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O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico

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09/03/2015 às 14:28
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Quando um negócio jurídico é formado diante de um “Estado de Perigo, o Código Civil de 2002 preceitua que o mesmo deve ser considerado meramente anulável e não nulo de pleno direito. O presente trabalho defende sua nulidade absoluta.

introdução

O negócio jurídico trata-se da principal espécie de ato jurídico presente no direito brasileiro e tem o contrato como o principal instrumento que movimenta a economia e possibilita o ajuste de expectativas e vontades baseada na ideia de autonomia privada. A liberdade que se tem para definir o conteúdo e os efeitos jurídicos que se espera de um contrato é a principal característica do negócio jurídico, noção que vem do conceito de autonomia privada.

Sendo assim, a autonomia privada e a liberdade de contratação fazem parte da noção de negócio jurídico, que tem na manifestação de vontade livre e de boa fé uma das condições de validade do contrato. Porém, pode ser que essa manifestação de vontade livre e de boa fé seja viciada por algum dos defeitos do negócio jurídico, como é o caso do contrato firmado em que uma das partes se encontra em estado de perigo e a outra, com pleno conhecimento disso, se aproveita para impor uma condição excessivamente onerosa. Neste caso, o agente que se encontra em estado de perigo não possui liberdade de escolha: ele precisa salvar-se ou salvar a outrem e adere a qualquer condição imposta, até mesmo agindo com instinto de sobrevivência.

Diante dessa situação, o ordenamento jurídico brasileiro atribui a este negócio jurídico a condição de anulabilidade (nulidade relativa) e não uma nulidade absoluta. Entende o ordenamento que o contrato pode ou não ser tomado como válido e vai depender da provocação do interessado para que o Judiciário se manifeste sobre sua mantença no mundo jurídico ou não.

O presente trabalho defenderá a ideia de que o estado de perigo, como defeito invalidade do negócio jurídico, deve ser encarado como uma nulidade absoluta, podendo inclusive ser reconhecido de ofício pelo juiz. Não há sentido em considerar que, identificado que o negócio jurídico foi firmado em legítimo estado de perigo, com preenchimento de todos os seus requisitos, possa vir a ser considerado apenas anulável.


1 - O NEGÓCIO JURÍDICO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

O desenvolvimento da teoria do negócio jurídico foi feito pela escola alemã, inicialmente no Século XVIII.  O primeiro a utilizar o termo negócio jurídico foi Nettelbladt, em 1749, tendo sido acolhido no Código Civil Alemão sob a denominação de Reschtsgeschäfte. O Código Civil brasileiro de 1916, elaborado por Clóvis Bevilácqua em 1899, não utilizou a expressão negócio jurídico, seguindo a doutrina unitária francesa e não o distinguindo de ato jurídico (GONÇALVES, 2013).

Com o advindo do Código Civil de 2002, houve uma mudança substancial na forma de enquadramento do negócio jurídico dentro do ordenamento civil pátrio. Até então, o negócio jurídico era tratado com sinônimo de ato jurídico¸ o que se pode facilmente perceber comparando a estruturação do Livro III da Parte Geral do Código de 1916 com o do Código Civil de 2002. Inclusive, ao pronunciar-se sobre a mudança trazida pelo novo CC/02, o autor do anteprojeto da Parte Geral, o Min. Moreira Alves, assim se manifestou: “o Projeto de Código Civil Brasileiro, no Livro III da sua Parte Geral, substitui a expressão genérica ato jurídico, que se encontra no Código em vigor, pela designação específica de negócio jurídico, pois é a este, e não necessariamente àquele, que se aplicam todos os preceitos ali constantes” (MOREIRA ALVES apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 353).

Portanto, a partir do novo CC/02, foi adotada a concepção dualista e não mais unitária na análise do instituto negócio jurídico. A doutrina moderna claramente se coloca no sentido de que a categoria dos fatos jurídicos lato sensu subdivide-se em fato jurídico stricto sensu, ato-fato, ato jurídico lato sensu, que se subdivide ainda em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico, sendo que este último instituto é um dos mais importantes e mais presentes nas relações cíveis, tendo como uma das suas principais características a manifestação livre de vontade (GONÇALVES, 2013).

O Fato jurídico stricto sensu são os acontecimentos naturais que interferem na esfera jurídica de alguém, mas sem intervenção do homem. Ex: Uma manga que cai em cima de um carro; um furacão que arrasta uma casa etc.

Por sua vez, ato-fato são fatos jurídicos com atuação humana que não dependem da vontade nem da intenção do agente que os pratica, mas que geram consequências jurídicas. Um exemplo clássico é a criança que compra um doce no mercadinho do bairro; ela não tem intenção nem consciência para firmar um contrato de consumo, mas assim o faz. O que se leva em consideração é a consequência do ato e não a intenção de praticá-lo.

No ato jurídico lato sensu, temos a presença da atividade humana, sendo que este ainda é subdividido em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico, constituindo este último no objeto principal do estudo deste trabalho. O ato jurídico stricto sensu é o chamado “Ato não negocial”, ou seja, traduz um comportamento humano voluntário e consciente cujos efeitos jurídicos são previamente determinados por lei. Neste, não há liberdade na escolha dos efeitos jurídicos. Como exemplo, podemos citar uma notificação, intimação, confissão etc. Como afirmam os professores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona,  

Neste tipo de ato, não existe propriamente uma declaração de vontade manifestada com o propósito de atingir, dentro do campo da autonomia privada, os efeitos jurídicos pretendidos pelo agente (como no negócio jurídico), mas sim um simples comportamento humano deflagrador de efeitos previamente estabelecidos por lei (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 341).

Este instituto tem sua previsão no artigo 185 do Código Civil Brasileiro, ditando que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber as disposições do Titulo anterior”, demonstrando que estes atos não se confundem com os negócios jurídicos.

Por fim, como prova da adoção da então Teoria Dualista, o Código Civil de 2002 traz o Negócio jurídico no seu Livro III, trazendo no seu Título I “Do Negócio Jurídico”, sendo este tratado a partir do seu artigo 104, enquanto foi visto que o ato jurídico em sentido estrito está disciplinado no artigo 185, que está no Título II deste mesmo Livro.

O negócio jurídico constitui uma categoria, como já citado, desenvolvida pela escola Alemã e que abrange a grande maioria das relações jurídicas cíveis firmadas no âmbito social, tendo o “contrato” como um dos seus principais instrumentos. Está intimamente relacionado a autonomia privada, pois é por meio da vontade que as partes definirão as diretrizes, condições e cláusulas a que o negócio jurídico estará sujeito.

Para se estabelecer um conceito de negócio jurídico capaz de trazer elementos suficientes para identificá-lo, duas importantes teorias são citadas pela doutrina: A teoria da vontade (Willenstheorie) e a teoria da declaração (Erklarungstheorie). Pela teoria da vontade ou subjetiva, a vontade interna é a que produz os efeitos jurídicos; e quando a vontade interna não coincide com a vontade declarada, deve prevalecer a intenção. Esta corrente inclusive se apresenta na ideia consubstanciada no artigo 112 do Código Civil, in verbis:

“Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

Ou seja, em caso de contradição entre a intenção ao se firmar o negócio jurídico e o que foi declarado, será dada mais importância àquela do que a declaração propriamente reduzida a termo. Em contrapartida, pela teoria da Declaração, se defende que deve ser dada validade ao que foi declarado, uma vez que o que é capaz de produzir efeitos jurídicos é o que foi declarado.

Frente a estas teorias, várias definições sobre o que vem a ser negócio jurídico foram desenvolvidas. Conforme a doutrina de Miguel Reale, negócio jurídico recebe a seguinte definição:

Negócio jurídico é aquela espécie de ato jurídico que, além de se originar de um ato de vontade, implica a declaração expressa da vontade, instauradora de uma relação entre dois ou mais sujeitos tendo em vista um objetivo protegido pelo ordenamento jurídico. Tais atos, que culminam numa relação intersubjetiva, não se confundem com os atos jurídicos em sentido estrito, nos quais não há acordo de vontade, como por exemplo, se dá nos chamados atos materiais, como os da ocupação ou posse de um terreno, a edificação de uma casa no terreno apossado etc. Um contrato de compra e venda, ao contrário, tem a forma específica de um negócio jurídico (REALE, 1981, p. 206-207)        

Segundo a doutrina de Maria Helena Diniz, o conceito de negócio jurídico é “o poder de auto-regulação dos interesses que contém a enunciação de um preceito, independentemente do querer interno” (DINIZ, 2004, p. 305). Para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, negócio jurídico seria a “a declaração de vontade, emitida em obediência aos seus pressupostos de existência, validade e eficácia, com o propósito de produzir efeitos admitidos pelo ordenamento jurídico pretendidos pelo agente” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 351). Para Antônio Junqueira de Azevedo, por sua vez, negócio jurídico é:

“Todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide” (AZEVEDO, 2002, p. 16)

Em seu turno, Francisco Amaral traz, com precisão, algumas considerações sobre o negócio jurídico, a saber:

Por negócio jurídico, deve-se entender a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o direito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas, de modo vinculante, obrigatório para as partes intervenientes. De qualquer modo, o negócio jurídico é o meio de realização da autonomia privada, e  contrato é o seu símbolo” (AMARAL, 2002, p.359-360)

Pode-se afirmar então, que o negócio jurídico é a declaração de vontade que visa produzir efeitos jurídicos perseguidos pelos agentes que o firmam de forma voluntária. Estes sujeitos de direito dão origem a determinadas relações jurídicas por meio do exercício voluntário de acordos e em conformidade com a lei.  

Portanto, possuindo o negócio jurídico uma declaração de vontade e que respeite os pressupostos de existência, validade e eficácia exigidos pela norma jurídica, pode-se afirmar que o negócio jurídico está formado à apto para produzir os efeitos que dele se esperam. A vontade interna e a declaração de vontade caminham juntas, pois até se alcançar a formação plena do negócio jurídico, houve a passagem pela vontade interna, pela expressão desta e pela declaração da mesma. Assim, uma declaração de vontade viciada, como ocorre no caso da coação, retira a validade do negócio jurídico firmado, demonstrando que a vontade interna faz parte sim, do conceito de negócio jurídico, o que leva a conclusão que as teorias da vontade e da declaração possuem conteúdos que se agregam e não necessariamente se repelem.


2 - PLANOS DE ANÁLISE DO NEGÓCIO JURÍDICO

A análise dos planos de análise do negócio jurídico foi construída por Pontes de Miranda, ficando conhecida como “Escada Ponteana”. Por esta doutrina, é preciso primeiramente analisar se o negócio jurídico possui todos os elementos essenciais exigidos pela norma jurídica, ou seja, se o que foi firmado pelos agentes no mundo fático possui estrutura suficiente para entrar no mundo jurídico. Em caso afirmativo, tem-se o primeiro degrau da escada superado, que se reconhece por “plano de existência do negócio jurídico”.

A partir da constatação positiva da existência do negócio jurídico, será possível a sequência do estudo para os dois degraus seguintes de análise, quais sejam, dos “planos de validade e eficácia do negócio jurídico”, tornando-se o plano de existência uma verdadeira “preliminar”, da qual dependem os demais planos de análise. Assim, caso o negócio jurídico seja considerado inexistente, não será possível a continuação do estudo do mesmo. Confirmada a existência do negócio jurídico, então é possível avaliar sua validade e sua capacidade de produzir efeitos no mundo jurídico.

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2.1 – Plano de Existência

No plano de existência do negócio jurídico, o que se procura estudar são os elementos essenciais que compõe o negócio jurídico e se eles estão presentes para configurar sua efetiva existência. Para superar o plano da existência e seguir para a análise dos planos da validade e eficácia, é necessário descobrir se o negócio existe juridicamente.

Para tanto, conforme explica Marcos Ehrhardt, deve haver um suporte fático suficiente capaz de tornar o fato existente para o direito.  Este “suporte fático suficiente” seria aquele que preenche todos os requisitos da norma em abstrato para ingressar no mundo jurídico, normas esta que está positivada no Código Civil. A norma presente no Código será o ponto de partida, pois ela é quem vai explicar o que é essencial para preencher este suporte fático e considerar o fato existente no mundo jurídico. A migração do mundo fático para o mundo jurídico é o que se chama de “Juridicização” (EHRHARDT, 2011).

A norma jurídica, portanto, dispõe quais os elementos devem se fazer presentes para que haja a Juridicização do suporte fático e, no caso em análise, para que se possa caracterizar o negócio jurídico. Quando se fala em essencialidade destes elementos, significa que a ausência destes leva a inexistência, por si só, do próprio negócio jurídico; constituem a própria estrutura de qualquer negócio jurídico.

Os elementos essenciais (essentialia negotii) que precisam estar presentes no negócio jurídico para que ele seja declarado existente são a declaração de vontade, agente, objeto e forma. Assim, caso haja uma coação física, por exemplo, não se pode dizer que houve vontade, o que retira um dos elementos do negócio jurídico e o torna inexistente. Da mesma forma, há que haver um agente, pessoa física ou jurídica; um objeto, sobre o qual recai o negócio; e a forma, através do qual a vontade é manifestada. Estes elementos essenciais estão subdivididos ainda em particulares ou gerais. Elementos essenciais gerais são aqueles que estão presentes em todos os negócios jurídicos, como por exemplo, a declaração de vontade. Elementos essenciais particulares são peculiares a alguns negócios jurídicos, como é o caso do preço no contrato de compra e venda.

Em suma, no plano de existência não há qualificação dos elementos para saber se são válidos ou não. Não se questiona a capacidade do agente, a liberdade da vontade, a licitude do objeto. Apenas analisa-se se o suporte fático é suficiente para entrar no mundo jurídico, ou seja, se houve a chamada “Juridicização”; em caso positivo, então, parte-se para o próximo campo de análise que é o plano de validade. O Código Civil de 2002 não trata diretamente do plano de existência do negócio jurídico, uma vez que o artigo 104 do presente diploma legal inicia o tratamento do negócio jurídico pelos seus requisitos de validade. Por isso, para alguns autores como Carlos Roberto Gonçalves, o novo Código Civil não adotou a “Escada Ponteana”, confundindo-se o plano de existência com os elementos do negócio jurídico. De qualquer forma, ausentes os elementos essenciais constitutivos do negócio jurídico, este não existirá para o mundo jurídico (GONÇALVES, 2013).

2.2 – Plano de VALIDADE

Neste plano de análise, é imprescindível seguir os requisitos enumerados no artigo 104 do Código Civil de 2002, que dispõe o seguinte:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Em verdade, estes requisitos são os elementos constitutivos do negócio jurídico, porém, adjetivados. Com relação a capacidade, a sua verificação deve ser feito por meio dos artigos 3º, 4º e 5º do Código Civil Brasileiro, pois é lá que se encontram as condições para a avaliação das capacidades dos agentes no ordenamento jurídico. Quanto ao objeto, pode-se usar como forma ilustrativa para melhor entendimento o fato de o agente comercializar um terreno no planeta Marte; pois bem, o objeto será tido como impossível e o negócio jurídico invalidado. Por fim, com relação a forma, ela deve estar prevista em Lei ou, pelo menos, não proibida.

Contudo, o rol de situações que podem causar invalidade não se restringe a estes, cabendo indicar ainda que a manifestação de vontade livre e de boa fé é um requisito de validade do negócio jurídico, em nome inclusive da boa fé objetiva e da função social. Neste sentido, doutrina Marcos Bernardes de Mello no seguinte sentido:

Essa enumeração legal, como se vê, é insuficiente, incompleta, porque não menciona todas as causas de invalidade, deixando-se de referir-se, explicitamente, à possibilidade do objeto e sua compatibilidade com a moral (cuja falta implica nulidade – Código Civil, art. 145, II), como também à inexistência de deficiência de negócios jurídicos, dentre os quais se incluem os vícios que afetam a manifestação da vontade e outros que comprometem a perfeição e causam a invalidade, por anulabilidade, do ato jurídico (Código Civil, art. 147), além da anuência de outras pessoas, que, em certas situações, é exigida. (MELLO, apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 370)

Assim, a manifestação de vontade não pode estar maculada de má fé ou ter sido feita sob qualquer tipo de fraude. O Código Civil traz um rol de vícios do negócio jurídico que atingem justamente a livre manifestação da vontade, provocando ora a nulidade, ora a anulabilidade do negócio jurídico.

Estes vícios trazidos no atual Código Civil de 2002, que coincidem com os mesmos vícios que eram previstos no Código Civil anterior de 1916, são os seguintes: Erro, previsto no artigo 138 do CC/02; o Dolo, previsto no artigo 145 do CC/02; a Coação, prevista no artigo 151 do CC/02; a Simulação, prevista no artigo 167 do CC/02; e a Fraude contra credores, prevista no artigo 158 do CC/02. Então, o Código Civil em vigor acrescentou ainda mais dois novos institutos que viciam o negócio jurídico, que são a Lesão, prevista no artigo 157 do CC/02 e o Estado de Perigo, previsto no artigo 156 do diploma legal, sendo que este último será o objeto principal de análise deste trabalho mais a frente.

Portanto, estes são os parâmetros que podem provocar a invalidade de um negócio jurídico. A invalidade, em verdade, é uma espécie de sanção, pois o agente que celebrou o negócio não usufruirá das consequências que gostaria quando celebrou o ato. É o caso de um contrato de compra e venda de um imóvel celebrado por um agente absolutamente incapaz; este contrato não será considerado válido, pois um dos requisitos da norma, que é a exigência de agente capaz para celebrar o negócio jurídico, não foi preenchido. A invalidade do ato jurídico pode provocar no atual sistema jurídico brasileiro, duas sanções: nulidade ou anulabilidade; e quem determina quando estes atos serão considerados nulos ou anuláveis é o legislador.

Diante de um ato nulo, pode o juiz, assim que tomar conhecimento do ato, desfazer o ato, agindo de ofício e independente de provocação. O vício presente é insanável, imprestável, não cabendo nem convalidação com o decurso do prazo, conforme previsão expressa do artigo 169 do CC/02. Os artigos 166 e 167 do Código Civil trazem o rol de situações em que o negócio jurídico é considerado nulo, in verbis:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

IV - não revestir a forma prescrita em lei;

V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.

Da leitura dos dois artigos, tem-se enumeradas todas as condições que tornam um negócio jurídico nulo. Dos vícios que maculam a manifestação de vontade, percebe-se que apenas a simulação é tratada como caso de nulidade absoluta. É importante ressaltar que o ato nulo, como jamais poderia ter produzido efeitos, sua anulação terá efeitos ex tunc, ou seja, a anulação retroagirá a data de sua criação e nenhum efeito decorrerá da sua prática. Todos os efeitos que dele emanaram deverão ser extirpados do ordenamento jurídico. Além disso, é imprescindível lembrar que, apesar da nulidade absoluta não convalesce pelo decurso do tempo e ser imprescritível, os efeitos patrimoniais eventuais que decorram do negócio jurídico são passíveis de prescrição. Até porque, se assim não fosse, a outra parte do negócio ficaria eternamente sujeita ao arbítrio da outra, o que geraria insegurança jurídica.

Por outro lado, quando tratamos da Nulidade Relativa ou Anulabilidade, o magistrado não pode atuar de ofício; apenas mediante provocação da parte prejudicada, conforma artigo 177 do CC/02. Portanto, o vício até pode ser sanado, desde que a parte interessada não deixe passar tempo excessivo capaz de permitir a ocorrência da chamada “convalidação”. A “convalidação” acontece quando o prazo para alegar o vício que torna o ato anulável já transcorreu sem provocação das partes. Ainda, conforme artigo 172 do CC/02, o negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro. Em suma, o vício presente no negócio jurídico não necessariamente levará o mesmo a sua invalidação, podendo o mesmo ser sanado (DINIZ, 2004).        

Caso o negócio jurídico seja questionado e anulado, o mesmo produzirá efeitos até o momento em que for retirado do ordenamento, pois a eficácia da nulidade tem efeitos ex nunc. Portanto, a cessação dos efeitos se dará a partir do momento do reconhecimento da nulidade via sentença anulatória, mas os efeitos que já ocorreram terão validade, o que a doutrina chama de “Eficácia Interimística”. O artigo 171 do Código Civil dispõe algumas situações de anulabilidade, conforme descrito abaixo:

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:

I - por incapacidade relativa do agente;

II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.

Além disso, o prazo decadencial para se pleitear essa anulabilidade é de 4 anos,conforme artigo 178 do CC/02. Porém, nos casos em que a lei disciplina que determinado ato é anulável, mas sem determinar o prazo para impugná-lo, o artigo 179 do CC/02 determina que o prazo será e 02 anos. É o caso do artigo 496 do CC/02, onde o mesmo diz que a venda feita de ascendente para descendente é anulável, mas não diz qual o prazo; então, o mesmo será de 02 anos.

Os atos anuláveis podem sofrer de “vícios de consentimento” ou “vícios sociais”. Nos vícios de consentimento, temos o erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo, que atingem a manifestação livre da vontade. No vício social, temos a fraude contra credores (e também a simulação), uma vez que o dano além de ser direcionado às partes, também atinge a sociedade (EHRHARDT, 2011).

2.3 – Plano de EFICÁCIA

A eficácia do negócio jurídico está relacionada a sua capacidade de produzir efeitos. Assim, o negócio jurídico pode existir, ser válido e desde já produzir os efeitos que dele se espera. Em contrapartida, pode ser que este negócio jurídico esteja condicionado a algum elemento que pode interferir nesta eficácia, como é o caso da presença do Termo, Encargo ou Condição. São os chamados “elementos acidentais”, pois podem ou não ocorrer no negócio jurídico.

O Termo está previsto no artigo 131 do CC/02, fazendo com que a eficácia do negócio jurídico dependa da ocorrência de um evento futuro e certo, como por exemplo, ocorre quando se subordina os efeitos do negócio jurídico ao alcance de certa data ou com a morte de determinada pessoa. Como se percebe, são eventos futuros e certos que impedem que o negócio jurídico, apesar de existente e válido, possa começar a produzir efeitos. (TARTUCE, 2013).

A Condição é também um elemento acidental do negócio jurídico a qual suspenderá a eficácia do negócio jurídico até que um evento futuro e incerto ocorra. Sua previsão está no artigo 121 do CC/02 e a diferença entre esta e o Termo é que na Condição, não há certeza que o evento futuro ocorrerá. Por fim, temos o Encargo, outro elemento acidental do negócio jurídico. Por meio dele, impõe-se que ao beneficiário de um negócio jurídico um ônus para que tenha direito a algo maior. Possui previsão nos artigos 136 e 137 do CC/02.

Por meio de toda a contextualização introdutória feita até este momento sobre Negócio Jurídico e seus planos de análise, é possível efetivamente analisar o problema acerca da invalidade do negócio jurídico viciado na manifestação de vontade decorrente de um estado de perigo. Como já mencionado, o estado de perigo prejudica a livre manifestação de vontade, o que, segundo o ordenamento cível brasileiro, provoca a anulabilidade do negócio jurídico. Contudo, conforme visto na análise dos planos de existência e validade, a manifestação de vontade faz parte do núcleo principal de todo negócio jurídico, integrando seu próprio conceito. Portanto, questionar se o vício na manifestação de vontade, que é ocasionada pelo estado de perigo, provoca a anulabilidade ou a nulidade absoluta do negócio jurídico é um estudo que se impõe, até mesmo pelas consequências práticas que essa conclusão provoca no mundo jurídico.

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Sobre a autora
Marta Luiza Leszczynski Salib

Advogada. Mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento. Pós Graduada em Direito Civil com MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Graduada em Direito e em Relações Internacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIB, Marta Luiza Leszczynski. O “estado de perigo” como causa de nulidade absoluta do negócio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4268, 9 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31313. Acesso em: 18 abr. 2024.

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