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A Balada de Narayama:

um diálogo com o campo jurídico de Pierre Bourdieu

26/07/2014 às 09:50
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Bourdieu demonstra a importância do campo, local em que há uma luta pela imposição da definição do jogo e dos trunfos necessários para dominar no jogo pelo poder, muito próximo da realidade dos agricultores isolados da época feudal no Japão, relatados em “A balada de Narayama”.

RESUMO: A miséria pela qual passava o Japão dos tempos feudais é retratada no filme A balada de Narayama, onde a comunidade local, para garantir a subsistência de seus membros e seguindo as tradições, era obrigada a eliminar o integrante excedente: seja recém nascido (principalmente os do sexo masculino, que, ao contrário dos de sexo feminino, não poderiam ser alvo de negociação comercial) ou idoso (aquele que, por completar 70 anos de idade, era considerado um inútil). O contexto principal liga-se à convicção cosmológica do poder do Deus do Monte Narayama, entidade suprema que recepcionava aqueles que se dirigiam ao monte para esperar a morte, enraizada na tradição nipônica, constituindo um dever ético dos membros zelarem pela sua manutenção  e cumprimento, não obstante os interesses e vontades  pessoais, às vezes, conflitantes com o respeito ao costume. Nesse contexto de comunidade isolada, o conteúdo do filme dialoga com o campo jurídico defendido por Pierre Bourdieu.

PALAVRAS-CHAVE: A balada de Narayama. Tradição. Regras locais. Campo de Pierre Bourdieu.


INTRODUÇÃO

O filme A balada de Narayama retrata uma realidade da época do Japão feudal extremamente pobre, onde a comunidade de aldeões agricultores travam diariamente a luta pela sobrevivência, de acordo com a disponibilidade de comida e pessoas a serem alimentadas. Neste confronto identifica-se o embate entre valores da alma, representado pela força do instinto animal, versus os valores morais do homem.

A tradição e a cultura ganham eco na comunidade isolada em que vive a personagem Orin, que, de acordo com as características do local e da época, são obrigados a selecionar entre idosos que completam 70 (anos) de idade e recém-nascidos, aqueles que terão o direito de continuar vivendo, em benefício da subsistência dos demais membros.

Neste isolamento dos agricultores apresentados no filme, é possível estabelecer um diálogo com o campo jurídico defendido por Pierre Bourdieu, considerando que o desenvolvimento e a compreensão da comunidade e do Direito só será possível fazê-lo, segundo a noção da dinâmica interna de cada um.


1. NARAYAMA, O CONTEXTO SOCIOECONÔMICO E AS TRADIÇÕES DA COMUNIDADE

O filme é baseado na lenda Ubasuteyama, que remonta a ideia do Monte Deus Narayama, grande receptador e curador dos envelhecidos que completam 70 (setenta) anos de idade, que, segundo as tradições locais, ao atingirem tal marco de vida devem ser levados para o monte, onde ficarão esperando a morte. Morte esta, supostamente, acalentada pelo poder do Deus Narayama.

O contexto econômico da realidade feudal de comunidades típicas como a do filme mostram uma luta incessante pela sobrevivência, decorrente da escassez de alimentos, onde é necessário um controle rigoroso de natalidade e de habitantes em geral, ou seja, tanto o recém- nascido[1] (que não possa ser útil ou que nasça em um momento em que será apenas mais uma boca para comer) como o senil, assim considerado o que completa 70 anos de idade são os atores vítimas deste sacrifício cultural (e até, de certa forma, necessário).

Portanto, desde o início, fica estabelecido este confronto de valores ou sentimentos, que ao mundo externo, é incompreensível e revoltante, na qual fica patente a dicotomia entre a defesa da cultura e da tradição daquele povo (que deve sacrificar filhos e genitores) para assegurar a subsistência alimentar dos demais membros da comunidade e a vontade pessoal, baseada na, tímida, mas presente relação de afetividade entre os familiares.

No filme, a matriarca da família, Orin prestes a completar seus 70 anos, apresenta-se uma mulher ativa, útil e forte, em contradição aos demais idosos dessa faixa etária, tanto é verdade que ainda possui, por exemplo, basicamente intactos seus dentes (sinônimo de pessoa legítima a receber alimentação).

Nessa lógica de vitalidade, mesmo próximo aos 70 anos, a personagem Orin torna o cumprimento da tradição de encaminhar os idosos ao monte Narayama muito mais difícil ao seu primogênito, que ainda enxerga na mãe uma figura saudável e ativa. Assim, segue o desenvolvimento do filme demonstrando este conflito interno na mente do filho: encaminhar à morte a genitora sadia ou violar o costume e a tradição local?

Sendo ciente do choque que assola a cabeça do filho, bem como da importância da manutenção da cultura local, Orin, em manifestação altruísta provoca intencionalmente a perda de seu dentes, como motivo justificador para torna-la prescindível de alimentos, e consequentemente, relativizando sua importância (contribuição) em relação à comunidade e sua família.

Na comunidade a figura da mulher é destacável, desde o momento de seu nascimento até a sua partida, tendo em vista principalmente que a elas cabem as decisões internas, já que os homens, como regra, ocupam-se fora de casa no plantio, razão pela qual, Orin, certo que se avizinhava sua partida, já busca uma substituta para chefiar o lar e casar-se com o primogênito.

Da mesma forma, naquele contexto, o costume, as raízes nos apresentam disposições fora do estamos acostumados hoje, principalmente quanto o trato do sexo, que é basicamente para satisfazer a concupiscência, a lascívia e manter o equilíbrio do corpo do que contemplar qualquer forma de relação de afetividade, como conhecimento na atualidade ocidental.

Ademais, o respeito às regras sociais eram seguidas fielmente no filme, independente das sanções previstas para determinados ilícitos, atos amorais ou que atentavam contra o bom costume, como bem foi trato quando descobriu-se o furto de alimentos praticado por determinada família, a qual recebeu como sanção serem enterrados todos seus integrantes vivos.

O entorno envolvendo o psicológico e o físico abordado no tema central do filme, que cria, na tentativa de tornar menos dolorosa a partida dos genitores, a figura cosmológica da proteção do Deus do Monte Narayama, que acaba sendo confrontada na mente do filho mais velho, que ao acompanhar sua mãe até o monte, encontra simplesmente um cemitério à céu aberto, com sinais de sofrimento para aqueles que lá esperaram pela morte sagrada.

Logo o sinal de início de neve, serviu-lhe de consolo pois demonstrava a possibilidade de um morte mais rápida, encurtando o sofrimento de Orin para morrer, uma vez que o poder ou a própria existência do Deus do Monte Narayama, restou posto em dúvida pelo filho que a acompanhou, diante do cenário avistado!

Além disso, seja no aspecto de impedir alguma forma de questionamento da tradição ou de vedar qualquer tentativa de convencimento a desistir da ida à Narayama, a proibição de diálogo entre o senil e seu condutor, serve como instrumento fiador da crença, pois, apesar da pouca afetividade ressaltada no filme a convivência aproxima as pessoas, tornando qualquer despedida dolorosa.


2. O DIÁLOGO COM O CAMPO JURÍDICO DE PIERRE BOURDIEU

Bourdieu em a força do direito, demonstra a importância do campo, local em que há uma luta pela imposição da definição do jogo e dos trunfos necessários para dominar nesse jogo, muito próximo da realidade dos agricultores isolados da época feudal no Japão, relatados em “A balada de Narayama” que vivem em seu espaço social, de acordo com suas realidades, e seguindo os preceitos da tradição local.

Para SHIRAISHI (2008) a proposta de refletir o Direito a partir da noção de campo jurídico traduz uma tentativa de apreender o universo social específico no qual ele se produz, reproduz e difunde, e, neste raciocínio, a compreensão do campo representado pela comunidade de agricultores também só é possível pela participação interna, respeitando a sua estrutura.

No filme a única demonstração de contato externo com a realidade interna acaba sendo a figura do vendedor de sal, que é o instrumento de contato com o mundo externo, seja na atuação de negociar as crianças de sexo feminino ou mesmo de indicar mulheres a casar com homens do grupo. Portanto, a inexistência de contato com outros grupos faz com que aquelas regras enraizadas na cultura local sejam perfeitas e necessárias para o convívio coletivo, assim como as regras do Direito em determinado campo jurídico.

SHIRAISHI (2008) mencionando Bourdieu afirma que a noção de campo jurídico concerne a um espaço social específico, autônomo, no qual os “operadores” concorrem entre si pelo monopólio de dizer o Direito, permitindo, dessa forma, respeitados tempo e espaço que separam a comunidade de produtores e o nosso ordenamento jurídico, estabelecer um diálogo entre o universo social demonstrado no filme e o campo jurídico de Bourdieu.

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CONCLUSÃO

 A balada de Narayama traz em seu enredo principal a luta pela sobrevivência, decorrente do cenário crítico do tempo feudal no Japão, representado pela pobreza notória, agravada muitas das vezes pelos efeitos da natureza como a neve, que impedia a realização da atividade principal da comunidade: a produção agrícola.

Esta luta é marcada pelo conflito ético moral de, para assegurar a comida necessária para os membros de cada família, ser necessário privar a vida de recém-nascidos (principalmente os do sexo masculino) e os idosos (assim considerados os que completavam 70 anos de idade), o que, apesar da frágil relação sentimental entre os integrantes, não se apresentava tarefa fácil de cumprir, especialmente por aqueles que tinha o dever de zelar pela tradição.

No filme, a personagem Orin, prestes a completar 70 (setenta) anos, e assim “subir Narayama”, percebe a dificuldade que tem seu primogênito de conforma-se com a ideia de sua partida (notadamente quando este, encabeçaria a tarefa de levá-la até o monte), o qual já carregava o trauma pela morte de seu pai (acusado de não cumprir e honrar as tradições de seu povo, pela não condução de sua mãe à Narayama) e se automutila com objetivo de torna-se apenas um peso (ou uma pessoa a ser alimentada) sem poder estabelecer uma contraprestação.

Assim, além das outras manifestações culturais e tradicionais supramencionadas, que, a princípio, nos parecerem gritantes (à luz da realidade ocidental de hoje), a mensagem principal agasalhada no filme é que somente pode entender aquele contexto, suas crenças e o rigor de seu conteúdo quem lá vive ou conhece, de forma interna.

Neste sentido, o retrato daquele grupo, isolado, quase que absolutamente incomunicável aperfeiçoa-se com a designação de Bourdieu para o campo jurídico, porção ideal, na qual são produzidas as decisões do cotidiano e criadas as regras para aqueles que nele habitam ou dependem.

Paralelamente, seria exemplo da realidade deste grupo (agricultores do Japão) ou campo (jurídico), o que também ocorre com os povos indígenas na Amazônia, que, muitos, mesmo na cultura ocidental de hoje, são regidos segundo suas crenças e convicções, respeitando as regras ali contidas para direitos e obrigações, e quem lá não vive não compreende o que lá se passa e por quais motivos é (ou tem que ser) assim!


REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. A força do Direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 5ª ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2002, PP. 209-254.

IMAMURA, Shohei. A balada de Narayama. Filme. Japão, 1983

SHIRAISHI NETO, Joaquim.  O campo jurídico em Pierre Bourdieu: a produção de uma verdade a partir da noção de propriedade privada nos manuais de direito. Revista Sequência, n. 56, pp. 83-100, jun.2008 < http://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/149991/13672. Acesso em 13 de junho de 2012.


Nota

[1] Acrecente-se que o nascido homem, geralmente é sacrificado por inanição e a nascida mulher pode significar algum retorno financeiro, com sua venda!.

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Sobre o autor
Alcian Pereira de Souza

Advogado. Professor de Carreira do Magistério Superior da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS-UEA, lotado na Faculdade de Direito da Escola Superior de Ciências Sociais-ESO. é Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Possui MBA Gestão de Sociedades Cooperativas pela Faculdades Integradas de Taquara -RS (2013). Foi Coordenador Interino do Curso de Direito em Manaus (UEA) desde Dezembro/2012 a Maio de 2013. Atualmente é o Coordenador Eleito do Curso de Direito (UEA). Presidente da Comissão Especial de Estudos em Direito Cooperativo da OAB/AM (Portaria GP N. 020/2013- DOE 17.0613). Membro do Comitê Jurídico Nacional do Sistema OCB-SESCOOP-CNCOOP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alcian Pereira. A Balada de Narayama:: um diálogo com o campo jurídico de Pierre Bourdieu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4042, 26 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30498. Acesso em: 23 abr. 2024.

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