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Análise do sigilo profissional e da impossibilidade de depor no processo penal

16/06/2015 às 14:28
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Para os padres, a conjugação do Código Canônico e do Código de Processo Penal veda o testemunho acerca de fatos confessados. Há um dissenso se compararmos com a situação de pastores evangélicos?

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa promover uma análise do artigo 207 do Código de Processo Penal, que veda a colheita do depoimento em juízo, de pessoas que, em razão da sua função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo.

Com efeito, determinadas atividades profissionais são geridas pela confiança e sigilo, porquanto alcançam conhecimento de aspectos íntimos e pessoais, cujo segredo impõe-se como conseqüência ética da atividade.

Todavia, essa preservação de aspectos íntimos e privados da pessoa, por questões morais, se sobrepõe à busca de uma verdade material, que o processo penal busca obter, impedido a colheita de depoimento testemunhal desses profissionais.

Dessa forma, muitos estudiosos do Direito se questionam se é justo que determinados grupos de profissionais escusem-se de depor, e contribuam para a mantença da impunidade ou até mesmo para concretização de erros judiciários, apenas porque são impedidas de revelar informações esclarecedoras sobre ilícitos que tenham tido conhecimento no curso dessas  determinadas atividades profissionais.


1.A PROVA TESTEMUNHAL NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO.

Ao contrário do processo civil, que impossibilita a tomada de depoimento do incapaz, impedido e suspeito (artigo 405, do Código de Ritos brasileiro), o Código de Processo Penal determina em seu artigo 202, que toda pessoa pode ser testemunha e, uma vez convocada, terá o dever jurídico de narrar aquilo que tem ciência, acerca de um fato delituoso.

Não tem a testemunha, portanto, em regra, outra opção, senão revelar o que sabe sobre a situação fática analisada.

A prova testemunhal consiste em um dos meios probatórios nominados em nosso Código de Processo Penal, disciplinado nos artigos 202 a 225. Sua apreciação fica condicionada ao sistema de livre convencimento motivado, vigente em nosso ordenamento jurídico, podendo o magistrado valorá-lo mediante análise de todo o acerco probatório produzido.

Dessa forma, deve-se afastar o velho brocardo latino que afirma “testis unus, testi nullus”, ou seja, “uma testemunha, nenhuma testemunha”. Com efeito, a aplicação dessa expressão não encontra mais amparo em nosso sistema legal de provas, posto que não mais vigora o sistema de tarifação das provas, restando-as apreciadas em patamar de igualdade, a espera de melhor valoração do Juízo da causa.

Por tudo isso, vale frisar que é possível eventual condenação com base no depoimento de uma única testemunha, desde que em harmonia com a realidade fática dos autos, observando o critério do livre convencimento motivado (artigo 155 do Código de Processo Penal).

A testemunha, em sentido próprio, é pessoa chamada para depor, sob promessa de falar a verdade sobre o que viu ou ouviu, dizer acerca do fato delituoso em apuração em uma lide penal, atentando-se que as testemunhas não podem se confundir com os sujeitos da ação penal.

Constitui obrigação da testemunha comparecer em juízo quando convocada e prestar o compromisso de falar a verdade, não podendo fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade, sob pena, no primeiro caso, de condução coercitiva determinada pelo magistrado (artigo 218, do Código de Processo Penal) e, no segundo, de cometimento do crime de falso testemunho, (artigo 342, do Código Penal).


2.PROIBIÇÃO DE TESTEMUNHO DAQUELES QUE SE CIENTIFICAM DOS FATOS EM RAZÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO, MINISTÉRIO, OFÍCIO OU PROFISSÃO.

Em que pese o artigo 202 do Código de Processo Penal estabeleça que qualquer pessoa pode figurar como testemunha, o mesmo normativo prevê a exceção à  essa regra, proibindo que determinadas testemunhas prestem depoimento em juízo, ainda que tenha conhecimento do fato criminoso investigado.

São aquelas que, em razão da função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, nos termos do artigo 207 do Código de Processo Penal, verbis:

São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Marcellus Polastri (2010) bem explica a diferença entre estes institutos:

1.Função: é o exercício de atividade por força de lei, decisão judicial ou convenção, a exemplo do funcionário público, do tutor, dentre outros.

b) Ministério: é a atividade decorrente de condição individual ligada à religião, a exemplo dos padres, irmãs de caridade, pastores, dentre outros.

c) Ofício: é a atividade de prestar serviços manuais, a exemplo do eletricista, bombeiro, etc;

d) Profissão: é qualquer atividade desenvolvida com fim lucrativo, como ocorre com os engenheiros, médicos e advogados.

A não observância ao aludido preceito legal, além de tornar a prova testemunhal ilegal, implica em sanções penais de violação do sigilo profissional previstas no artigo 145, do Código Penal.

A existência dessa limitação decorre de preceitos morais e efetivos, amparados pelo princípio da confiança, que deve nortear determinadas relações profissionais, a exemplo da advocacia, medicina, psiquiatria, ministério, dentre outras.

A impossibilidade de depor garante as práticas confessionais dela decorrentes, resguardado o conceito e imagem desses profissionais, frente à sociedade.

Observe que o regramento legal brasileiro não elege determinadas profissões que devam preservar o sigilo de revelações obtidas. Açambarcam grupos, alçando um lastro e obscuro campo de atividades que devem se opor a testemunharem sobre fatos criminoso que tomem conhecimento.

Essa impossibilidade de depor, não elide a obrigação de comparecer em juízo, estando o intimado obrigado a fazê-lo. Na ocasião, deverá arguir a sua condição, em observância à disposição legal que a impede de prestar depoimento, a fim de que obtenha do magistrado a dispensa motivada de suas declarações.


3.DISCUSSÃO ACERCA DA LEGALIDADE DA EXCEÇÃO PREVISTA NO FINAL DO ARTIGO 207, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, FRENTE A NORMATIVOS LABORAIS QUE PROIBEM O DEPOIMENTO DOS MEMBROS A ELES SUBMETIDOS.

Não obstante a ocorrência da vedação em depor como regra para o grupo de indivíduos referido no artigo 207 do Código de Processo Penal, existe uma excepcionalidade, que determina que, se aquelas pessoas forem desobrigadas a manter sigilo pela parte interessada,  podem testemunhar, verbis:

Art. 207.  São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. (Grifo da Autora)

Ocorre que esse regramento, em princípio, afrontaria normas infraconstitucionais, que impedem alguns membros de grupos profissional de depor em juízo, ainda que desobrigados.

Como exemplo, temos o que  estabelece o Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 26, conforme se analisa do trecho abaixo transcrito:

O advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu oficio, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou, ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte.

Nesse diapasão, no tocante à confissão sacerdotal, observa-se o Código de Direito Canônico, aplicável ao ministério católico, também proíbe a revelação de qualquer conhecimento adquirido por meio de confissão, verbis:

Cân. 984, § 1. É absolutamente proibido ao confessor o uso,com gravame do penitente, de conhecimento adquirido por meio da confissão, mesmo sem perigo algum de revelação do sigilo.

Destarte, questiona-se: uma vez autorizados pela parte interessada – como dispõe a parte final do artigo 207 do Código de Processo Civil – poderiam o padre e o advogado depor em juízo acerca de fatos conhecidos em razão de seu ministério e profissão, mesmo diante dos respectivos normativos ético, que vedam, expressamente, essa possibilidade?

Não restam dúvidas que há conflito de normas.

Por certo, a solução para o impasse consiste na aplicação do princípio da especialidade das normas jurídicas, de modo a apurar se pode haver depoimento de testemunhas que exerçam tais atividades, quando desobrigadas do dever de sigilo pelos seus clientes, malgrado o regramento ético da profissão não possibilite qualquer exteriorização nesse sentido.

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O Código de Processo Penal consiste na norma que regulamenta a produção da prova testemunhal, daí porque deve ser esse o regramento observado, quando necessário o testemunho de algumas das pessoas acima referidas.

Assim, deve ser permitido que o grupo referido no artigo 207 do Código de Processo Penal deponha, desde que desobrigada pela parte interessada - ainda que exista regramento específico que regulamente a prática laboral e proíba a depoimento de fatos conhecidos em decorrência dessa atividade.

Não se nega aplicabilidade ao sistema normativo próprio das atividades e a proteção ao sigilo. De modo algum. O que se busca é estabelecer qual a norma que deve vigorar quando necessário para persecução penal a oitiva de um padre ou advogado, por exemplo: a prevista no capítulo de provas do Código de Processo Penal, ou as estabelecidas em seus estatutos éticos.

Tratando-se de apuração no âmbito processual penal, a norma específica que regulamenta a colheita da prova testemunhal, deve observar a parte final do que dispõe o artigo 207, e se a parte interessada - entendendo essa como a pessoa a qual se deva guarda segredo - desobriga o confidente, deve a prova ser legalmente colheita e reconhecida a sua validade.

Ainda que a testemunha tenha sua profissão, ofício, ministério ou função regulada por normativo que proíba o dito depoimento, deve prevalecer a regra processual penal, em razão do princípio da especialidade na norma penal, que sobrepor-se-ia ao sistema normativo ético.

Parte da doutrina[1] entende, ainda, que a autorização do interessado implica na expressa permissão no respectivo ordenamento ético em que integra a testemunha.  Esse entendimento promoveria tratamento não isonômico entre integrantes de uma mesma categoria, a exemplo de padres e pastores no exercício do ministério.

Isso porque, se para os padres existe a norma canônica que veda, em qualquer situação, o testemunho acerca de fatos articulados no exercício do magistério, para os integrantes de igrejas evangélicas não há a aplicação do Código Canônico, restando os segundos sem amparo legal, que afaste aplicação da parte final do artigo 207, do Código de Processo Penal, o que seria um dissenso.

Teríamos um mesmo contexto fático jurídico. Entrementes, em um caso, a prova colhida seria ilícita face à existência de norma ética proibitiva, e, no outro, por não haver disposição que vede, haveria a licitude e  validação da prova testemunhal eventualmente colhida nessas condições.

Assim, em homenagem ao princípio da especificidade e isonomia, deve prevalecer o regramento processual penal, no tocante à liberação promovida pelo confessor à testemunha, para validar a prova testemunhal colhida pelos grupos de pessoas enumerados no artigo 207, em detrimento às restrições insertas nos respectivos códigos de ética.

E não poderia ser diferente, eis que o Código de Ética não pode se sobrepor à aplicação de normas que viabilizam a prova testemunhal como forma de garantir a persecução penal e a tutela jurisdicional dela decorrente.


4.CONCLUSÃO

Em uma sociedade com manifestos crescimentos da criminalidade, especialmente a organizada, não se pode abdicar da existência de um maior “recrutamento” de potenciais testemunhas acerca de fatos criminosos, o que obstaculizaria a produção probatória e consequentemente a persecução penal do infrator e a obtenção da verdade real.

Dessa forma, a interpretação de normas que, a princípio, restringe a atuação de testemunhas sobre delitos a serem apurados, deve ser feita com o cuidado e a atenção que merece para resolução e condenação de criminosos, que ameaçam a paz social.

Portanto, deve-se aplicar o artigo 207, do Código de Processo Penal Brasileiro com parcimônia, entendendo que, malgrado a existência de extensa lista de pessoas constantes, e que, a priori, estariam impedidas de depor, apenas aquelas que possuem regramento ético jurídico próprio, que imponha o sigilo, estriam amparadas em negar-se a depor, salvo, é claro, se desobrigadas pelo interessado, seus clientes.

Para isso, deve-se entender que a proibição expressa na norma refere-se à existência ou não de disposição da atividade que determine a existência do sigilo profissional, ampliando, assim, o campo de incidência do dispositivo processual penal, e permitindo a promoção de amplidão no leque de potências testemunhas, mais eficaz atuação penal.

Noutro giro, ainda, que exista norma ético legal vendando a colheita do depoimento, o mesmo pode ocorrer, desde que a parte interessada, nesse caso, a pessoa ou cliente, a desobrigue, em decorrência da especificidade da norma processual.


REFERÊNCIAS

Tourinho Filho, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Vol.1- São Paulo: Saraiva, 2007.

Polastri, Marcellus Lima. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro. Lumen Juris,  2010.

BRASIL. Congresso Nacional.   Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São paulo: Saraiva, 2007.

BRASIL.Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil.2010

BRASIL. Código Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

ARGENTINA Código Processo Penal. Ediciones el pais, 2010


Nota

[1]Polastri. Marcellus Lima. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2010

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Sobre a autora
Themis Saback

Advogada. Mestranda em Segurança Pública. Professora da Universidade Federal da Bahia, Faculdade Baiana de Ciências-FABAC e da Faculdade Mauricio de Nassau .Especialista em Direito Processual e Pós graduada em Direito Público. Lecionou no Curso Damásio de Jesus- Unidade Salvador.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SABACK, Themis. Análise do sigilo profissional e da impossibilidade de depor no processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4367, 16 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33035. Acesso em: 19 abr. 2024.

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