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O princípio da insignificância e a reiteração de práticas delitivas

16/11/2014 às 07:08
Leia nesta página:

É aplicável o princípio da insignificância na hipótese de reincidência ou reiteração delitiva do agente?

Introdução

É cediço que a tipicidade não se resume à subsunção do fato à norma incriminadora. Noutro giro verbal, a mera configuração dos elementos, ínsitos à norma, que define determinado delito, não torna o fato típico.

Há, portanto, além da tipicidade formal – aquela que concerne à adequação do fato concreto à letra fria da lei penal incriminadora -, a busca pela verificação da efetiva e concreta lesão ao bem jurídico.

Veja-se, a propósito, a doutrina de Gomes (2002, p. 116):

  “(...) sempre que ocorre a subsunção formal da conduta à descrição legal, porém sem uma concreta ofensa ao bem jurídico tutelado, resulta excluída a tipicidade entendida em sentido material, isto é, uma conduta para ser materialmente típica, deve não só adequar-se à literalidade do tipo penal senão também ofender de forma relevante o bem jurídico protegido. Diante da ausência de lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico não se pode falar em fato ofensivo típico”.

Como consectário de tal senda doutrinária, o princípio da insignificância é, amplamente, aplicado pelos Tribunais pátrios. O pré-aludido princípio visa a afastar a incidência da norma penal, nas hipóteses que, embora, formalmente, típica, a conduta seja de ínfima gravidade e, nem chegue a violar, de modo relevante, o bem jurídico tutelado.  

Evidencie-se que o Supremo Tribunal Federal definiu requisitos para o reconhecimento do princípio da insignificância. Assim sendo, cabe perquirir se o princípio da insignificância merece ser reconhecido, quando o agente reitera na prática de infração penal.


 1. O princípio da insignificância e seus requisitos

O princípio da insignificância tem, como escopo, afastar a repressão e o jus puniendi, advenientes da aplicação da norma penal, no que tange às condutas, cujo dano e a lesividade concretas sejam ínfimas.

Nesse contexto, gize-se que o princípio, sob exame, afasta a tipicidade material, expungindo qualquer atuação do aparelho criminal do Estado.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal definiu, como requisitos básicos para a aplicabilidade concreta do princípio da insignificância: i) a mínima ofensividade; ii) a inexistência de periculosidade social; iii) o ínfimo grau de reprovabilidade da conduta; iv) inexpressividade da lesão jurídica provocada. Nesse sentido, veja-se o seguinte julgado:

“(...). Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para se caracterizar hipótese de aplicação do denominado 'princípio da insignificância” e, assim, afastar a recriminação penal, é indispensável que a conduta do agente seja marcada por ofensividade mínima ao bem jurídico tutelado, reduzido grau de reprovabilidade, inexpressividade da lesão e nenhuma periculosidade social. (...)” (HC 119580 , Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 24/06/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-160 DIVULG 19-08-2014 PUBLIC 20-08-2014)


2. O princípio da insignificância e a prática reiterada de crimes na visão dos Tribunais Superiores

Em geral, os Tribunais Superiores afastam o reconhecimento do princípio da insignificância, nas hipóteses de reiteração delitiva do acusado.

Nessa linha, traz-se a cotejo modelares julgados da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça:

“(…) os autos dão conta da reiteração criminosa. A paciente tem em curso ações penais pelo mesmo fato, consoante certidão às págs. 58-60 do documento eletrônico 7. III – Revelada a periculosidade da paciente, não há falar na aplicação do princípio da insignificância, em razão do alto grau de reprovabilidade do seu comportamento. IV – Ordem denegada” (HC 122167, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 24/06/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-203 DIVULG 16-10-2014 PUBLIC 17-10-2014)

“(...) 1. A reiteração delitiva, comprovada pela certidão de antecedentes criminais do paciente, impossibilita a aplicação do princípio da insignificância. Precedentes. 2. Ordem denegada”. (HC 109705, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 22/04/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 27-05-2014 PUBLIC 28-05-2014)

“(...) a reiteração delitiva impede o reconhecimento da insignificância penal, uma vez ser imprescindível não só a análise do dano causado pela ação mas também o desvalor da culpabilidade do agente, sob pena de se aceitar, ou mesmo incentivar, a prática de pequenos delitos.(...)” (AgRg no HC 285.161/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 12/08/2014, DJe 18/08/2014)

Todavia, decisões recentes flexibilizaram tal entendimento e reconheceram a aplicabilidade do princípio da insignificância em casos nos quais o acusado já havia praticado anterior delito.

Confira-se, verbi gratia, o seguinte julgado do STJ:

“(...)A intervenção do Direito Penal há de ficar reservada para os casos realmente necessários. Para o reconhecimento da insignificância da ação, não se pode levar em conta apenas a expressão econômica da lesão. Todas as peculiaridades do caso concreto devem ser consideradas, por exemplo, o grau de reprovabilidade do comportamento do agente, o valor do objeto, a restituição do bem, a repercussão econômica para a vítima, a premeditação, a ausência de violência, o tempo do agente na prisão pela conduta etc.

4. Nem a reincidência nem a reiteração criminosa, tampouco a habitualidade delitiva, são suficientes, por si sós e isoladamente, para afastar a aplicação do denominado princípio da insignificância. 5. Na espécie, as oito barras de chocolate foram integralmente restituídas ao supermercado vítima da tentativa de furto, e, não obstante a certidão de antecedentes criminais indicar uma condenação transitada em julgado em crime de mesma natureza, a conduta do paciente não traduz lesividade efetiva e concreta ao bem jurídico tutelado.6. Habeas corpus não conhecido. Ordem expedida de ofício, extinguindo-se a ação penal”. (HC 299.185/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 09/09/2014, DJe 25/09/2014).

No mesmo passo, o Min. Luíz Roberto Barroso, em decisão monocrática, exarada quando do exame do pedido de liminar no HC 124362, decidiu, in verbis:

“(...) 8. A orientação jurisprudencial prevalente na Turma (...) é no sentido de que a reincidência do agente impede o reconhecimento da mínima ofensividade da conduta e da ausência de periculosidade social da ação Por outro lado, consulta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal indica que, apesar de certa uniformidade na indicação de condicionantes para a caracterização da bagatela (mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada), não há um enunciado claro e consistente para as instâncias precedentes a respeito daquilo que a Corte considera suficiente para afastar a aplicação da norma penal. Nesse cenário, não são incomuns julgamentos díspares para hipóteses fáticas relativamente homogêneas. 10. Além disso, a compreensão da insignificância como excludente de tipicidade conflita com a valoração de aspectos subjetivos no juízo de adequação típica de condutas. Notadamente se se considerar a recente orientação Plenária no sentido de que 'acolher o aspecto subjetivo como determinante para caracterização da contravenção penal equivale a criminalizar, em verdade, a condição pessoal e econômica do agente, e não fatos objetivos que causem relevante lesão a bens jurídicos importantes ao meio social' (trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 583523). 11. Seja como for, no caso, observados o reduzido valor do objeto subtraído e o fato de ter ocorrido a imediata restituição do bem à vítima, percebe-se de plano a desproporção grosseira entre a resposta punitiva e a lesão (ou ausência dela) causada pela conduta.(...)”.

Nota-se, portanto, que há certa tendência em admitir a incidência do princípio da insignificância, a despeito da reincidência ou reiteração criminosa, desde que as peculiaridades do caso demonstrem que o ínfimo valor do objeto e o pequeno desvalor da conduta não justifiquem o “interesse social na onerosa disponibilização do aparato estatal” (STJ, HC 296986, Rel. Min. Nefi Cordeiro).


3. Da incompatibilidade, entre o princípio da insignificância e a reiteração delitiva

  Entendemos que a reiteração de práticas delitivas se constitui em verdadeiro e intransponível óbice ao reconhecimento do princípio da insignificância.

  Com efeito, o agente que incide mais de uma vez na prática criminosa propicia periculosidade social e demonstra que sua conduta possui relevante grau de reprovabilidade.

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Ora, cabe sopesar que o valor do objeto subtraído não é o único vetor a ser considerado, para fins de incidência do multicitado princípio. Adite-se não ser razoável, nem ético, incentivar a prática de delitos e de desvios de conduta.

Vale salientar que o direito não pode servir de estímulo a condutas que, embora isoladamente de pouca gravidade, sirvam, no seu conjunto, como elemento de desestabilização social. Afinal, o Estado não pode avalizar a prática reiterada de pequenos delitos.

Nessa toada, traz-se a lume arquétipos julgados do Supremo Tribunal Federal:

“(...) O criminoso contumaz, mesmo que pratique crimes de pequena monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse praticado condutas irrelevantes, pois crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida. 6. O princípio da insignificância não pode ser acolhido para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal. 7. Habeas corpus denegado.” (HC 110841, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 27/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-245 DIVULG 13-12-2012 PUBLIC 14-12-2012)

“(...) De início, porque o paciente é reincidente específico em delito contra o patrimônio, constando na respectiva certidão de antecedentes criminais as numerosas situações em que foi preso por furto, inclusive. Logo, o reconhecimento da insignificância material da conduta increpada ao paciente serviria muito mais como um deletério incentivo ao cometimento de novos delitos do que propriamente uma injustificada mobilização do Poder Judiciário. 3. O acusado dá claras demonstrações de que adotou a criminalidade como verdadeiro estilo de vida. O que impossibilita a adoção do princípio da insignificância penal e, ao mesmo tempo, justifica a mobilização do aparato de poder em que o Judiciário consiste. Poder que só é de ser acionando para a apuração de condutas que afetem substancialmente os bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras. (...)”(HC 96202, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Primeira Turma, julgado em 04/05/2010, DJe-096 DIVULG 27-05-2010 PUBLIC 28-05-2010 EMENT VOL-02403-02 PP-00803)


Conclusão

  Diante do exposto, a nosso sentir, inviável é a aplicação do princípio da insignificância, quando verificada hipótese de reincidência ou reiteração delitiva.

Numa palavra, a mera reiteração delitiva impede o reconhecimento da mínima ofensividade da conduta e da inexistência de periculosidade social da ação. Conseguintemente, pouco importa o irrisório valor do objeto subtraído e a pronta retribuição à vítima, já que a reiteração criminosa há de ser reprimida pelo Estado, impedindo-se que o agente se estimule a cometer novos ilícitos e que utilize desvios de conduta como meio de vida.


 Referências

GOMES, Luiz Flávio.  Princípio da ofensividade no Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 6.

Os julgados citados estão disponíveis em <www.stf.gov.br> e <www.stj.jus.br>. Acesso: em 21 de outubro de 2014.

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Sobre o autor
Thomás Luz Raimundo Brito

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia.Ex-Assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça da BahiaCoautor do livro "Constitucionalismo - Os desafios do Terceiro Milênio" (Editora Forum).Autor do Livro "Mandado de Injunção - A decisão, os seus efeitos e a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no combate à omissão legislativa" (Editora Nuria Fabris)Autor de outros artigos jurídicos publicados em sites especializados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Thomás Luz Raimundo. O princípio da insignificância e a reiteração de práticas delitivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4155, 16 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33051. Acesso em: 24 abr. 2024.

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