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A desconsideração da personalidade jurídica na partilha de bens sob o viés da law and economics

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Estuda-se a aplicação da "disregard doctrine" no âmbito da partilha de bens conjugais. Objetiva esclarecer os benefícios da análise econômica do direito neste contexto.

1.Introdução

  O objetivo deste trabalho é promover uma análise jurídica e econômica do expediente da desconsideração da personalidade jurídica na partilha de bens conjugais.

   No passado, de acordo com Cooter e Ulen, “o direito restringia o uso da economia às áreas das leis antitruste, dos setores regulamentados, dos impostos e da determinação das indenizações monetárias”.[1] Atualmente, verifica-se uma verdadeira alteração de paradigma, notadamente a partir do início da década de 1960, com a expansão da Análise Econômica do Direito tanto a áreas mais tradicionais (tais como propriedade, contratos e direito constitucional) como, paulatinamente, a áreas antes não tão usuais, como o Direito de Família.

     Conforme Ivo Gico Jr., “a abordagem econômica serve para compreender toda e qualquer decisão individual ou coletiva que verse sobre recursos escassos, seja ela tomada no âmbito do mercado ou não”.[2] Tendo-se a economia como a ciência social que estuda como os indivíduos, portadores de suas próprias preferências, se comportam para maximizar seu bem-estar em um mundo no qual os recursos são escassos, a Análise Econômica do Direito tem sido decisiva para uma reavaliação do lado funcional do contrato, considerando sua função primordial a comunicação de metas de conduta em um ambiente de imperfeições e de custos que muitas vezes impedem que os objetivos sejam alcançados sem a figura do contrato.

     Sob este norte, tenciona-se, aqui, expor os principais contributos e teorias econômicas a serem utilizadas no estudo da temática em questão, proporcionando-se, assim, uma abordagem interdisciplinar que visa a dar unidade e maior profundidade ao estudo.

   Inicialmente, será o instituto analisado sob uma perspectiva estritamente jurídica, de modo a viabilizar a compreensão da aplicação da disregard doctrine nos âmbitos regular e inverso, com enfoque na partilha de bens conjugais. Em um segundo momento, utilizar-se-á o ferramental da análise econômica do direito como instrumento a aprimorar uma efetiva abordagem do instituto e entendimento de suas causas subjacentes, de acordo com a abordagem da Law and Economics. Por fim, serão apresentadas conclusões embasadas no que foi visto nas seções precedentes.


2.      Aplicação da Disregard Doctrine à partilha de bens conjugais

Como forma clássica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, regulamentada pelo artigo 50 do Código Civil Brasileiro, utiliza-se o expediente visando-se à responsabilização de sócio por dívida imputada à sociedade sempre que constatada a má utilização da personalidade jurídica para a perpetração de fraudes contra credores.

No Direito de Família, todavia, sua aplicação ocorre na via inversa, aplicando-se o instituto com o escopo de desconsiderar-se o ato para assim alcançar-se os bens da sociedade. Assim, o artifício é manejado na via “oposta” à de sua concepção originária: desconsidera-se a personalidade jurídica buscando-se o alcance dos bens e rendimentos da sociedade, e não mais do sócio, que desta se utilizou como mero estratagema para ocultação de sua efetiva realidade econômico-financeira.[3]

Na desconsideração inversa da personalidade jurídica, aplicada ao Direito de Família, segundo Rolf Madaleno: “o devedor transfere seus bens para a empresa na qual participa como sócio, esvaziando o acervo pertencente ao vínculo afetivo do casamento ou da união estável”[4], seguindo, assim, na posse e fruição dos bens que deveriam ter sido legitimamente partilhados com o ex-consorte. Eis, quiçá, a situação mais recorrente a ensejar a aplicação da teoria na forma inversa no âmbito jus famélico, embora distintas práticas reconhecidamente mereçam a atenção do julgador, conforme restará abordado.

Assim, visando a uma adequada compreensão da utilização do expediente na via inversa, mister uma prévia análise de sua aplicação segundo a teoria clássica.

Um dos trabalhos pioneiros acerca do tema da desconsideração da personalidade jurídica é a obra Forma e Realidade da pessoa jurídica, do alemão Rolf Serick. A partir da análise da jurisprudência Alemã e Norte-Americana, o autor buscou definir os critérios que autorizam o juiz a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos sócios sempre em que esta for manejada como instrumento à concretização de fraudes ou abuso de direito.[5]

No Brasil, o primeiro autor a abordar o tema foi Rubens Requião, em sua aula magna denominada “abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”.[6] Na legislação brasileira, verifica-se a presença do instituto, cronologicamente, no Dec. 3.708/19 (Lei das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada), no Dec. 5.452/43 (CLT), no Dec.-Lei 7.661/45 (Lei de Falências), na Lei 5.172/66 (CTN), na Lei 6.404/76 (Lei das S/A), na Lei 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal) e na Constituição Federal de 1988. De forma mais clara e explícita, cita-se seu registro na Lei 8.078/90 (CDC), Lei 8.884/94 (Lei Antitruste), Lei 9.605/98 (Meio-Ambiente), Lei 9.481/99 (Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) e, por último, no atual Código Civil brasileiro (Lei 10.406/02).[7]

Dentre as principais consequências da personificação jurídica, destaca-se a incidência do princípio da autonomia patrimonial. Explica-se: o surgimento da pessoa jurídica estabelece um centro de interesses autônomo, distinto dos interesses dos seus membros formadores.[8] Neste sentido, e como via de regra, os sócios não são titulares dos direitos e deveres relativos ao exercício da atividade econômica, mas sim a sociedade empresária, estando esta filosofia já presente no Código Civil de 1916, no artigo 20, caput[9].

Atualmente, muito embora não tenha o novo Código Civil reproduzido de forma expressa referido dispositivo legal, o princípio permanece em vigor, impondo-se a concreção do princípio da autonomia patrimonial como forma de garantir-se a segregação entre o patrimônio do sócio e da empresa.[10] Ora, e se assim não fosse, incentivo e motivação alguma teriam os indivíduos em aventurarem-se na criação de novas atividades e exploração de novos produtos e serviços, eis que, frustradas as expectativas (situação muito comum na vida de “desbravadores” empresários), ver-se-iam na iminência da perda de bens adquiridos ao longo de anos e gerações, ocasionando-se prejuízos irreversíveis ao desenvolvimento da sociedade

Assim, foi justamente com a finalidade de garantir uma necessária proteção que foi criada a figura fictícia da pessoa jurídica, atuante na concretização de seus próprios fins e interesses, distintos daqueles dos agentes que a compõem. Ao contrário do que se possa supor inicialmente - a partir da terminologia do instituto -, a excepcional medida da desconsideração da personalidade jurídica almeja preservar ao máximo a pessoa jurídica, zelando, sempre que possível, por sua continuidade, vindo a ocorrer se - e somente se - algum dos sócios passa a utilizá-la na consecução de seus interesses mais particulares para obtenção de proveitos próprios, divorciados das funções da pessoa jurídica.[11]

Neste sentido, para Deilton Brasil, arvorado em ensinamentos de Posner[12]:

(...) se os empreendedores, para resguardar seus patrimônios particulares dos riscos inerentes à atividade econômica, não dispusessem do mecanismo de constituição e uma sociedade empresária, como pessoa jurídica autônoma, teriam de negociar, pontual e renovadamente, a limitação de suas responsabilidades com cada credor. Isso aumentaria os custos de transação e poderia comprometer a eficiência econômica.[13]

Vejamos que a Disregard Doctrine não visa à declaração de nulidade da pessoa jurídica, mas sim da ineficácia de alguns de seus atos, com vista a impedir a consumação de fraudes e abusos de direito, tal como, por exemplo, a transmissão fraudulenta de bens do patrimônio do sócio para o da pessoa jurídica como subterfúgio para não arcar com dívidas pessoais existentes. Não constitui-se, pois, a personalidade jurídica em um direito absoluto, mas sujeito às teorias da fraude contra credores e do abuso de direito.[14]

Nesse contexto, duas são as formulações para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a saber: teoria maior, pela qual o juiz pode decretar a desconsideração para coibir fraudes ou abusos, e a teoria menor, na qual a reles presença de prejuízo ao credor já seria elemento a viabilizar a desconsideração.

A primeira teoria se desdobra em subjetiva e objetiva: a subjetiva autoriza a sua aplicação prática sempre que verificados, no caso concreto, o abuso de direito e a fraude; já a objetiva, tem como requisito para sua aplicação a confusão patrimonial.[15]

No ordenamento jurídico brasileiro – sobretudo a partir do art. 50 do Código Civil -, percebe-se a clara opção do legislador pela teoria objetiva maior, condicionando o manejo do expediente à constatação de desvio de finalidade ou de abuso patrimonial[16]. A teoria menor, no entanto, restou acolhida excepcionalmente pelo Direito do Consumidor e pelo Direito Ambiental, a incidir com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade (teoria maior subjetiva) ou de confusão patrimonial (teoria maior objetiva), bastando, para tanto, a mera expectativa de prejuízo do credor.

De acordo com com Gustavo Guimarães Henrique, “a confusão patrimonial que impõe a desconsideração deve ser de tal ponto ultrajante e escancarada a conduzir a insolvência ficta de um dos entes para frustração de direitos de terceiros”.[17] Dando continuidade ao raciocínio, conclui o autor que:

Somente prova cabal da ocorrência de fraude, situação em regra não presumível em direito pátrio, poderá conduzir o Magistrado à intervenção no patrimônio da sociedade. Trata-se de situação excepcional e que, pela violência com a qual se instaura, somente vem a cabo com o suporte de provas incontestes sobre a fraude.[18]

Verifica-se, portanto, que desconsideração da personalidade jurídica não atinge o plano da validade estrutural da sociedade empresária. Ao contrário, preconiza por sua higidez e regular exercício de atividades, visando, tão-somente, à ineficácia da personalidade jurídica em pontual situação fraudulenta, quando então será afastada, episodicamente, o regime legal a ela previsto pelo ordenamento jurídico.[19]

Enquanto que a teoria clássica da desconsideração da personalidade jurídica objetiva responsabilizar o integrante da pessoa jurídica por dívida a esta atribuída, sua ocorrência na via inversa permite o afastamento do princípio da autonomia patrimonial para fins de regresso ao patrimônio conjugal dos bens deliberadamente desviados do cônjuge com a meação lesada.

Segundo Rolf Madaleno, somente legitima-se a hipótese “quando a sociedade se tornou mera extensão da pessoa física do sócio, como pode acontecer quando um cônjuge transfere maliciosamente os bens do casamento para a empresa da qual é sócio(...)”.[20]

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O que se busca, portanto, “é o retorno dos bens maliciosamente extirpados do patrimônio do sócio em favor da sociedade, somente para a produção de irreal aparência de insolvência daquele, para o acervo de quem realmente é titular”.[21]  Ou seja, na esteira dos mesmos pressupostos da desconsideração “clássica”, a decretação da inversa condiciona-se à aferição de bens do sócio desviados ao patrimônio da pessoa jurídica no intuito de fraudar terceiro, sendo este o enfoque deste estudo, haja vista ser este o remédio jurídico aplicável às celeumas envolventes de fraude entre os cônjuges no âmbito da partilha de bens conjugal.


3.       Contributos da Law and Economics ao instituto

Abordadas as principais noções do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e de sua aplicabilidade no âmbito da partilha de bens conjugal (disregard inversa), oportuna uma análise econômica do fenômeno, o que permitirá uma compreensão pragmática das suas efetivas causas, desdobramentos e ferramentas sobre as quais o julgador se baliza para “desatar os nós”.

A despeito das distintas opiniões doutrinárias acerca da natureza jurídica do matrimônio (se um contrato, uma instituição ou uma figura “híbrida”), para a abordagem econômica a sua definição como um contrato é a que melhor se revela. Segundo Lliord Cohen, o casamento pode ser visto como:

(...) uma promessa de assumir riscos e pagar indenizações. Ou seja, cada parte assume o risco de que seu amor por seu cônjuge venha a terminar. Se isso acontecer, elas aceitam a responsabilidade legal pelas possíveis perdas.[22] [Tradução nossa].

A essência do matrimônio está, pois, no acordo de vontades realizado entre duas partes que, voluntariamente, assumem obrigações, direitos e privilégios, reconhecendo-se a impossibilidade de o instrumento prever todas as contingências passíveis de se sucederem após a celebração do negócio jurídico matrimonial. [23]

É de fácil constatação que a escolha do cônjuge/companheiro reveste-se de características econômicas, haja vista demandar a utilização de determinados recursos para obtenção de informações sobre o provável parceiro.[24] Tem-se, assim, o estágio que precede ao casamento o momento ideal para que custos de informação quanto ao parceiro e suas reais expectativas de uma vida a dois sejam arcados, sendo que quanto maior o dispêndio de tempo (custo) a dois, mais facilmente averiguar-se-á a compatibilidade das personalidades envolvidas.[25]

De acordo com Fernando Araújo:

(...) o processo de recolha da informação prévia à celebração do contrato é complexo mas da maior relevância, sendo que muita da assimetria informativa que se verifica no contrato pode ser o resultado de decisões tomadas no momento da recolha de informação, decisões de inacabamento desse processo – ainda que, no caso do contrato, esse inacabamento informativo, quando detectado pela parte fragilizada por ele, possa ser remediado pela abertura à renegociação, ou até mais singelamente possa ser mitigado pela obtenção de informação suplementar.[26]

Desta forma, quando os nubentes possuem informações assimétricas entre si – seja porque inverídicas, incompletas ou distorcidas -, projetando no parceiro e na relação expectativas irreais, corre-se o risco de a relação contratual ficar gravemente debilitada pela frustração da esperada observância das condutas devidas. [27]

No contrato matrimonial, a falta de simetria informativa entre os contratantes pode decorrer de variadas razões: do curto período de relação afetiva na fase que antecede as núpcias (períodos do namoro e do noivado) – momento no qual cabe o recolhimento de informações da forma mais plena possível -, das limitações cognitivas das partes, que deixam de explorar o conhecimento de circunstâncias que em um futuro breve vêm a interferir significativamente na relação afetiva, e mesmo de fatores atribuídos às características pessoais e projetos patrimoniais dos envolvidos, que podem, voluntariamente, optar por não revelar informações desta natureza.[28]

Como as principais patologias derivadas da assimetria informativa, tem-se a seleção adversa e o risco moral (moral hazard). Embora geralmente ocorram em momentos distintos – a primeira na fase de negociação do contrato e a segunda em sua vigência -, não se pode assumir que tratem, tão-somente, de domínios ex ante e ex post da assimetria informativa, de modo que suas distinções transcendem a critério eminentemente temporal.[29]

A seleção adversa[30], neste cenário, trata de uma equivocada escolha do parceiro e/ou de termos contratuais, a ocorrer quando uma das partes, desprovida de corretas (ou completas) informações, segundo Fernando Araújo, “oferece condições contratuais medianas que afastam os melhores parceiros potenciais – aqueles que, conhecendo as suas próprias características e julgando-se acima da mediana, consideram desvantajosas as condições propostas”.[31]

Vejamos que no contrato matrimonial muitas são as etapas passíveis de serem acoimadas pela seleção adversa. A começar, a própria escolha dos parceiros pode amparar-se em informações distorcidas e incompletas quanto àquele. Ainda, dados equivocados acerca da renda de qualquer dos nubentes, de seus níveis de capacitação profissional e patrimônio amealhado preteritamente podem apontar para regimes de bens conjugais inadequados a tais realidades, vindo a comprometer uma eficiente eleição do regime matrimonial, moldada às necessidades e expectativas do casal.

O risco moral, por seu turno, pode surgir quando os objetivos entre os cônjuges diferirem substancialmente, permitindo um deles obtenha vantagens às custas do segundo, passando a atuar em benefício de seus próprios interesses em detrimento dos interesses conjugais. Eis, então, que se verifica sua ocorrência: quando a parte provida de maior número de informações passa a atuar de forma oportunista, negligenciando nos deveres de cooperação mútua entre os contratantes. De acordo com Fernando Araújo:

(...) a expressão não denota necessariamente qualquer perversão moral (embora abarque também abusos fraudulentos), contudo ela tem uma clara conotação negativa, ao menos porque ela sugere que há alguma “miopia” na gestão do recurso comum que é a confiança recíproca das partes no cumprimento pontual das suas obrigações e no acatamento estrito das estipulações contratuais.[32]

 Na família tradicional, enquanto que ao varão cabia manter-se laboralmente ativo, angariando recursos para a sociedade conjugal, ao cônjuge mulher incumbia diligenciar nos cuidados com a prole e com o lar. Com o advento da Constituição Federal de 1988, restou enfim extirpada da ordem jurídica a árida ideia de submissão feminina dentro do contexto sociofamiliar, refutando-se a supremacia masculina e igualando-se os sexos em direitos e deveres. Já antes disto, com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62), esta houvera sido “promovida” a auxiliar do marido na chefia da sociedade conjugal, o que representou um grande avanço na luta contra a discriminação por gênero no Brasil.

Outrossim, determina o artigo 1.663, § 3º do Código Civil que, constatada malversação dos bens conjugais por parte de algum cônjuge, poderá o juiz atribuir a administração dos bens a apenas um dos consortes, independentemente se ao varão ou à mulher, na equiparação entre seus direitos e deveres.

Com efeito, percebe-se que a nova ordem jurídica criou instrumentos na tentativa de coibir – ou ao menos mitigar – a presença do risco moral na sociedade matrimonial, buscando, a partir de norma como esta, reduzir o antes largo campo para práticas oportunistas, reflexo da problemática da assimetria informativa. Outro acadêmico exemplo neste sentido trata do artigo 1.647 do Código Civil, o qual estabelece a necessidade de concordância do cônjuge para a prática de certos atos ali expressos, à exceção do regime da separação absoluta.[33]

Por outra banda, alguns dispositivos legais geram ainda acentuadas brechas à fraude patrimonial engendrada por cônjuge empresário, e notório exemplo disto trata do artigo 978 do Código Civil, que permite, em qualquer regime de bens, a venda dos bens imóveis pertencentes ao patrimônio da empresa sem a necessidade da outorga conjugal. Ainda, vejamos que inexiste qualquer exigência de concordância do cônjuge para a promoção de alteração no estatuto social de sociedades empresárias (tal como se verifica no Código Civil argentino, por exemplo), o que torna ágil o caminho para a livre circulação dos bens conjugais para a sociedade empresária.[34]

Eis, sob a presente ótica, perversas consequências da assimetria informativa: não conectado ao meio empresarial, o parceiro provavelmente desconhecerá as possíveis consequências de uma alteração do tipo social em seu direito de meação sobre as quotas do cônjuge ou sobre o crescimento patrimonial de dita sociedade empresária da qual é alheio. Exemplifique-se: na partilha de bens, o cônjuge não empresário terá um crédito em relação às quotas sociais do consorte/companheiro sócio de uma sociedade limitada (Ltda.), não podendo  ser admitido na empresa na qualidade de sócio se assim não efetivamente previsto no contrato social. Desta forma, a ele caberá a o ingresso de demanda de apuração de haveres para satisfação seu crédito logo que finda a ação de dissolução parcial da sociedade, também a ser movida por ele. Contudo, o mesmo não se opera quando o cônjuge empresário, imbuído de má-fé, altera o tipo social de Ltda. para uma Sociedade Anônima (S/A) de capital fechado (“sociedade familiar”). Nas palavras de Rolf Madaleno, elucidando a dinâmica:

A transformação termina comparada a uma mera alteração estatutária ou contratual e nisto reside um grande perigo ao cônjuge que, distante do meio empresarial e da atividade societária do esposo, sequer em sonho, imagina que, em certas circunstâncias, ao deparar com a transformação da primitiva sociedade formada por quotas de participação limitada em uma maquiada sociedade anônima, amiúde transformada numa nítida sociedade familiar, de capital fechado e de impenetrável acesso, serviu para transferir, habilidosamente, à incrédula esposa, com a sua partilha conjugal, um punhado de inúteis ações que ninguém quer comprar e que jamais serão cotizadas em bolsa.[35]

Forçosa faz-se a necessidade de relativização da proibição de venda das ações da companhia fechada familiar sempre que constatada a alteração para este tipo social com o único e exclusivo intento de atendimento aos caprichos do cônjuge ou convivente que, pouco antes desta engenhosa medida, passou a incorporar os bens da sociedade conjugal na sociedade empresária, privando o consorte de acessar seu crédito mediante ação judicial de apuração de haveres, eis que transformada a sociedade limitada em sociedade anônima de capital fechado.[36]

Cabe referência a outras práticas comuns de atos fraudulentos e atentatórios à meação conjugal, tais como aparente retirada de um cônjuge da sociedade às vésperas da separação, cisão da sociedade (transferindo-se parte significativa do patrimônio para a outra sociedade), redução dos valores das quotas ou patrimônio da sociedade e repentina redução de pró-labore dos sócios, todos os quais revestem-se de uma mesma característica: abuso da personalidade jurídica, a permitir e ensejar a aplicação do expediente da desconsideração da personalidade jurídica no sentido inverso, para que tais atos, declarados ineficazes, logrem “resgatar” ao consorte o patrimônio que lhe foi deliberadamente furtado.

Claro está que o cônjuge/companheiro lesado patrimonialmente foi vítima do uso estratégico de informação privativa por parte do agente (cônjuge) empresário no desempenho de suas atividades profissionais. Partindo-se desta premissa, o que, afinal, sugere a Law and Economics como remédio contra consequências da espécie de assimetria informativa?

Verificou-se que o emprego de custos de informação, na fase pré-contratual, tem o condão de aproximar os agentes de parceiros contratuais (in casu, entenda-se contrato de casamento ou de união estável) adequados, que venham a efetivamente maximizar seu bem-estar e utilidade. Assim, quanto maior for o tempo dispendido junto ao parceiro, maior serão as chances de que a contratação esteja em consonância com as condutas e deveres que dela se espera.

Maiores, pois, serão os custos de informação em que os cônjuges estarão dispostos a incorrer na seleção quanto maior for o grau de exigência do indivíduo acerca de um profundo conhecimento do parceiro. Quanto maiores suas expectativas, mais custos empregarão, à proporção de seu interesse na celeridade do processo de escolha do cônjuge ideal(izado).[37]

Para a análise econômica, destaca-se, neste âmbito, a teoria da sinalização como um meio indireto de resolução de problema da seleção adversa.[38] Por “sinais”, compreenda-se informações que os indivíduos revelam a dado grupo de possíveis partes contratantes, buscando, assim, a obtenção da utilidade esperada.[39]

A fim de ilustrar este argumento, suponhamos a existência de um jovem casal no qual o homem sinaliza à então noiva que, para ele, negócios e carreira serão estanques prioridades suas no decorrer do matrimônio. Descontente com as características do parceiro, recebidas em forma de sinais ao longo do período antecedente às núpcias (ou mesmo nos primeiros anos da vida conjugal), conclui a noiva que a alternativa que melhor virá a preservar a relação afetiva será a eleição do regime de separação convencional de bens. Desta forma, não necessitará ela dispender custos de monitoramento das condutas do marido praticadas no seio de sua sociedade empresária, eis que a nada ali fará ela jus, privando-se de arcar com tais ônus.

Ao contrário também poderia ser: a partir de uma cautelosa análise dos sinais emitidos pelo noivo ao longo do relacionamento, e concluindo pela mesma inclinação em sua escala valorativa (a priorizar negócios e patrimônio em detrimento, por exemplo, da criação de filhos e investimento na vida e rotina matrimoniais), poderia a noiva desfazer-se do relacionamento antes de sua efetivação jurídica, evitando assim ingressar em uma relação na iminência de um provável fracasso, eis que polarizada por diferentes expectativas e inclinações comportamentais.

E, neste sentido, a figura do pacto antenupcial revela-se um eficaz sinalizador. Ao impor a necessidade de diálogo entre os nubentes acerca do adequado regime de bens, suas declaradas opiniões e crenças emitirão sinais quanto a suas características e aspirações, reduzindo o custo para sua obtenção.

Desta forma, atua o contrato pré-nupcial como redutor da assimetria informativa, haja vista antecipar revelações de dados e reações que possivelmente viriam a ser protagonizadas somente no momento do divórcio, obstando, muitas vezes, acordos e decisões eficientes a todos.

Portanto, tem-se que o modelo de sinalização é de grande valia na erradicação de fraudes perpetradas no seio conjugal e, bem assim, da própria necessidade da complexa aplicação do instituto da disregard, como verdadeira solução ex ante à formação do contrato. A partir do modelo da sinalização, permite-se maior ajuste dos interesses das partes às disposições negociais das núpcias ou mesmo – e ainda antes disto -,  a decisão em casar-se ou não com pretenso parceiro.

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Sobre a autora
Cristiana Sanchez Gomes Ferreira

Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogada Especialista em Direito de Família e Sucessões. E-mail para contato: [email protected] .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Cristiana Sanchez Gomes. A desconsideração da personalidade jurídica na partilha de bens sob o viés da law and economics. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4161, 22 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30731. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Publicação anterior: GOMES FERREIRA, Cristiana. A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Partilha de Bens Sob o Viés da Law and Economics. In DA ROSA, Conrado paulino; THOMÉ, Liane Maria Busnello (Org.). O Direito do Lado Esquerdo do Peito. Porto Alegre: Instituto Brasileiro de Direito de Familia do Rio Grande do Sul (IBDFAM/RS), 2014, p. 223-236.

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