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Competência territorial da Justiça Federal e possibilidade de escolha de foro nas causas intentadas contra a União.

Anotações sobre a interpretação do STF quanto à aplicabilidade do § 2º do art. 109 da Constituição às autarquias federais e fundações

14/10/2014 às 11:10
Leia nesta página:

Estudo sobre a competência territorial e o recente entendimento do Plenário do STF acerca da correta interpretação do § 2º do art. 109 da Constituição de 1988, que disciplina as múltiplas possibilidades de escolha de foro nas causas contra a União.

Na tradicional distribuição de competências operada pelo Código de Processo Civil, alguns critérios orientam a atividade do legislador. Segundo os processualistas, tais critérios reportam-se ora a elementos objetivos da demanda deduzida em juízo (em razão da matéria, em razão da pessoa ou do valor da causa em algumas hipóteses, como nos Juizados Especiais), ora a elementos funcionais (graus de jurisdição, fases do procedimento, objetivos do juízo etc), ora a elementos territoriais.  

No caso da competência territorial, o critério determinante para a distribuição do poder jurisdicional relaciona-se com aspectos eminentemente geográficos. Importa, sobretudo, o lugar para a fixação do juízo onde se desenvolverá a atividade judicante. Assim, é nesse lugar (nesse território) que se admite o processamento da causa.

Apesar disso, a distribuição da atividade jurisdicional em razão do lugar não é absoluta. Diferentemente de outros critérios competenciais, como o funcional ou o firmado em razão da matéria, o CPC previu que, de ordinário, a competência territorial admite modificação, nos termos do estatuído no art. 102 do diploma codificado:

Art. 102. A competência, em razão do valor e do território, poderá modificar-se pela conexão ou continência, observado o disposto nos artigos seguintes.  

Como a competência territorial pode ser modificada, diz-se em doutrina que se trata de hipótese de competência relativa, a autorizar sua derrogação pela vontade das partes. Isto é, a sua inobservância pela parte autora gera tão somente nulidade relativa, a acarretar a obrigação de o réu argui-la mediante o oferecimento de exceção no prazo de 15 dias, contado do fato que ocasionou a incompetência (CPC, art. 112 c/c arts. 304 e 305). Caso o réu não argua a incompetência relativa no prazo da resposta, dar-se-á a preclusão do seu direito. Nessa hipótese, prorroga-se (amplia-se) a competência do juízo que, não obstante não fosse originariamente competente para o conhecimento da causa e consequente julgamento da lide, agora passa a sê-lo pela modificação da regra competencial-territorial não arguida pelo réu legitimado a fazê-lo.       

Ainda nesse plano, é de rigor anotar que o Código de Processo Civil cuidou de estipular algumas regras de determinação da competência baseadas no lugar em que a causa deve ser processada. Elas estão elencadas, em linhas gerais, nos arts. 94 e 95 do CPC, que adotam a regra geral, respectivamente, do foro do domicílio do réu nas demandas que envolvam direitos pessoais e direitos reais mobiliários e do foro da situação da coisa nas demandas reais imobiliárias. In verbis:

Art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu.

§ 1º Tendo mais de um domicílio, o réu será demandado no foro de qualquer deles.

§ 2º Sendo incerto ou desconhecido o domicílio do réu, ele será demandado onde for encontrado ou no foro do domicílio do autor.

§ 3º Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer foro.

§ 4º Havendo dois ou mais réus, com diferentes domicílios, serão demandados no foro de qualquer deles, à escolha do autor.

Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova.

É evidente que a previsão de regras gerais determinantes da distribuição da competência territorial nos arts. 94 e 95 do CPC não exclui a possibilidade de outros diplomas legais estabelecerem regramentos próprios de fixação da atividade jurisdicional em razão do lugar. É o que sucede, por exemplo, com o Código de Defesa do Consumidor, que no seu art. 101, I, especifica o seguinte:

       Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

        I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;

A expressão “pode” quer demonstrar que, de ordinário, a ação intentada com fundamento nas relações jurídico-processuais consumeristas admite sua propositura no domicílio do autor. Contudo, não se trata de regra de competência absoluta, senão de mera faculdade que visa a beneficiar a parte mais fraca da relação de consumo, isto é, o consumidor demandante. Logo, a regra geral inscrita no caput do art. 94 do CPC, a sinalizar a competência territorial no domicílio do réu (demandado), pode vir a ser validamente observada.   

Mas não é só o legislador subalterno que se propõe a discriminar a competência dos órgãos jurisdicionais com fundamento no território. Essas regras algumas vezes também são estipuladas no próprio texto constitucional. Nesse sentido é que devemos interpretar os parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 109 da Constituição. Vejamo-los:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(omissis)

§ 1º - As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte.

§ 2º - As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.

§ 3º - Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

(...)

A leitura desses parágrafos revela que o legislador constituinte criou regras de competência territorial da Justiça Federal no bojo da própria Constituição. Dessa maneira, assumiu a incumbência de delimitar a competência geográfica do órgão judicante, em detrimento às regras inscritas nos diplomas hierarquicamente inferiores.     

No caso da regra estabelecida no § 2º do art. 109, por exemplo, a intenção do legislador constituinte foi a mais nobre possível: facilitar o acesso do jurisdicionado à Justiça Federal. Eis o motivo pelo qual as causas intentadas contra a União poderão ser aforadas (1) na seção judiciária em que for domiciliado o autor; (2) no foro onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda; (3) no foro onde esteja situada a coisa; ou (4) no Distrito Federal. Em qualquer desses lugares em que a demanda for proposta contra a União o juízo federal será plenamente competente para o processamento da causa. Não faz sentido, assim, objetar como matéria de defesa a incompetência relativa do órgão jurisdicional.

Malgrado esse raciocínio, em 2010, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) interpôs o RE 627.709/DF, para alegar, perante o STF, ofensa à Constituição Federal no acórdão lavrado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que havia reconhecido a competência da Subseção Judiciária de Passo Fundo (RS) para processar e julgar demanda proposta por uma empresa de vigilância contra a autarquia. Consoante argumentou o presentante jurídico do CADE, a interpretação a ser dada ao § 2º do art. 109 da Constituição deveria ser restringida, não se aplicando às autarquias e fundações públicas de direito público (autarquias fundacionais). Para o recorrente, o parágrafo em comento alude tão-só à União, não aludindo aos entes da Administração Pública Indireta. Logo, a empresa de vigilância não poderia ajuizar ação contra o CADE perante a Subseção Judiciária de Passo Fundo, mas sim perante o foro do Distrito Federal, onde a autarquia tem sede, tal como proclama o Código de Processo Civil (CPC, art. 100, IV, a).

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Em março de 2011, o Plenário Virtual do STF reconheceu a repercussão geral da matéria, a qual veio a ser julgada na sessão plenária do dia 20 de agosto de 2014.

Ao analisar o recurso, a maioria dos ministros concordou em seguir o voto do relator, Min. Ricardo Lewandowski, que defendeu interpretação do dispositivo em sentido oposto ao defendido pelo CADE. Segundo a tese prevalecente, as possibilidades de escolha de foro, previstas no art. 109, § 2º, da CF/88, têm o nítido propósito de beneficiar o polo da demanda que litiga contra a União. Sendo assim, tal norma aplica-se às autarquias e fundações.

Nota-se que a Corte Suprema brasileira, ao julgar o RE 627.709/DF, deparou com tese recursal extraída de regras de competência territorial estabelecidas no próprio texto da Constituição. A intenção do recorrente era evitar que demandas pudessem ser ajuizadas fora da sua sede, isto é, no Distrito Federal. Caso prevalecesse tal entendimento, na prática, o jurisdicionado, sempre que pretendesse litigar contra entes da Administração Pública Indireta da União (autarquias e fundações), ver-se-ia tolhido das múltiplas possibilidades de escolha de foro e, portanto, teria dificultado inapelavelmente o seu acesso à prestação jurisdicional federal.

É claro que essa interpretação de caráter restritivo não foi a pretendida pelo Poder Constituinte Originário. Ao criar regras de competência territorial no bojo da Constituição, fê-lo com o intuito de afastar as regras processuais subalternas. Imbuído de indiscutível finalidade democrática, o legislador constituinte quis simplificar o acesso ao Poder Judiciário, e não o contrário. Além disso, o não cabimento da tese esposada pelo CADE também se verifica pela interpretação literal da redação normatizada, pois, se o legislador houvesse pretendido excluir as autarquias e fundações da faculdade de escolha do foro federal inscrita no § 2º do art. 109, tê-lo-ia feito expressamente.      

São esses os motivos conducentes da tese que afinal veio a negar provimento ao RE 627.709/DF. Abraçada pela maioria dos ministros, a interpretação de que o § 2º do art. 109 da Constituição de 1988 aplica-se às autarquias e fundações  (autarquias fundacionais) vai ao encontro do direito fundamental de pleno acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), que conforma o caráter democrático do texto constitucional vigente.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, RE 627.709/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. 20/08/2014, p. (aguardando publicação no DJe). Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

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Sobre o autor
Rafael Theodor Teodoro

Graduado em Direito pela UFPA. Especialista em Direito Constitucional, Direito Tributário e Ciências Penais pela Universidade Uniderp/Anhanguera. Ex-Advogado. Ex-Analista Judiciário. Atualmente atua como Analista/Assessor de Promotor de Justiça, função que exerce após aprovação em concurso público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEODORO, Rafael Theodor. Competência territorial da Justiça Federal e possibilidade de escolha de foro nas causas intentadas contra a União.: Anotações sobre a interpretação do STF quanto à aplicabilidade do § 2º do art. 109 da Constituição às autarquias federais e fundações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4122, 14 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32377. Acesso em: 19 mar. 2024.

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