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Cidadania tutelada

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A cidadania plena não pode ser simplesmente concedida; é uma expressão de poder e controle sobre os governantes, não apenas formalmente.

1. Nada é mais traiçoeiro do que se acreditar saber o exato significado de palavras qualificadas como "corriqueiras", de tão utilizadas no quotidiano. Quando paramos para refletir ou somos questionados, verificamos saber menos sobre elas do que sabemos a respeito das que se mostram raras, sofisticadas e esotéricas.

Esse risco se torna ainda muito maior entre os juristas. Não só acreditamos saber o real significado do "varejo" de nosso jargão técnico, mas terminamos por acreditar nas palavras, enquanto apenas palavras, utilizando-as à moda de instrumentos, como Se pudessem produzir algo, ou fossem matéria prima com que se produzisse algo, à semelhança do barro, da madeira e da pedra.

As palavras, em verdade, apenas permitem que o nosso sonho, nosso desejo, nosso querer e nosso saber viajem para fora de nós mesmos e aterrissem no outro, abastecendo-se para a viagem de volta, com o sonho, o desejo, o querer e o saber que povoam o seu mundo pessoal.

As palavras são apenas os sacramentos do significado e da intenção que imprimimos à nossa conduta e comunicamos aos outros, buscando entretecer o mundo da convivência humana.

Realidade primária somos nós, os homens criadores de realidade com seus atos concretos, que moldam a paisagem e fazem a história. E quando dissociamos a palavra de suas raízes existenciais, é como se deixássemos o planeta Terra e iniciássemos uma viagem aos páramos" celestes, que não se sabe, com segurança, o que sejam, onde ficam e para que servem. Deixa-se o que é para ir em direção ao que nem mesmo sabemos se poderá ser, semelhando motoristas loucos, que dirigem freneticamente, de um lado para o outro, caminhões vazios. Fatigamo-nos levando nada de lugar nenhum para lugar nenhum.

A palavra cidadania é uma dessas. Ela está presente em nosso discurso demagógico, em nossa fundamentação despistadora, em nossa pregação cívica, em nosso quotidiano revoltado, em nosso dizer dogmático e em nosso lirismo militante. Onipresente e emocionalmente forte, é ela realmente útil? Ou para que seja útil reclamará reflexão crítica sobre suas matrizes existenciais, seus vínculos com o que realmente é e não com aquilo que, pairando muito acima do que os olhos podem ver e o entendimento pode apreender, simplesmente nos expatria do que é, para nos internar, alienados, no mundo do faz de conta? Buscando trazer de volta a nave à superfície da terra, ou tentando realizar isso na medida de minhas forças, é que me propus estas reflexões e vou desenvolvê-las.


2. Qual o dado mais imediato que se impõe a nossa consciência? Nosso ser individual, o homem concreto e singular que somos. É o nosso corpo que experimenta o sofrimento, nosso coração é que anseia, nossa vontade é que se realiza ou se frustra; são nossos os sonhos que se estiolam e as esperanças que estimulam; nós é que morremos e encerramos nosso "aparecer" em algo que nos precedeu e nos sucederá, inexoravelmente. Só o homem, como indivíduo, tem destino. E só ele sabe de sua própria morte.

Nada se pode tentar compreender, consequentemente, sem se levar em conta o homem que compreende e o homem a quem se destina a compreensão. O pensar, em qualquer de suas manifestações, como o conhecer, é algo específico do homem e só explicável a serviço do homem.

Ao lado dessa evidência, entretanto, há uma outra que por igual se impõe - a sociedade. É no espaço social que se realiza a nossa condição humana. Hominizamo-nos socializando-nos. A humanidade específica do homem e sua socialidade estão inexoravelmente entrelaçadas: o homo sapiens é, sempre, e na mesma medida, homo socius. Como acentua HANNAH ARENDT, quando o homem se entrega ao puro pensamento, por qualquer razão que seja e independentemente do assunto, ele vive completamente no singular, ou seja, está completamente só, como se o Homem, e não os homens, habitasse o planeta, mas nossa fé perceptiva como designou MERLEAU-PONTY - nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber, depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e de que por eles é reconhecido. Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos capazes nem mesmo de ter fé no modo pelo qual aparecemos para nós mesmos. 1

Assim, a abertura para o mundo que somos, enquanto liberdade (ser individual) cumpre-se, necessariamente, no contexto fechado que é a ordem social. Duas evidências que se impõem a nos e não podem ser ignoradas. Uma dada ordem social precede qualquer desenvolvimento individual orgânico; o que importa dizer-se que até ordem social apropria-se, previamente e sempre, da abertura para o mundo que somos como liberdade, corno indivíduo, embora essa abertura, essa liberdade sejam intrínsecas à construção biológica do homem. Destarte, é possível dizer-se que "a abertura para o mundo, biologicamente intrínseca, da existência humana, é sempre, e na só verdade deve ser, transformada pela ordem social em um relativo fechamento ao mundo, ainda quando esse fechamento (enclausuramento) nunca possa aproximar-se do fechamento da existência animal, quando mais não seja, por causa do seu caráter humanamente de produzido e, por conseguinte, ‘artificial’ o que não impede, entretanto, na maioria das vezes, seja ela capaz de assegurar a direção e a estabilidade para a maior parte da conduta humana". 2

Essas duas evidências nos põem o problema, cuja solução é decisiva para todo o nosso pensar sobre o homem. O que precede ou o que deve prevalecer, o indivíduo ou a sociedade? O homem, como ser individual, carregado de destino, marcado pela consciência de ser um dentre os outros, ou a sociedade, que o precede e conforma, se pa não de modo inelutável, irias sempre de modo significativo, enquanto o ser cuja hominização só se cumpre sendo ele um como os outros?

A procura de predominância ou exclusividade é tarefa inútil, pois indivíduo e sociedade se imbricam dialeticamente e de forma essencial, podendo-se afirmar, com CASTORIADIS, que nessa relação entre uma sociedade instituída, que ultrapassa infinitamente a et totalidade dos indivíduos que a compõem (mas que só pode ser te efetivamente realizando-se nos indivíduos que ela fabrica) e esses indivíduos, "podemos ver um tipo de relação inédito e original, impossível de pensar sob as categorias do todo e das partes, do conjunto e de seus elementos, do universal e do particular etc. Criando-se, a sociedade cria o indivíduo e os indivíduos em e pelos quais somente ela pode ser efetivamente. A partir da psiqué, a sociedade instituída faz a cada vez indivíduos - que como tais não podem fazer mais nada a não ser a sociedade que os faz." 3

Tornando, assim, transparentes as matrizes de meu pensamento, fica evidente que repudio todo organicismo, todo funcionalismo absoluto, todo estruturalismo eliminador do homem como referência, todo coletivismo despersonalizador, enfim todo pensar que exclui o homem como realidade em sua dimensão pessoal, autárquica, irrepetível.


3. Explicitadas as premissas, particularizemos nossa reflexão.

Se a ordem social é produzida pelos homens e se eles a produzem sob fortes condicionamentos que lhe são postos, previamente, pela sociedade instituída, essa ordem social, salientam os estudiosos, é resultante de um processo que se inicia com a habitualização das condutas, as quais, por sua vez, se institucionalizam, ao se revestirem de dimensão social significativa, instituições que operam, por seu turno, mediante indivíduos investidos em papéis socialmente desempenhados.

Tipificam-se as condutas (instituições) e tipificam-se os atores (papéis).

Podemos, assim, falar de papéis quando a tipificação ocorre no contexto de um acervo objetivado de conhecimentos comuns a urna coletividade de atores, revelando-se a construção da tipologia de papéis como correlato necessário da institucionalização da conduta. Os papeis, consequentemente, representam a ordem institucional, no sentido de que os papéis tornam possível a existência das instituições continuamente, como presença real na experiência dos indivíduos. 4

A conduta, por força de sua repetição, faz-se hábito; e este, uma vez socializado, faz-se instituição. Não é a instituição uma coisa, algo em condições de subsistir independentemente do homem. Ela somente é na medida em que os homens a representam e o fazem mediante sua incorporação em papéis que a tomam presente, dão ser à instituição.

Essa representação das instituições (pelos papéis) entretanto, como todas as outras formas de representação, toma-se morta, (isto é, destituída de realidade subjetiva) se não continuamente vivificada na conduta humana real. Destarte, apreender um papel não é simplesmente adquirir rotinas que são imediatamente necessárias para o desempenho exterior. É preciso que seja também iniciado nas várias camadas cognoscitivas, mesmo afetivas, do corpo de conhecimentos que é direta e indiretamente adequado a este papel. Sem a internalização dos papéis não há adequado desempenho, consequentemente, eficaz institucionalização se é que de instituição se pode falar na espécie, quando isso ocorre.

Por conseguinte, também aqui, aquela ubicação dialética entre indivíduo e sociedade se faz presente. A sociedade só existe quando os indivíduos têm consciência dela, ao tempo em que a consciência individual é socialmente determinada. Assim, no particular das instituições e dos papéis, podemos dizer que a ordem institucional é real apenas na medida em que é realizada pelos indivíduos (papéis) e que, por outro lado, os papéis são representativos de uma ordem institucional que define seu caráter (incluindo seus apêndices de conhecimento) e do qual deriva o sentido objetivo que possui.

Falar-se de instituição s m que existam atores sociais adequados, é uma falácia, como falácia é mencionarmos atores sociais quando faltam sujeitos capazes de vivificar os respectivos papéis na conduta humana real.

Conseqüentemente, não é o dizer sobre as instituições, nem o formalizá-las normativamente e em termos de linguagem o que é capaz de efetivamente produzi-las, sim a real existência de atores sociais, desempenhando os papéis que dão ser, realidade, existência (que representam) a instituição.

Também aqui, nós, juristas, experimentamos a insopltada tentação de pensarmos palavras como realidades sociais. Falamos de instituições porque formalmente disciplinadas, como se o dizer sobre elas lhes desse historicidade, como se o normatizá-las tivesse o condão de fazê-las socialmente representadas e, por força dessa a ilusão, terminamos construindo castelos na areia: os nossos discursos jurídicos inconseqüentes.


4. Os papéis que desempenhamos, não decorrem de fatores biológicos. Biologicamente, somos altos e baixos, louros e morenos, brevilíneos e longilíneos, não brasileiros ou suecos, militares ou comerciantes. Esses papéis têm sua matriz no social e no que nele funcionalmente realizamos, atividades tipificadas que desempenhamos como decorrência da necessidade de sobreviver convivendo, imposta aos homens.

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Por outro lado, os papéis que representamos marcam a nossa personalidade e o nosso modo de ser pessoal, mas, por igual, o nosso modo de ser pessoal, somatório do físico e do psíquico que somos como indivíduo e de como socialmente fomos moldados, singulariza-nos entre os atores sociais implicados no mesmo que fazer institucional. Nem podemos esquecer que nenhum de nós, normalmente, desempenha na sociedade um único papel; e os muitos papéis por nós desempenhados se imbricam mutuamente, influenciam-se e são influenciados. Sem dúvida que sendo empresário e pai comunico ao meu modo paterno de ser algo que me diferencia, como pai, do que sendo operário e pai comunicaria ao meu modo de ser paterno. E se biologicamente o fazer amor é idêntico no relacionamento entre parceiros que são executivos e parceiros que são operários, o certo é que a condição de executivo ou de operário imprimirá ao fazer amor marcas que o diferenciará culturalmente, matizando o fato biológico com rituais, significativos e sentidos diferenciados.

Essa mesma recíproca imbricação ocorre entre os papéis relacionados com as funções básicas da sociedade. Há papéis que se vinculam a nossa atividade econômica, outros a nossa atividade política, artística, etc. e em nenhum deles somos, puramente, atores econômicos ou políticos etc. Somos magistrados não como juristas puros, sim como homem-síntese, resultado da influência dos papéis que desempenhamos e do que, como ser psíquico-cultural, imprimimos aos papeis por nós desempenhados. E é desse mesmo modo que somos eleitores, pais, trabalhadores, intelectuais, cidadãos. E também aqui as palavras são pobres e impotentes para traduzir a realidade complexa que buscam significar, e se nos deixarmos seduzir por elas, enquanto apenas palavras, conceitos, definições, proposições, asserções, corremos o risco de falar nada sobre nada.

Aqui, como antes, os juristas são os mais tentados a esse tipo de exercício alienante, quando começamos a trabalhar conceitos dogmáticos, processos hermenêuticos e princípios fundamentais desapercebidos de que sujeitos de direito, interpretação extensiva e boa fé, cidadãos, autonomia privada e quejandos transitam sobre a realidade como linhas paralelas, sem nunca se encontrarem, salvo se delas fizermos o espelho que reproduz, sem deformações descaracterizadoras, a realidade que neles se contemple.


5. Por outro lado, fenômeno presente em toda sociedade é o poder. Esqueçamos as muitas divergências existentes a respeito do que seja poder. Aqui, trabalhamos com o poder entendido como à capacidade, para qualquer instância que seja (pessoal ou impessoal) de levar alguém (ou vários) a fazer (ou não fazer) o que, entregue a si mesmo, ele não faria necessariamente (ou faria talvez). E se afirmamos, com acerto, que a sociedade é pressuposto, essencial, da condição humana, o poder, devemos reconhecê-lo, é pressuposto, também essencial, à organização da sociedade. Se conviver for um mal, será um mal necessário; também o poder, se for um mal, será um mal necessário.

O poder não é uma substância, como adverte FOUCAULT, algo que se detém, sim uma relação. Também corno ele podemos aceitar que o poder se estende a todas as relações sociais, formando uma intrincada rede de micropoderes. Mas, corno adverte LEBRUN, convém perguntar-nos se FOUCAULT, ao enfocar em seu microscópio os mil pequenos poderes que nos prendem sem o sabermos, não estará se precipitando em depreciar a matriz ordem l obediência (eu tenho poder, portanto você não o tem), matriz do poder político.

É desse micropoder que cuidaremos. É ele, poder político, o organizador da coerção, que assegura, em ultima instância, a sobrevivência da ordem (social) de dominação instituída, ao lado do poder econômico que lhe dá o pressuposto material, e do poder ideológico que organiza o consenso (justificação) e implementa a persuasão.

O direito não é uma instância à parte, super ou infra estruturalmente relacionada com os poderes referidos, sim o que os integra para formação da ordem social impositivamente implementável.

No campo do político, as instituições moldadas pelo fato do poder (micro relações pessoais de dominação, habitualizadas) se relacionam com os papéis básicos de dominadores e dominados, governantes e governados etc. E se as instituições e os papéis, g atendida a peculiaridade de cada momento histórico, sofreram transformações, o fato bruto do poder continuou sempre o mesmo, substancialmente sendo o que é - dominação. 7


6. Com toda a precariedade das generalizações muito abrangentes, poderemos tentar definir formas básicas de relações de poder político.

Primeira delas, aquela em que o poder é absoluto e em que o dominado é expropriado da sua condição de sujeito e equiparado a uma coisa (relação senhor escravo). Uma segunda, aquela em que o poder permanece absoluto mas o dominado não é expropriado da sua condição de sujeito, ainda quando excluído da condição de proprietário (é a relação de servidão na qual se contrapõem senhor e servo). Há uma terceira, em que há distribuição vertical de poder, havendo possibilidade do dominado, aqui, ser o dominador adiante, todos reconhecidos como sujeitos e todos admitidos à propriedade (é a relação senhor ou suserano e vassalo, exercendo seu poder em termos absolutos em cada nível de suserania). Por fim, uma relação de poder estabelecida entre iguais, teorizado o poder como função, serviço e somente exercitável na medida em que for deferido pela vontade dos que devem obediência, que se permitiram ser governados em benefício comum. É neste intento que surge o cidadão, aquele que é governado sem poder ser oprimido. É só nesse espaço institucional que se faz possível o desempenho desse papel social (o papel político de cidadão). Corno acentua PRZEWORSKI, a democracia não é nem mesmo o poder do povo, a transferência da soberania ao povo, abatido o Príncipe, mas sim, a destruição de qualquer Príncipe, qualquer Senhor ou Soberano, encarado o poder político pragmaticamente, corno um sistema de negociações e de equilíbrios parciais e instáveis entre interesses diferentes e opostos. 8

Falar-se de cidadania sem esses pressupostos, é violentar-se ou manipular-se a realidade, alienar para dominar, manipular ideologicamente com vistas a desmobilizar movimentos associativos e arrefecer pretensões, de grupos ou de indivíduos, como tentaremos melhor analisar adiante.


7. Pode-se dar à palavra Cidadão um significado mais restrito, associando-a a nacionalidade. Cidadão seria, nesse entendimento, o indivíduo que se vincula politicamente a um determinado Estado, entendendo-se cidadania como o laço que une juridicamente o indivíduo ao Estado e até certo ponto o Estado ao indivíduo. Ou, numa definição estritamente dogmática - laço jurídico-político de direito público interno, que faz o indivíduo um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado.

A Enciclopédia del diritto, por exemplo, no seu verbete cittadinanza, esgota-se numa pura reflexão sobre nacionalidade. Essa ótica, contudo, é muito pobre. Melhor a que, sem descartar o pressuposto da nacionalidade, empresta ênfase aos direitos que dela decorrem. Mais exatos, portanto, os que, como HAURIOU, imbricam na cidadania as liberdades políticas - direito de participação e as liberdades civis - direito de autodeterminação. O vínculo nacional, servos e vassalos também o tiveram, mas o participar da vida política do Estado e fazê-lo vendo respeitada a esfera da sua autonomia individual, seu direito de realizar-se como pessoa, seu direito de cumprir, com independência e eficácia, seu destino pessoal, no quadro de urna sociedade organizada, esta é a novidade que pede seja enfatizada.9

Em nosso século, algo foi acrescido a esse binômio - direitos civis, direitos políticos os denominados direitos sociais. Se antes os direitos políticos de participação objetivavam a compartilhada definição dos interesses tutelados e a institucionalização do direito de resistir às ingerências do poder na esfera da autonomia privada dever de abstenção, a dimensão nova dos direitos sociais de larga o âmbito do poder político, que se mantendo como direito à participação, abrange, agora, também, o direito de exigir do Estado prestações asseguradoras de condições sociais que propiciem a igualdade substancial entre os cidadãos, somada àquela igualdade formal antes já proclamada e assegurada.

Será um erro pensar-se que essa dimensão do social em termos de prestações devidas aos indivíduos, capaz de lhes assegurar vida humana adequada, é fenômeno apenas identificável na idade contemporânea. Se podem ter faltado, antes, os pressupostos para sua juridicização, sempre existiram com suportes éticos dotados de alto poder de impositividade. A família, o clã, a corporação de ofício disso cuidaram antes, mas sempre o fizeram a nível privado. Quando a economia capitalista retirou das famílias e das corporações, a função econômica voltada para atendimento das necessidades humanas de subsistência, deferida às empresas (em função do mercado), tornando-a social sem fazê-la política (não estatal), quando isso ocorreu aqueles que, tradicionalmente, foram os agentes da seguridade social, perderam a capacidade de permanecer atendendo a essa função. E se as empresas - os novos agentes econômicos, não assumiram essa responsabilidade, mais não restava, para impedir a catástrofe, senão assumisse o Estado, progressivamente, o papel de Estado Providência, Estado do Bem Estar Social, intervencionista e paternalista, o que acarretaria, necessariamente, o estreitamente da autonomia privada, conseqüentemente, de uma das dimensões da cidadania.

Cidadania, portanto, engloba mais que direitos humanos, porque além de incluir os direitos que a todos são atribuídos, em virtude de sua condição humana, abrange, ainda, os direitos políticos. Correto, por conseguinte, falar-se numa dimensão política, numa dimensão civil e numa dimensão social da cidadania. Ser cidadão implica na efetiva atribuição de direitos nas três esferas mencionadas, porque careceria de sentido participar do governo sem condições de fazer valer a própria autonomia, bem como sem dispor de instrumentos asseguradores das prestações devidas, pelo Estado, em nome da igualdade de todos.

Esta seria uma cidadania plena, comportando, ao lado dela, cidadanias menos abrangentes, mais pobres?

Acreditamos que, na prática, quando nada significativamente, seja a cidadania plena mais um ethos que uma realidade. Entre o zero da ausência total e o cem da cidadania plena, há gradações que devemos identificar em cada momento histórico e em cada espaço político específico.

Os fatores que limitam a cidadania plena é o que tentaremos analisar a seguir. Todos eles formas de incapacitarão que buscaremos distinguir e compreender.

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Sobre o autor
José Joaquim Calmon de Passos

Falecido em 18 de outubro de 2008. Foi advogado e consultor jurídico em Salvador (BA), coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS), professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, José Joaquim Calmon. Cidadania tutelada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3196. Acesso em: 18 abr. 2024.

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