RESUMO: O presente artigo procura lançar novos olhares sobre perspectiva da responsabilidade civil dos médicos, propondo um critério diferenciado de estudo da responsabilidade destes profissionais. O plano de estudos, inicialmente, aborda a responsabilidade civil médica brasileira e os elementos caracterizadores. Em um segundo momento, iremos abordar os tópicos importantes para exclusão do dever de indenizar. Abordaremos, o aumento das demandas contra estes profissionais, as discussões sobre o tema, tendo em vista a sociedade individualista e assistencialista com que nos deparamos nos dias atuais. Em seguida, apresenta-se uma crítica a postura protecionista da jurisprudência pátria e de alguns doutrinadores que claramente se apóiam na fase intervencionista, em que multiplicam-se normas, jurisprudência e medidas contra os médico, visando apenas a proteção do consumidor. Procura-se demonstrar a necessidade de novos critérios para apuração da responsabilidade destes profissionais e novos critérios para aplicação do sistema jurídico já vigente, que vem sendo aplicado e interpretado de maneira altamente protecionista, deixando estes profissionais em desvantagem exagerada junto ao judiciário.
Palavras-chave: responsabilidade civil dos médicos. excludentes de responsabilidade. Código de Defesa do Consumidor. aumento de demandas. protecionismo excessivo ao consumidor.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta como problema fundamental a desvantagem exagerada em que os médicos estão sendo expostos pelos tribunais e doutrinadores, nessa medida, procura lançar novos olhares sobre o referido ramo do direito, buscando um critério diferenciado para apuração da responsabilidade deste profissional.
O método utilizado é do tipo jurídico-positivo e indutivo, destinando à realização de questionamento, visando propor mudanças concretas, tanto na legislação vigente, e principalmente em sua interpretação jurisprudencial.
O plano de estudo segue primeiramente a análise do instituto da responsabilidade civil, seus pressupostos e excludentes. Abordando, a aplicação das normas consumeristas ao tema, tratando de uma fase claramente intervencionista em que se multiplicam normas e medidas de proteção ao consumidor-paciente, porém menosprezando a realidade da relação instituída.
O segundo momento reflete o reconhecimento do aumento de demandas contra os médicos e o abuso praticado pelos pacientes e seus patronos, em demandas fadadas a improcedência mas que contam com o instituto da justiça gratuita.
Por fim, busca apresentar uma crítica à postura excessivamente protecionista e intervencionista do estado e seus juristas. Procurando demonstrar essa nova classe de danos, em que os pacientes/consumidores sujeitos de direitos, demandam o judiciário de maneira abusiva em sua maioria, utilizando o judiciário sem fundamento, ou seja, utilizando o direito constitucional e fundamental de inafastabilidade do controle jurisdicional com finalidade social divergente do que instituído pela lei e bons costumes.
Nessa medida evidencia-se a necessidade de adoção de novos critérios para aplicação das normas consumeristas e demais normas do ordenamento jurídico às atividades médicas, pois de fato, não se coadunam com a complexidade de tais relações.
1 A RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
A responsabilidade civil não é contemporânea, desde a antiguidade se buscava em um ideário de justiça a responsabilização do agente por seus atos danosos, e assim, ocorria com os médicos. Porém a responsabilidade civil passou por crescente evolução até as formas de responsabilização que conhecemos hoje.
Para gerar o dever de reparação são necessários alguns requisitos indispensáveis, como a conduta contrária a um dever jurídico (ato ilícito) que é a causa (nexo causal) do dano (prejuízo de outrem). A responsabilidade do médico é subjetiva, ou seja, são necessários os seguintes elementos para ensejar o dever de reparação: Conduta ilícita e Culposa; Nexo causal; Dano. Elementos indispensáveis para caracterização da responsabilidade civil.
A obrigação médica é de meio, pois o médico se obriga a atuar conforme a lex artis, zelo, prudência e cuidado, para obter o resultado/cura, mas não se obriga a obtê-lo. Mas há algumas jurisprudências tendentes a elencarem algumas especialidades médicas como obrigações de resultado.
A discussão sobre a obrigação ser de meio ou de resultado cinge-se em matéria processual, ao aspecto do ônus da prova, pois sendo obrigação de resultado, caberá ao médico a prova que seu agir foi de acordo com a literatura médica e que não houve culpa por sua parte. Porém não concordamos com esta diferenciação para algumas especialidades médicas, ora, todo o exercício da medicina está calçado das mesmas áleas da atividade, o organismo humano é por vezes imprevisível e incompreensível, sendo um fardo extremamente pesado e injusto presumir a culpa de um profissional médico.
Em razão disso, conclui a professora Hildegard:
A nosso ver deveria ser óbvio que, quando a prestação obrigacional se desenvolvesse em um campo aleatório, sua conceituação deveria situar-se dentro da categoria de uma obrigação de meio, já que não seria razoável garantir um resultado em seara onde o fator álea estivesse presente, o que, conseqüentemente, propiciaria algo imprevisível.[1]
Dessa forma, tendo em vista que a ciência médica ainda não conseguiu desvendar certos segredos ligados à natureza humana, ficam os profissionais da medicina impossibilitados de prometer um resultado certo e determinado ao seu paciente. Há outro aspecto a militar em favor da inserção da obrigação como de meio e não de resultado: "[...] o papel ativo do credor na execução da obrigação, que pode ser representado por sua participação ou pelo estado de dependência do devedor em relação ao credor."[2] Por essas razões, incumbe ao paciente o ônus da prova da inexecução obrigacional por parte do devedor (médico), face à conduta culposa do mesmo, culpa em "lato sensu", incluindo o dolo e culpa "strito sensu" (negligência, imprudência ou imperícia).
O Código de Defesa do Consumidor adotou a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos e serviços, em atenção ao protecionismo e vulnerabilidade do consumidor. Para CAVALIERI FILHO, a responsabilidade será objetiva em decorrência do dever de segurança imposto, ou seja, para a responsabilidade ser objetiva é necessário que a atividade seja habitual e que por sua natureza implicar riscos, surgindo assim o dever jurídico de segurança moral e material. A violação deste dever primário de segurança, estabelecido por lei, justifica a obrigação de reparar, sem nenhuma análise de culpa do autor, ou seja, estamos diante da responsabilidade objetiva.[3]
A doutrina não é pacifica quanto à fundamentação da responsabilidade objetiva, para BRUNO MIRAGEM, a fundamentação está na teoria do risco-proveito, pois o dono da atividade tem em mãos a justiça-distribuitiva, ou seja, pode eleger um critério eficiente de redistribuição de suas dividas com a indenização por toda a cadeia de fornecimento, podendo repassar estes custos por intermédio do sistema de preços, a todos os consumidores, que terminariam também por remunerar o fornecedor em custos com eventuais indenizações que ele venha a suportar. [4]
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor a jurisprudência e doutrina dominante entendem que a relação médico e paciente deve ser regida pelo CDC e subsidiariamente pelo CC/02. A responsabilidade do médico continua ser subjetiva, nesse passo, para que surja aos profissionais da área de saúde o dever de reparar, pressupõe-se a existência de uma ação (ou omissão), culpa ou dolo, evento danoso e relação de causalidade entre a conduta do agente e o dano.
Para se eximir do dever de indenizar o médico deve provar causas excludentes de responsabilidade, ou seja, desqualificar um dos elementos ensejadores da responsabilidade civil.
2 DAS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE
As excludentes de responsabilidade de acordo com o CDC é ônus de prova do médico. As excludentes constituem motivo de isenção de responsabilidade, por desqualificarem um ou mais elementos ensejadores do dever de reparação civil, as excludentes isentam o agente do dever de indenizar, apesar do dano provado pela vítima.
Além das excludentes comuns em responsabilidade civil, como ato exclusivo da vítima, ato de terceiro e caso fortuito e força maior, iremos elencar algumas excludentes específicas da relação médico e paciente, que ainda são desconhecidas e pouco utilizadas pela jurisprudência e pelos operadores do direito.
2.1 O ERRO MÉDICO E A AUSÊNCIA DE DEFEITO
Assenta-se em julgados e doutrinas que o erro médico, ou seja, a conduta culposa do médico que causa dano ao paciente gera dever de indenizar, mas o que seria erro?
Como descreve Eduardo Nunes de Souza, erro é uma falha no exercício profissional, é um juízo valorativo, promovendo uma comparação entre o procedimento adotado e aquele que em tese, teria evitado o dano já conhecido, este juízo valorativo não analisa a culpa, pois não esta interessado na maior ou menor diligência de um médico diante de um determinado quadro clínico, ora, um médico absolutamente diligente, e observador da "lex artis", diante de um quadro clínico em que temos dois tipos de tratamento, pode optar por um que não cure o enfermo, sendo assim o médico errou, mas não houve culpa[5].
O erro profissional é escusável devido a imprecisão da arte, pois a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta. O erro profissional não é culposo, advém das incertezas da arte médica, por isso, a obrigação dos médicos é de meio, não se obrigando a curar, mas sim a empregar todos os seus conhecimentos com zelo e cuidado para obter o resultado.
Confundir erro com culpa, o que tem sido comum por boa parte dos juízes, é proceder uma objetivação velada da responsabilidade médica. Pois sempre que a conduta médica conduzir a um dano e for possível cogitar que outra conduta não causaria o dano, estaria configurada a responsabilidade do médico[6].
Para CAVALIERI o médico procede corretamente, sendo o erro imputado à limitação da profissão e da natureza humana, por isso não seria responsabilizado por erros de diagnóstico ou de tratamento[7]. E AGUIAR DIAS, ainda ressalta que o erro de técnica deve ser apreciado de forma prudente pelos tribunais, não podendo e nem devendo o julgador entrar em apreciações de ordem técnica quanto aos métodos científicos que por sua natureza sejam passiveis de dúvidas ou discussões. [8]
As Iatrogenias também estão no rol de danos que não são de responsabilidade dos médicos, ou seja, as lesões previsíveis e esperadas ou não, quando o atuar médico é correto e necessário, e causam danos, mas não há violação de dever por parte do médico.
Para José Carlos Maldonado a Iatrogenia pode ser causada pelo exercício regular do direito do médico, sendo lesões lícitas e permitidas, porém sempre com o consentimento do paciente; podendo ainda, decorrer de fatores intrínsecos individuais de cada paciente, tendo em vista que cada organismo reage de uma maneira a certos procedimentos e tratamentos, e que embora previsíveis, não tem qualquer relação de causa e efeito com a atuação do médico, atuação lícita, porém o paciente deve ser informado das possíveis consequências; e, ainda, pode decorrer da omissão de informações do pelo paciente, ocorrendo resultados danosos, estes não podem ser atribuídos ao médico[9].
Ainda, de acordo com entendimento expressado pelo CDC, não havendo defeito no serviço não haverá dever de reparação, o defeito no serviço advém do dever de segurança que o fornecedor detém, devendo zelar pela vida, saúde e propriedade do consumidor. Serviço defeituoso é aquele que não oferece a segurança que dele se podia esperar, levando em consideração o modo de seu fornecimento, a época do fornecimento e principalmente os resultados e riscos que razoavelmente se espera.
A atividade médica é uma atividade de riscos, há vários riscos que são esperados e previsíveis, desde que devidamente comunicados ao consumidor, estes riscos inerentes não são tidos como defeito no serviço, pois em sua maioria estes danos oriundos de riscos inerentes são danos iatrogênicos, ou seja, são danos advindos de uma conduta lícita dos profissionais, pois estão exercendo regularmente seu direito de realizar sua atividade profissional.
Portanto, riscos inerentes não são defeitos no serviço. Assim como danos advindos de condutas não culposa do profissional, para se falar em defeito no serviço da atividade médica é necessária que o dano seja causado por culpa do médico, não havendo culpa não há defeito, não havendo responsabilização.
2.2 FATO DA TÉCNICA
Elias Kallas Filho, cita brilhantemente o fato da técnica como um dos motivos de isenção da responsabilidade médica. Esta excludente desqualifica o elemento culpa, ensejador da responsabilidade civil destes profissionais.
A caracterização desta excludente depende, portanto, da inevitabilidade do dano, mas não necessariamente de sua imprevisibilidade, ou seja, excluirá a responsabilidade do médico quando verificada que a técnica utilizada, embora predominantemente benéfica, aprovada pela comunidade cientifica e corretamente executada, ocasionou dano ao paciente. Trata-se portanto, da concretização de um potencial danoso inerente a determinada técnica. Este dano proveniente do fato da técnica só poderia ser evitado ou minorado com a evolução da própria ciência.[10]
Para o autor "o fato da técnica corresponde, portanto, à concretização do potencial danoso inerente a determinada atividade médica[11]".
Esta excludente deve ser aplicável à responsabilidade civil, uma vez que se tem ocorrido em sentido oposto pelos tribunais, responsabilizando médicos, por riscos inerentes a atividade médica, devido a influências de expedientes de objetivação de sua responsabilidade civil. Ora, estes danos decorrem de riscos próprios aos procedimentos, ainda que executados de acordo com a lex artis e com prudência e diligência exigíveis, afastando, assim, a culpa dos profissionais.
3 AS DIFICULDADES DOS MÉDICOS NAS DEMANDAS ATUAIS
Ainda não conseguimos lograr êxito em promover a eficácia da responsabilidade civil, o entusiasmo de se proteger os pacientes hipossuficientes a qualquer preço, apresentando institutos contra o corporativismo médico como a gratuidade de justiça não comprovada, inversão do ônus da prova como obrigação do médico pagar a prova pericial e oferecendo maiores fomentos aos pedidos de danos morais infundados. Todos estes institutos colocam o médico em situação extremamente desfavorável ao exercício de seu mister, colocando o médico em condição desigual e confrontando com direitos fundamentais, como, o direito à dignidade humana e o direito da presunção de inocência.
O grande aumento de processos contra esses profissionais reflete a política protecionista dada aos consumidores que fomenta a indústria do dano sem fundamento. Porém, com o advento do Código Civil Brasileiro o ordenamento jurídico inovou trazendo como fundamentos basilares a eticidade e a boa-fé, devendo a jurisprudência romper seus compromissos antigos e viciados de promover leis paternalistas, aplicando os recursos que o CC/02 oferece aos julgadores para coibir excessos, e principalmente se preocupando com a dignidade, nome, intimidade e honra destes profissionais por vezes injustiçados.
Sendo assim, iremos primeiramente elencar institutos utilizados pela jurisprudência e doutrina desvirtuados da realidade atual, pois promovem apenas a proteção do consumidor sem se atentar para o Princípio da Igualdade e Eticidade e contrariando a própria Constituição, e o direito fundamental da dignidade da pessoa humana, ampla defesa, igualdade e contraditório.
3.1 RELAÇÃO MÉDICO E PACIENTE E A RELAÇÃO DE CONSUMO
A relação médico e paciente não poderia ser elencada como relação de consumo. O CC/02, tipificou expressamente a responsabilidade destes profissionais, o CDC apesar de ser lei especial não se aplica a esta relação. A responsabilidade médica é subjetiva, e sua obrigação é de meio, não podendo se vincular a um resultado, não sendo então compatível com o CDC, que se baseia em responsabilidade objetiva e obrigações de resultado.
Conforme Resolução do Conselho Federal de Medicina que define o Código de Ética Médica n. 1931/2009 a relação é personalíssima. A referida resolução tipifica que a medicina não pode ser exercida como comércio, e não há em nenhum outro documento legal tipificando esta relação como de consumo. As resoluções são atos normativos que advém de uma autarquia federal com competência para edição de atos normativos para fiel execução das leis, possuindo hierarquicamente equivalência a lei, sempre que venha a complementar lacunas legais, e desde que não contrarie as leis.
O CDC define serviço como qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, ora, mas o objeto da prestação médica (saúde, vida, integridade física e moral) são bens não consumíveis.
Mesmo que se aplique o CDC deve ser feito com a devida cautela, pois não se trata de uma relação de consumo típica, pois o objeto do serviço são bens inalienáveis, sendo uma prestação de serviço "sui generis". Ao aplicar o CDC à relação médico paciente imprime-se a ela uma prestação de um serviço preciso e exato, como comparar a relação médico e paciente, com a venda de um rádio ou televisão, sendo que o objeto desta relação é um objeto impreciso e por vezes desconhecido. Ora, o CDC construiu um sistema voltado a responsabilidade objetiva, visando alcançar os fornecedores de serviço em massa, buscando o equilíbrio entre as partes, nestes casos o consumidor é claramente vulnerável, diferentemente da relação entre médico e paciente, em que o médico é um profissional liberal, pessoa física, sem tamanho poder econômico como os fornecedores do mercado de consumo.
O CDC foi pensado para fornecedores que contam com o que chamamos de justiça distributiva, que fundamenta a responsabilidade objetiva pelo proveito de sua atividade e pelo poder de repassar/ redistribuir por toda cadeia de fornecimento o que eventualmente vier a indenizar o consumidor, ora, é notório que o médico não goza desta vantagem e prerrogativa, pois não possui mecanismos e estrutura que permita a dedução do ônus econômico e financeiro como os grandes fornecedores.
O ilustre doutrinador Eduardo Nunes de Souza declara:
Com efeito, a transposição da lógica consumerista para a relação estritamente pessoal que caracteriza o vínculo entre cliente e profissional liberal exige cautela. Tal tendência vem ao encontro da crescente exarcebação das expectativas pendentes sobre a atuação do médico e dos profissionais liberais, como se fosse possível esperar o sucesso de seu trabalho na totalidade dos casos, ignorando-se a falibilidade natural de profissionais que podem contar exclusivamente com seu conhecimento científico, não dispondo de estrutura que permita a dissolução do ônus econômico dessa superresponsabilização no preço dos serviços por eles oferecidos.[12]
O fundamento dessa superresponsabilização trazida pelo CDC não se coaduna com a atividade dos profissionais liberais. Não obstante, o elencado contra a responsabilidade civil do médico frente ao CDC, a jurisprudência continua colocando o médico como fornecedor de serviços, aplicando a relação o CDC de maneira geral e abstrata, ora, devemos nos atentar para as especificidades desta relação. O CDC prevê diversos institutos com o intuito de igualar a relação entre fornecedor e consumidor, visto que o consumidor está em situação desfavorável técnica e financeiramente, mas o paciente não é vulnerável nas mesmas condições de um consumidor, sendo, assim, a tutela estatal ao consumidor deve se ater ao caso concreto, em virtude dos princípios Constitucionais da Igualdade, Presunção de Inocência e Dignidade da Pessoa Humana. Porém não é o que acontece na jurisprudência atual, sendo aplicável todos os institutos previstos no código consumerista de maneira abstrata à relação médico e paciente, como o instituto da inversão do ônus da prova, tipificado no artigo 6, inciso VIII do CDC.
Para Eduardo Dantas e Marcos Coltri, a aplicabilidade do CDC à relação médico e paciente, ocorre para preencher um vazio legal, uma vez que não há lei especifica nos moldes do que ocorre com os advogados, portanto, deveria ser aprovada lei semelhante, devolvendo à medicina um regramento próprio, que venha a ser distinto do definido pelo CDC[13].
3.2 A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA E O ÔNUS FINANCEIRO PARA PROVAR SUA INOCÊNCIA
Prova é o elemento que contribui para a formação da convicção do julgador, via de regra, aplica-se o art. 333, do Código de Processo Civil, em que prevê que caberá o ônus da prova ao autor dos fatos constitutivos de seus direito, e ao réu caberá o ônus de provar fatos modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor.
O CDC para facilitar o acesso à justiça e equilibrar a relação, estabelece que mediante requerimento do autor ou de ofício pelo juiz, este poderá inverter o ônus da prova, se comprovado os requisitos de verossimilhança das alegações do autor, e/ ou, hipossuficiência do consumidor. Ora, diante da aplicação do CDC às relações médicos e pacientes, é comum que os magistrados concedam aos pacientes tal instituto, com a concessão há um sério agravamento da responsabilidade médica, pois regra geral, caberia ao paciente demonstrar a conduta culposa do médico, o nexo causal e o dano, mas com a inversão a culpa do médico será presumida, pois caberá apenas ao médico provar que não houve culpa.
Para Miguel Kfouri Neto, a inversão do ônus da prova contra os médicos é ilegal, pois estaria equiparando a responsabilidade em objetiva, pois o art.14, p.4, CDC é expresso ao tipificar que a responsabilidade de profissionais liberais será apurada mediante verificação de culpa. A ressalva é expressa, por isso não se coaduna tal inversão aos profissionais liberais.[14]
As causas médicas em sua maioria irão demandar como prova o laudo de perito nomeado pelo juiz. E o ônus financeiro da perícia? Em regra a perícia é onerosa, e paga pelo sucumbente, mas há vezes em que é necessário antecipar o pagamento do perito. Portanto, o honorário caberá a quem requereu o exame ou pelo autor quando requerido por ambas as partes ou pelo juiz, se não houver o pagamento a pericia restará prejudicada. Para jurisprudência a inversão do ônus da prova não se confunde com o ônus financeiro desta, pois a exceção trazida no CDC trata apenas do ônus subjetivo da prova, art. 333 do CPC, e não das normas do art. 19 e seguintes do CPC, que tratam do ônus financeiro para produção de atos processuais. Porém de acordo com entendimento jurisprudencial (STJ Resp 402.399-RJ) a parte ré poderá sofrer as consequências decorrentes da não produção destas provas no caso de antecipação de pagamento dos honorários periciais[15].
Sendo assim, resta claro, mais uma desvantagem inserida pela jurisprudência aos médicos, pois com a inversão do ônus da prova o laudo pericial mostra essencial para demonstrar que sua conduta foi correta, em acordo com a lex artis e não culposa.
3.3 OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
Outro entendimento inserido pela doutrina e jurisprudência que deixa o médico em extrema desvantagem é a classificação de algumas especialidades como obrigação de resultado, como as cirurgias plásticas estéticas, anestesias, análises clínicas e etc.
Conforme brilhante ensinamento de RUY ROSADO o acerto está aos que atribuem a obrigação como de meios, pois a álea está presente em toda a intervenção cirúrgica, e imprevisível são as reações de cada organismo à agressão do ato cirúrgico. Mesmo que por ventura um cirurgião plástico venha a assegurar um resultado, isso não define a natureza de sua obrigação, não altera sua categoria jurídica, que continua sempre a prestação de um serviço que traz consigo riscos, para o autor, na verdade deveríamos examinar nestes casos apenas com mais rigor a culpa.[16]
Entender que a obrigação do médico seria de resultado, é julgá-lo como Deus, ora, responsabilizar um médico pelas reações orgânicas de um corpo humano é extremar sua responsabilidade, ignorando a falibilidade da própria medicina e do próprio profissional que pode contar exclusivamente com seu conhecimento técnico. Sendo, ainda, uma afronta ao próprio diploma do CDC, que determina que a responsabilidade do profissional liberal será apurada mediante verificação de culpa.
Todas as falhas e imperfeições devem ser aferidas com base na isonomia e dignidade da pessoa humana, a culpa presumida não se coaduna com a proteção à dignidade da pessoa humana do profissional liberal, pois reduz suas chances de defesa na lide, além do mais, a inversão do ônus da prova não pode ser automática. Sendo tal instituto descabido e ilegal frente as demandas entre médicos e pacientes.
Como mencionado por Antônio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza, ao citarem Celso Antônio Bandeira de Melo, elucidando o tema sobre a perspectiva principialista, cita ser de crucial importância que na responsabilidade civil médica, diante da análise de um caso concreto, seja norteada não pela teoria do risco, não pelo CDC, não por dogmas doutrinários como a culpa presumida no caso das obrigações de resultado, mas pelos princípios Constitucionais.[17]
Para os autores, devemos interpretar os institutos e leis em acordo com o Princípio norteador do direito, qual seja, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, devemos nos preocupar não só com a dignidade do consumidor/paciente, mas também com a dignidade do médico. A utilização adequada de princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, igualdade, ampla defesa, contraditório e etc, em detrimento da letra fria da lei infraconstitucional faz com que o estado juiz distribua a dignidade não só ao paciente, mas também do profissional médico sujeito de direitos, ora, responsabilizar o médico por questões que estão de alguma forma fora de seu controle agride sua dignidade humana e demais princípios constitucionais[18].
3.5 A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
Teoria é utilizada pela jurisprudência e doutrina. Para esta teoria, quando não é possível afirmar que o dano se deve a um ato ou omissão do médico, supõe que o prejuízo consiste na perda de uma possibilidade de chance ou de cura, mitigando o nexo causal.
Para a teoria a conduta do agente faz a vítima perder a chance de cura, via de regra, a conduta é omissa, e já está em curso o processo causal que conduz ao evento danoso, porém o omitente deixa de interromper, quando tinha esse dever jurídico, gerando assim o dever de reparar. A chance adquire o status de bem jurídico autônomo. Havendo a mitigação do nexo causal em desfavor do médico.
A teoria é estudada e aplicada pelos franceses, ora, a França vive em outros tempos, e está segundo a OMS em primeiro lugar na saúde, não há CDC e suas garantias protecionistas, não há gratuidade da justiça para quem não comprova necessidade e nem mesmo responsabilidade objetiva, institutos estes, que abarcam e propiciam uma avalanche de processos, não havendo graus comparativos. Na França há peculiaridades internas e lançam mão de recursos éticos, como esta teoria para diminuir as chances de corporativismo acentuado, a teoria é aceita em decorrência das peculiaridades que cercam os processos neste país, que é completamente diferente das peculiaridades encontradas no Brasil. No Brasil temos nosso ordenamento, ora, é ilegal e inconstitucional importar teorias que nasceram de experiências internas de uma nação completamente diferente da nossa. O CDC e o CC/02 já oferecem subsídios aos julgadores brasileiros, para implementarem institutos que possibilitam o juiz a chegar a provas difíceis dessa relação, e evitar o corporativismo danoso, como a inversão do ônus da prova, além de permitir que o julgador não fique adstrito ao laudo pericial[19].
A Teoria foi criada pelos franceses, e representa uma verdadeira antítese do que fora estudado até aqui sobre a responsabilidade médica. Os fundamentos teóricos da perda de uma chance são contraditórios e ferem o ordenamento jurídico pátrio. Já há fortes recursos protetivos na relação de consumo, perdendo força a teoria dos europeus, pois não se coadunam com a realidade brasileira.
Como ressalta ANTÔNIO FERREIRA COUTO E ALEX PEREIRA SOUZA
Diante das leis brasileiras, em especial o Código Civil Brasileiro, os julgadores no papel de Estado- Juiz, estão aprisionados nas questões ético-brasileiras, por isso a inadequação do direito comparado, pois se por um lado, para gerar nossas legislações internas, ele se torna fonte de consulta segura e indispensável, por outro lado, uma vez definidas as nossas regras éticas, segundo nossas condições sociais, culturais, antropológicas e até fisiológicas, teremos que dispensar essa comparação, pois não mais haverá grau de comparação entre os povos; aliás, nessa direção o papel principal passa a ser do direito consuetudinário interno, sob pena de estarmos exigindo comportamento ético de forma desajustada e curiosamente descomprometida com o nosso viver brasileiro[20].
Para os autores essa cópia poderá gerar anomalia pois não se adéqua a realidade que vivemos no Brasil. Ora, é cruel e não razoável utilizar essa limitação trazida pela teoria como instrumento de presunção de existência de nexo causal ou de substituição do efetivo dano. A utilização dessa teoria retorna aos tempos antigos, quando o médico era punido quando não lograva êxito no tratamento, já que não se levava em consideração às limitações existentes e impostas na realização de um ato médico.[21]
Para os autores se esta teoria começar a ser utilizada muito provavelmente, em poucos anos, uma série de procedimentos não mais serão realizados, pois o risco de ocorrer complicações e lesão iatrogênicas é tão grande que será preferível deixar o doente padecer do seu mal até morrer, pois irão responder por questões que estão fora de seu controle, em razão da limitação da própria ciência[22]. A grande preocupação é o alto preço que a saúde da população brasileira pagará pela adoção desta teoria, por usar ferramentas desiguais para atacar médicos éticos, pois o medo de processo levará a classe a fugir de procedimentos e tratamentos de alto risco, como hoje já acontece nos EUA.
3.6 OS DANOS PUNITIVOS
Outro instituto que vem sendo aplicado em nossos tribunais, é o dano punitivo, ou seja, um plus na indenização a título de pena cível. Vale ressaltar, que o CC/02 é expresso ao tipificar que a indenização se mede pela extensão do dano, não havendo previsão legislativa para tal instituto, e seu fundamento que seria a reprovabilidade/ sanção ao agente já está intrínseco nos danos morais e matérias, sendo um "bis in idem" e usurpação da função do direito penal.
O autor KFOURI é contra o plus na indenização suportada pelos médicos pois para ele não há que se falar em função punitiva na responsabilidade médica, pois em nenhum momento o médico pretende causar danos ao paciente. O médico procurará sempre não reincidir naquela conduta, sendo desnecessário aplicar a ele a função pedagógica. Ora, tal plus teria apenas valia em coibir grandes empresas, que não se preocupam com a indenização por danos pois, para elas ainda é favorável financeiramente arcar com as indenizações.[23]
3.7 A JUSTIÇA GRATUITA
Os mecanismos adotados para proteção do consumidor e o instituto da justiça gratuita, que é tipificado pela Lei 1060 de 1950, devem ser vistos com extrema cautela nestas lides.
A gratuidade da justiça foi estabelecida pela Lei 1060/50, porém antigamente os interessados tinham que requerer o atestado de pobreza junto a delegacia policial, tal prática, já servia como um verdadeiro filtro para coibir abusos. Porém, agora, basta a afirmação para fazer jus ao instituto, lesando a Constituição Federal de 1988, que tipifica ser necessária a comprovação. Em protecionismo flagrante do judiciário o entendimento prevalecente é que basta apenas a afirmação que não pode arcar com as custas judiciais sem prejuízo ao sustento próprio ou de sua família. Para os tribunais não se faz necessário provas da hipossuficiência financeira da parte que requerer o benefício. Com a declaração a hipossuficiência é presumida, cabendo a prova do contrário a outra parte, prova que por vezes se demonstra impossível.
Não houve ainda legislação após a CF para regulamentar o tema, sendo utilizada lei de 1950, que no entendimento de vários doutrinadores não foi recepcionada pela CF. A norma constitucional é clara ao dizer que deve haver prova, devendo, assim, o poder legislativo regulamentar tal norma constitucional com efetivos elementos e requisitos para garantir a gratuidade a quem realmente faça jus.
É notório que esse instituto aplicado nos moldes atuais, fomenta uma indústria do dano leviana em que seus percussores estão em busca de ganho fácil, alguns podem dizer que esse pensar seria menor, mas a realidade brasileira, demonstra claramente essa utilização, Miguel Kfouri em seu livro, traz a afirmação que 80% dos casos envolvendo médicos são julgados improcedentes. Portanto esses rigorosos institutos aplicados na responsabilidade civil médica demonstram que é excessiva a desvantagem na aferição de supostos erros médicos em detrimento dos profissional que necessitam ter sua dignidade auferida como o mesmo rigor, garantido pela Constituição.[24]