Artigo Destaque dos editores

Do método tópico de interpretação constitucional

Exibindo página 2 de 3
01/09/2000 às 00:00
Leia nesta página:

5. O MÉTODO TÓPICO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

5.1 TÓPICA. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

A tópica não é uma técnica de pensar moderna, embora raramente dela se escute falar. Ao revés, é um modo de pensar muito antigo que vem desde antes de Aristóteles, junto com ele e depois dele. Este antigo modo de pensar foi retomado por Theodor Viehweg, em sua obra Topik und Jurisprudenz, publicado pela primeira vez em 1953, onde sugere que a tópica deveria ser utilizada como técnica de interpretação do Direito.

Viehweg inicia sua obra pelos fundamentos do pensar tópico, deixando de lado uma investigação histórica independente. Parte o autor, primeiramente, das considerações relativas aos procedimentos científicos (scientiarum instrumenta) feitas por Gian Battista Vico, em 1708, em sua dissertatio denominada De nostre temporis studiorum ratione (O caráter dos estudos de nosso tempo), onde na realidade procura Vico analisar a conciliação entre dois métodos científicos de estudo, a saber: o antigo (tópico) e o moderno (crítico).

O primeiro é uma herança da antiguidade, transmitida por Cícero, sendo seu ponto de partida o senso comum (commom sense), que manipula o verossímil (verissimila), mediante a contraposição de pontos de vista, segundo os cânones da tópica retórica, trabalhando sobretudo com uma rede de silogismos. Por sua vez, o método crítico tem como ponto de partida um primum verum, que não pode sequer ser posto em dúvida. O seu desenvolvimento se dá através de uma longa cadeia dedutiva, à maneira da geometria. Segundo Vico, as vantagens deste novo método estariam na agudeza e na precisão da conclusão, caso o primum verum seja mesmo verum. As desvantagens, entretanto, predominam, consistindo na "perda em penetração, estiolamento da fantasia e da memória, pobreza da linguagem, falta de amadurecimento do juízo, em uma palavra: depravação do humano."(19) Tudo isto, aduz Vico, pode ser evitado pela tópica retórica, pois esta "proporciona sabedoria, desperta a fantasia e a memória e ensina como considerar um estado de coisas de ângulos diversos, isto é, como descobrir um trama de pontos de vista".(20)

Em decorrência disto, conclui Vico que deve haver uma intercalação entre os dois métodos, pois um sem o outro não se efetiva.

Após a "alusão de Vico", Viehweg passa a examinar os fundamentos da tópica em Aristóteles e Cícero.

O nome "tópica", que significa técnica de pensar por problemas, foi atribuído por Aristóteles no seu famoso texto Tópica. Nesta obra o autor se ocupa da antiga arte da disputa, domínio dos retóricos e sofistas, que constitui o campo do meramente oponível, é dizer, da dialética.

No Livro I da Tópica, Aristóteles afirma que o seu "tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraço." Para isto, Aristóteles classifica os raciocínios em demonstrativo, dialético e erístico. Diz-se que o raciocínio é uma demonstração quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras; por sua vez, dialético é o raciocínio que parte de opiniões geralmente aceitas e; o raciocínio dito erístico é aquele que parte de opiniões que parecem ser geralmente aceitas, mas não o são realmente. Segundo o mestre grego, são "verdadeiras" e "primeiras" aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja ela própria. Por outro lado, "opiniões geralmente aceitas" são aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos, em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.(21) Posto desta forma qualquer problema, basta pensar corretamente conforme as opiniões que pareçam adequadas (ex endoxon) para atacar ou defender.

Desta forma, o que diferencia o raciocínio dialético do raciocínio analítico (demonstrativo) não é o aspecto formal mas sim o material, é dizer, pela natureza das premissas de que se utilizam. O raciocínio dialético utiliza-se de premissas verossímeis, ou seja, de opiniões geralmente aceitas, ao passo que o analítico utiliza-se de premissas verdadeiras e primeiras, que não podem sequer ser postas em dúvidas.

No que tange ao vocábulo "topoi", este aparece pela primeira vez no final do primeiro livro da Tópica, mas sua explicação encontra-se na Retórica. Aduz Aristóteles que os topoi são "pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir a verdade"(22)

Por sua vez, a tópica ciceroniana teve maior influência histórica do que a aristotélica. Pretendeu Aristóteles construir uma teoria da tópica, situada no campo filosófico, ao passo que a tópica de Cícero estava totalmente vertida para a sua utilização prática. O trabalho de Cícero consiste em uma coletânea de topois voltados para sua aplicação prática, e não de uma ordenação teórica dos topoi, como fez Aristóteles. Para Cícero a tópica consiste na arte de buscar argumentos. A tópica ciceroniana está voltada para a práxis.

Após um longo período de esquecimento, a tópica jurídica surge na Alemanha alguns anos após a Segunda Guerra Mundial, com o intento de responder à crise do positivismo desencadeada pela implantação de regimes totalitários.(23) Neste mesmo sentido, explica Paulo Bonavides que "a insuficiência do positivismo explica o advento da tópica na medida em que lhe foi possível abranger toda a realidade do direito, valendo-se, conforme ressaltou Kriele, de normas positivas, escritas ou não escritas, em vinculação com as regras de interpretação e os elementos lógicos disponíveis."(24)

          5.2 TÓPICA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

A tópica consiste em uma técnica do pensamento que se orienta para o problema. É uma técnica de pensamento problemático.

Para Viehweg "a tópica é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica."(25)

Lüderssen, citado por JAGA, assinala não saber exatamente qual a definição de tópica jurídica, enumerando este autor os topoi mais frequentes sobre a tópica jurídica, a saber: teoria da prática; doutrina da argumentação; pensamento orientado ao problema; orientação à ação ou decisão; doutrina dos lugares comuns, etc. Afirma ainda que é utópico pretender encontrar um ponto a partir do qual estes "tópicos da tópica" podem sistematizar-se juntos. Para Lüderssen, a tópica é a "busca racionalizada de premissas" (26)

Podemos dizer que a tópica é a técnica do pensamento que se orienta para o problema e, em razão deste, mediante uma legitimação de premissas, busca oferecer uma solução justa para qualquer caso que seja apresentado ao jurista.

Antes de ingressarmos nas características da tópica, devemos ressaltar a sua significação para o Direito Constitucional. Segundo J. J. Gomes Canotilho, o método tópico de interpretação constitucional parte das seguintes premissas: a) caráter prático da interpretação constitucional, haja vista que toda interpretação visa resolver problemas concretos; b) caráter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; preferência pela discussão do problema em virtude da textura aberta das normas constitucionais que não permitem qualquer dedução subsuntiva a partir delas mesmo.(27)

O método tópico de interpretação constitucional pressupõe uma pluralidade de intérpretes, haja vista que o mesmo situa-se no campo da retórica, ou seja, na arte da discussão. É, no dizer de Canotilho, "um processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema concreto."(28) Posto um problema constitucional concreto, os intérpretes utilizam-se de vários topoi ou pontos de vista, sujeitos a serem legitimados como premissas (caso venham a ser aceitos pelo interlocutor), visando resolver o problema por meio da interpretação mais adequada ao problema ou, noutras palavras, mais razoavelmente justa. Desta forma, percebemos que os topoi servem de auxiliar de orientação ao intérprete; constituem um guia de discussão dos problemas e; permitem a decisão do problema jurídico em discussão.

Ao chamar atenção para as constituições compromissórias, aduz Paulo Bonavides que "a metodologia clássica tinha que ser substituída ou modificada por regras interpretativas correspondentes a concepções mais dinâmicas do método de perquirição da realidade constitucional."(29)

Sobre a necessidade do método tópico de interpretação na seara constitucional, adverte Bonavides: "A Constituição representa pois o campo ideal de intervenção ou aplicação do método tópico em virtude de constituir na sociedade dinâmica uma ‘estrutura aberta’ e tomar, pelos seus valores pluralistas, um certo teor de indeterminação. Dificilmente uma Constituição preenche aquela função de ordem e unidade, que faz possível o sistema se revelar compatível com o dedutivismo metodológico." E em seguida conclui: "Diante desses obstáculos, só a tópica, como hermenêutica específica, estaria adequada metodologicamente a resolver dificuldades inerentes à Constituição nos seus fundamentos".

Feitas estas considerações, analisaremos cada um dos três elementos característicos da tópica, a saber: o problema, os topoi e a legitimação das premissas.

a) o problema

Eis a primeira característica da tópica: o problema. O problema é o ponto de partida do pensar tópico. Problemas são aquilo em torno do que os raciocínios giram ou, segundo Viehweg, significa "toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto da questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução".27(27) O ponto de partida é uma aporia, ou seja, um problema concreto, uma situação da vida real. Para o nosso estudo deve ficar claro que o ponto de partida são os problemas de natureza constitucional, ou seja, aporias constitucionais.

Esclarece Juan Antonio Garcia Amado que o que faz com que uma questão se constitua como problema é a existência de distintas alternativas para seu tratamento, de diferentes respostas ou vias de atuação possíveis. Porém se busca uma solução ou resposta, o que ineludívelmente leva à necessidade de uma decisão, de uma eleição entre alternativas. (28)

O termo "problema" pode ser substituído por "aporia", sendo estas palavras sinônimas. O termo "aporia" significa precisamente uma questão que é estimulante e iniludível, designa a falta de um caminho, a situação problemática que não é possível eliminar. A aporia fundamental do direito é a aporia da justiça. O que é o justo aqui e agora? Eis um problema que o direito busca permanentemente resolver, e que por isso Viehweg o caracteriza como tópico.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Tentaremos esclarecer o que acima foi dito com o seguinte exemplo: onde há sociedade há problema, onde há problema há direito, de modo que podemos concluir que o direito só existe em função dos problemas. Onde não houver problemas, é dizer, conflitos de interesses, não haverá razão de existir o direito. A sociedade precisa do direito para pôr termo aos problemas que se lhe apresentam diariamente. Não há como conceber uma sociedade vivendo harmonicamente sem a presença do direito regulando as condutas intersubjetivas. Isto porque a sociedade compõe-se de homens, e estes possuem determinadas paixões que geralmente se conflituam, ou seja, há pessoas egoístas, pessoas desonestas, de modo que o ser humano não é um ser frio, isento de paixões, por isso não podemos deixar de dizer que não existe sociedade sem conflitos.

Uma pessoa isolada em uma ilha não necessita do direito porque nunca haverá a possibilidade dele entrar em conflito consigo mesmo, é dizer, nunca poderá haver uma problema de natureza intersubjetiva por que não há outra pessoa para que este problema se possa originar. Ou seja, onde houver apenas uma pessoa não há direito. A partir do momento em que pusermos mais um indivíduo nesta ilha, começará a surgir conflitos de toda ordem entre os mesmos, isto é, haverá uma delimitação espacial, as paixões individuais começarão a vir à tona, de modo que cedo ou tarde um problema irá surgir e, consequentemente, uma norma também virá para dirimir este conflito. Desta forma podemos observar que o direito surge em razão de problemas oriundos da convivência entre humanos, e apenas retira sua razão de ser a partir destes mesmos problemas. O direito é feito pela sociedade e para esta mesma sociedade. Ou seja, o direito é feito para dizer o justo aqui e agora. É um meio a serviço de um fim. O direito é técnica, instrumento que serve ao problema fundamental da justiça. Eis a razão de ser do direito: a aporia fundamental da justiça.

A tópica pretende fornecer indicações de como comportar-se em tais situações, a fim de não se ficar preso, sem saída. É portanto uma técnica do pensamento problemático.(29)

O problema está a frente de tudo, é a partir dele que será feita a seleção do sistema, ou seja, o acento no problema opera uma seleção de sistema. Partindo de determinado problema, busca-se uma solução em um sistema A., caso o sistema A não ofereça a solução adequada passa-se ao sistema B, e assim por diante, até que se ache uma solução adequada em um determinado sistema. Por isto a afirmação feita no início de que o acento no problema opera uma seleção de sistema. Ao revés, o acento no sistema opera uma seleção de problemas. Cada sistema busca nele próprio os seus problemas. Caso no sistema não seja encontrado uma resposta para o que se denominou de problema, então conclui-se que aquilo não é um verdadeiro problema, mas sim um falso problema.

b) topoi

O segundo elemento característico do pensar problemático é o topoi. Os topoi devem ser entendidos de um "modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento."(30) Servem eles a uma discussão de problemas. Conforme os topoi sejam escolhidos arbitrariamente ou estejam previamente dispostos sob a forma de catálogos, podemos classificar a técnica do pensamento problemático em tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau. Desta forma, os topoi são pontos de vista que servem a uma discussão do problema. São instrumentos auxiliares.

Os topoi adquirem sentido em razão do problema. Estão diretamente vinculados ao problema. Toda proposição ou conceito que sirva a uma discussão de problemas e que leve a busca de uma solução adequada para o caso concreto pode ser considerado como topoi. Tudo aquilo que sirva ao esclarecimento e solução do problema pode servir como topoi. Em se tratando do Direito Constitucional podem ser caracterizados como topoi: os métodos de interpretação constitucional; as normas constitucionais; os argumentos da doutrina juspublicista; decisões do judiciário, etc.

Pode parecer espantoso, mas como o problema está a frente de tudo, as normas jurídicas passam para um segundo plano, adquirindo a natureza de topoi. Em se tratando da Constituição esta perde em muito o seu aspecto formal. Assim esclarece Paulo Bonavides:

"A invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípios constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a metodologia dos problemas concretos, decorrentes da aplicação da hermenêutica tópica."(31)

c) validação das premissas pela aceitação do interlocutor

A validação das premissas pela aceitação do interlocutor constitui a terceira característica da tópica. Como é sabido, a tópica é uma técnica de pensar por problemas. Posto um problema, o intérprete busca auxílio nos topoi, que servem para afirmar ou contrapor um outro argumento. A partir do momento em que o interlocutor for aceitando as argumentações contrárias, vão-se formando as premissas em busca de uma solução que seja razoavelmente justa. Desta forma, as premissas se legitimam pela aceitação do interlocutor. Dito de outro modo, firmam-se como premissas legítimas os pontos de vista aceitos pelas partes, depois de postos em discussão.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
George Salomão Leite

advogado em João Pessoa (PB), mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, George Salomão. Do método tópico de interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos