelo Governo Estadual de Minas Gerais.

Iniciando a exposição pela visão tradicionalmente mais aceita, verifica-se por meio do Portal de Compras do Governo do Estado de Minas Gerais que a exigibilidade do balanço patrimonial do último exercício se dá a partir de 30 de abril, conforme disposto no documento disponível no Portal de Compras do Estado de Minas Gerias intitulado “Prazos e validade dos documentos no CAGEF. Este entendimento corresponde ao entendimento de Motta (2008) conforme já explicitado anteriormente.

Porém, o Governo Federal emitiu seu entendimento acerca da questão, por meio da página Perguntas e Respostas – SICAF do Portal de Compras do Governo Federal, da seguinte forma:

34) Qual o prazo para apresentação do balanço patrimonial?

Resposta: A Instrução Normativa nº 787, de 19 de novembro de 2007, da Receita Federal Brasileira, em seu art. 5º, estende o prazo para apresentação do balanço patrimonial para 30 de junho e o SICAF seguiu as orientações definidas nesta norma, independentemente do tipo de constituição da pessoa jurídica. (Brasil, 2014)

Este último entendimento é o que consideramos ser o correto. Isto pelos prazos expostos nos quadros 1 e 2 do item anterior. Ou seja, se o Código Civil e a Lei de Sociedades Anônimas conferem à empresa duas outras oportunidades para apresentação do seu balanço patrimonial, o resultado é o prazo máximo final em 30 de junho. Logo, este deve ser o adotado pela Administração Pública para fins de verificação da habilitação econômica e financeira.

Segundo o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão o entendimento foi adotado devido ao disposto na Instrução Normativa nº 787, de 19 de novembro de 2007 da Receita Federal do Brasil.

A Instrução Normativa nº 787 da Receita Federal do Brasil institui a Escrituração Contábil Digital, porém foi revogada pela Instrução Normativa RFB nº 1420, de 19 de dezembro de 2013. Quanto ao prazo ora em questão, contudo, não há diferença entre as duas Instruções Normativas.

Nem a Instrução Normativa RFB nº 787, nem a Instrução Normativa RFB nº 1420 explicam o porquê do prazo até o último dia útil do mês de junho para a transmissão da Escrituração Contábil Digital e até o presente momento não foi encontrada a exposição de motivos de nenhuma das Instruções Normativas.

4. Prazos e abrangência definidos nas Instruções Normativas RFB nº 787/07 e nº1420/13 e a isonomia no processo licitatório

Interessante verificar que, ao responder o questionamento acerca do prazo para apresentação do balanço patrimonial, o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão se apoiou na Instrução Normativa da Receita Federal para delimitar o prazo, mas quanto à extensão a quem se aplica o referido prazo, 30 de junho, foi definido de forma diferente do disposto na Instrução Normativa RFB nº 787/07.

De acordo com o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, a regra, para fins de qualificação econômico financeira em licitações, se estende a todas as pessoas jurídicas independente do tipo de constituição da mesma. Entendimento, a nosso ver, perfeito do ponto de vista da isonomia e consequentemente legalidade.

Isto porque a revogada Instrução Normativa RFB nº 787/2007 previa que o prazo de 30 de junho para transmissão da Escrituração Contábil Digital por meio do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) se aplicava, para fins fiscais, às sociedades empresárias sujeitas à tributação do Imposto de Renda com base no Lucro Real.

Já a Instrução Normativa RFB nº 1420/2013 amplia o rol de pessoas jurídicas obrigadas a efetuar a transmissão da Escrituração Contábil Digital para:

  • pessoas jurídicas sujeitas à tributação do Imposto sobre a Renda com base no lucro real;
  • as pessoas jurídicas tributadas com base no lucro presumido, que distribuírem, a título de lucros, sem incidência do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (IRRF), parcela dos lucros ou dividendos superior ao valor da base de cálculo do Imposto, diminuída de todos os impostos e contribuições a que estiver sujeita; e
  • as pessoas jurídicas imunes e isentas.

Verifica-se, portanto, que na prática, e na teoria (devido à implantação do SPED[1]), a ideia da Escrituração Contábil Digital é sua ampla utilização por todas as pessoas jurídicas. Sendo assim, ao incluir todas as pessoas jurídicas na regra do prazo de 30 de junho contido no art. 5º das Instruções Normativas RFB nº 787/07 e nº 1420/2013 o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão agiu conforme a diretriz definida pelo Governo Federal.

Além disso, instituir prazos diferenciados para sociedades empresárias participantes de licitações seria completamente desarrazoado e até mesmo ilegal. Isto devido ao direito ao sigilo fiscal, instituto protegido pelo inciso X do art. 5º da Constituição Federal e pelo art. 198, alterado pela Lei Complementar 104, de 10 de janeiro de 2001, do Código Tributário Nacional.

Imaginemos o seguinte: em uma licitação, supostamente ocorrida antes da Instrução Normativa RFB nº 1420/13, a Administração Pública decida que aqueles licitantes sujeitos à tributação com base no lucro real deverão apresentar a documentação contábil referente ao último exercício fiscal apenas a partir de 30 de junho, enquanto que os demais deverão fazê-lo a partir de 30 de abril.

Diante de tal decisão diversas sociedades empresárias podem optar por não participar da licitação, pois não é razoável imaginar que as empresas definirão suas estratégias gerais com base nas disposições de editais de um ente federativo. Neste caso, provavelmente, diversos possíveis licitantes optarão por não incorrer nos custos da licitação, como envio de documentação, e não participarão da mesma. Sendo assim, haverá restrição à competição, mesmo que a referida decisão não tenha esta intenção.

Mas, continuando, a decisão, por si só, já nos parece injusta, e, analisando tecnicamente, a suposta decisão da Administração Pública seria anti-isonômica e ilegal.

Isto porque, não há explicação razoável para tratar os licitantes de forma diferente, pois o simples fato de um licitante ser tributado pelo lucro real não o faz mais apto a fornecer produtos ou prestar serviços, nem mais vantajoso para a Administração Pública contratá-lo. Logo, sob o ponto de vista da isonomia, a diferenciação entre licitantes devido ao regime de tributação pode ser considerada ilegal.

Além disso, se algum dos licitantes não sujeitos à tributação pelo lucro real utilizasse do prazo de 30 de junho como base para entrega de sua documentação contábil sem nada dizer sobre o regime de tributação ao qual estaria sujeito a Administração Pública não teria o poder para conferir se àquele licitante caberia ou não o benefício. Isto porque há no Brasil a figura do Sigilo Fiscal, resultante do direito fundamental constitucionalmente protegido à intimidade e vida privada, e também protegido pelo art. 198 do Código Tributário Nacional. Segundo SCHOUERI (2013):

O amplo acesso das autoridades administrativas a informações referentes aos particulares, detidas por estes ou por terceiros, é limitada pelo dever de sigilo fiscal: se a autoridade administrativa teve uma informação em razão de seu ofício, é apenas no exercício deste que informação pode ser utilizada. (SCHOUERI, 2013, p. 815)

Muito embora o referido autor explique que o direito ao sigilo fiscal não é absoluto haja vista as exceções contidas nos parágrafos do referido art. 198, no caso ora em análise apenas as requisições de autoridades judiciárias no interesse da justiça poderia afetar o sigilo fiscal de quem se utilizasse do prazo prescrito no art. 5º da Instrução Normativa RFB nº 787/07.

Assim, sem uma intervenção judicial, a Administração Pública não pode solicitar ou obrigar os licitantes a divulgar, pois o processo licitatório é público, suas declarações de imposto de renda para comprovar qual licitante é tributado pelo lucro real não é, ao mesmo tempo, não pode obter tais informações da Administração Fiscal. Além disso, mesmo que houvesse intervenção judicial, a conclusão do processo licitatório se tornaria mais demorada, o que seria prejudicial a todos os envolvidos.

Importante ressaltar que a simples escrituração contábil por meio do programa do SPED Contábil não confere certeza à tributação com base no lucro real, pois o §1º do art. 3º da Instrução Normativa RFB nº 787/07 permite que qualquer outro tipo de sociedade empresária utilize o SPED Contábil.

Concluímos, portanto, que a Administração realmente não pode diferenciar licitantes pelo tipo de tributação, agindo de forma correta o Governo Federal ao expandir o prazo previsto no art. 5º da Instrução Normativa RFB nº 787/07 a todas as pessoas jurídicas. A publicação da Instrução Normativa RFB nº 1420/13 ampliando o rol de pessoas jurídicas obrigadas a apresentar a documentação contábil até o último dia útil de junho representa o fim de qualquer argumentação em contrário ao defendido até o momento.

5. Conclusão

A participação em processos de licitação exige dos licitantes o cumprimento de diversos requisitos dentre eles o de qualificação econômico-financeira que pode ser feita por meio de apresentação de balanço patrimonial. Nesse caso, existem diversos entendimentos de qual deve ser o prazo a ser exigido dessa apresentação.

A análise levou em consideração as Instruções Normativas da Receita Federal que delimitam o prazo de 30 de junho, entendimento esse já adotado pelo Governo Federal e defendido pelos autores.

Dessa forma, é importante destacar que a aplicação da norma pela Administração Pública deve considerar todas as normas jurídicas para evitar tratamento ilegal e anti-isonômico aos licitantes, assim como evitar possíveis restrições à competição.

Concluímos este artigo com as palavras do Ministro do STF, Eros Grau, referindo-se à interpretação Constitucional:

Aqui devo salientar, contudo, inicialmente, que, assim como jamais se interpreta um texto normativo, mas sim o Direito, não se interpretam textos normativos constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo.

Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços.

A interpretação de qualquer texto normativo Constitucional impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir desse até a Constituição. (GRAU, 2012, p.161)

Da mesma forma que a Constituição não pode ser interpretada em tiras, aos pedaços, entendemos que nenhum outro instrumento normativo não pode também sê-lo, pois conforme explica o Ministro Eros Grau, de forma clara e inquestionável, o texto normativo é a porta de entrada para a interpretação do Direito.

Defendemos, portanto, que exigir a apresentação de balanço patrimonial e demais documentos contábeis do ano anterior a partir de 30 de abril em licitações é interpretar o Código Civil e a Leis das Sociedades Anônimas aos pedaços, tendo em vista que o inciso V do art. 1.069 e inciso I do art. 1.073 devem ser interpretados juntamente com o art. 1.078 todos do Código Civil para definir a exigibilidade de balanço patrimonial e demais documentos contábeis. Da mesma forma ocorre com os arts. 123, 163 e 132 da Lei de Sociedades Anônimas.

A edição das Instruções Normativas RFB nº 787 e nº 1420, especificamente o disposto em seus respectivos art. 5º, corroboram este entendimento, assim como a resposta do Governo Federal acerca deste assunto. Contudo o principal impacto das instruções Normativas citadas se dá ao mostrar para todos os operadores do Direito, principalmente do Direito Administrativo, que o diálogo entre fontes legais é imprescindível e inegável. Neste caso há o diálogo entre o Direito Comercial, que por meio do Código Civil e da Lei das Sociedades Anônimas elenca três oportunidades para apresentação dos documentos contábeis das sociedades empresárias, e o Direito Administrativo que, ao utilizar a expressão “na forma da lei” no inciso I do art. 31 da Lei Federal nº 8.666/93, se submete ao primeiro ramo apresentado.

6. Referências

BRASIL. Congresso Nacional. LEI Nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm>. Acesso em: 28 jun. 2014.

______. Congresso Nacional. Lei nº 6404 de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 dez. 1976. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm>. Acesso em: 17 jun. 2014.

______. Congresso Nacional. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun. 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm>. Acesso em: 17 jun. 2014.

______. Congresso Nacional. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 17 jun. 2014.

______. Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão. Perguntas e Respostas – SICAF. Disponível em: <http://www.comprasgovernamentais.gov.br/paginas/servicos-faq/sicaf-2013-perguntas-e-respostas#NiVI34>. Acesso em: 17 jun. 2014.

_____. Secretaria da Receita Federal. Institui a Escrituração Contábil Digital. Instrução Normativa n. 787, de 19 de novembro de 2007. Disponível em: < http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Ins/2007/in7872007.htm>. Acesso em: 17 jun. 2014.

______. Secretaria da Receita Federal. Dispõe sobre a Escrituração Contábil Digital (ECD). Instrução Normativa n. 1420, de 19 de dezembro de 2013. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Ins/2013/in14202013.htm>. Acesso em: 17 jun. 2014.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 15. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. 383p.

MINAS GERAIS. Governo de Estado de Minas Gerais. Prazos e validade dos documentos no CAGEF. Disponível em: <http://www.compras.mg.gov.br/images/stories/Fornecedores/2012/18-04-2012-cagef-prazos-e-validade-dos-documentos.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2014.

MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas Licitações e Contratos. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 1120p.

PORTAL DE LICITAÇÃO. Prazo para Apresentação e Registro do Balanço. Disponível em: <http://www.portaldelicitacao.com.br/mais-artigos/9565-prazo-para-apresentacao-e-registro-do-balanco-patrimonial.html>. Acesso em: 21 jul. 2014

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 840p.

SPED – Sistema Público de Escrituração Digital. Disponível em: < http://www1.receita.fazenda.gov.br/sped/>. Acesso em: 17 jun. 2014.


[1] De acordo com a Receita Federal o SPED: consiste na modernização da sistemática atual do cumprimento das obrigações acessórias, transmitidas pelos contribuintes às administrações tributárias e aos órgãos fiscalizadores, utilizando-se da certificação digital para fins de assinatura dos documentos eletrônicos, garantindo assim a validade jurídica dos mesmos apenas na sua forma digital.

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Sobre os autores
Amanda Sant'Anna Caetano Romano Giron

Graduada em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro e graduanda em Direito pela Faculdade Dom Helder Câmara. Trabalha atualmente na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Damião José Rodrigues da Rocha

Graduado em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro, Pós Graduado em Gestão de Projetos pelo Centro Universitário UNA e Gestão Estratégica pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro. Trabalha atualmente na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Frederico de Sant’Anna Caetano Ribeiro

Graduado em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro e em Ciências Contábeis pela Universidade Federa de Minas Gerias. Trabalha atualmente na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Thiago Campos de Matos

Graduado em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro. Trabalha atualmente na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Marco Patrício Garcia

Graduado em Administração Pública pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundação João Pinheiro Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado de Minas Gerais, Pós Graduado em Direito (ênfase em Direito Público) pelo Instituto Cultural Newton Paiva Ferreira. Trabalha atualmente na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais como Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIRON, Amanda Sant&#39;Anna Caetano Romano ; ROCHA, Damião José Rodrigues et al. Pequenos detalhes que conferem tratamento isonômico e legal em licitações:: Estudo do impacto das Instruções Normativas da RFB nº 787/07 e 1420/13, na qualificação econômico-financeira realizada em processos licitatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4138, 30 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30423. Acesso em: 19 abr. 2024.

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