Artigo Destaque dos editores

Vedação ao anonimato e denúncias anônimas: limitações à liberdade de expressão

13/10/2015 às 12:44
Leia nesta página:

Revela-se lícita a denúncia anônima, desde que a somada a outros instrumentos de prova idôneos a robustecer a ação penal desejável, o que atende ao escopo da Constituição de proibir o anonimato.

1 INTRODUÇÃO

O artigo visa expender algumas linhas sobre o direito fundamental à liberdade de expressão, especialmente sobre as limitações que a Lei Fundamental, certa de que inexistem valores absolutos no ordenamento jurídico, estabelece.

Intentar-se-ão desenvolver algumas premissas respeitantes ao rechaço do anonimato, expressamente insculpido no art. 5º, IV, do texto como limite à manifestação do pensamento, explicando-lhe a validade e a legitimação no processo penal brasileiro.


2 DESENVOLVIMENTO

Com abrigo constitucional desde a Carta Imperial Brasileira de 1824, o direito à liberdade de expressão traduz um ideal inspirado pela Revolução Francesa e prestigiado pelo Estado Liberal. Cuida-se de um dos mais importantes direitos fundamentais, reivindicação de todos os homens desde os primórdios do constitucionalismo moderno.

Independentemente das discussões doutrinárias concernentes ao conceito e à classificação de tal direito na seara do Estatuto das Liberdades, soa inconteste que da liberdade de expressão “gênero” inferem-se diversas liberdades em particular, como ensina Sarlet (2014, p. 456):

Para uma compreensão geral das liberdades em espécie que podem ser reconduzidas à liberdade de expressão (gênero), e considerando as peculiaridades do direito constitucional positivo brasileiro, é possível apresentar o seguinte esquema: (a) liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de opinião); (b) liberdade de expressão artística; (c) liberdade de ensino e pesquisa; (d) liberdade de comunicação e de informação (liberdade de “imprensa”); (e) liberdade de expressão religiosa.

 De amplíssimo campo de proteção, o direito contempla um conjunto diversificado de situações, como as faculdades de conteúdo espiritual, as expressões não verbais, musicais, da comunicação pelas artes plásticas etc. Ordinariamente, porém, tutela qualquer opinião, convicção, comentário, julgamento, de importância, ou não, sobre todo assunto ou sobre toda pessoa (BRANCO; MENDES, 2012, p. 299).

Em suas variadas maneiras de concretização, a liberdade de expressão assume tanto o direito de a pessoa exprimir-se quanto o de nada desejar informar ou explicitar, consignando, então, dimensões positiva e negativa.

Essa liberdade é pressuposto essencial da própria autenticidade do indivíduo, vez que requisito para a realização digna e pessoal de cada um. Sua relevância liga-se, eminentemente, ao desenvolvimento do âmbito interno do homem, em todos os seus sentidos. Diz Tavares (2007, p. 556):

Pode-se comprovar essa afirmação pelo fato de as liberdades decorrentes da liberdade de expressão, tais como a liberdade de comunicação, de informação e de imprensa, acabarem por ser exercidas, em via de regra, como baluartes da busca do Homem por espaço próprio, ainda que cada um desses direitos apresentem dessemelhanças entre si. Essa mesma finalidade formativa será encontrada nos demais objetivos assinalados anteriormente para a liberdade de expressão. Assim ocorrerá, pois, com a mencionada busca da diversidade de opiniões. Para JÓNATAS E.M.MACHADO: “(...) a diversidade de opiniões significa um leque mais vasto de possibilidades e alternativas e, consequentemente, uma maior liberdade na formação de preferências e convicções e na tomada de opiniões”. Tem-se, assim, maior e mais apropriada possibilidade de se autodeterminar. Ora, a liberdade de expressão há de se prestar à realização pessoal, à formação individual, à livre opção de cada um. Com efeito, não pode ser ela instrumento contrário à realização pessoal. Seria mesmo contraditório que um fato pudesse, ao mesmo tempo, apoiar-se na liberdade de expressão e violá-la, enquanto categoria constitucional, em determinado caso concreto.

Mais que um direito individual subjetivo, trata-se de um valor central para o Estado Democrático de Direito e para a comunidade política, adquirindo a liberdade de expressão, neste ponto, uma dimensão coletiva, vinculada à opinião pública e ao funcionamento das instituições comunicativas.

Muito embora bastante denso seja seu agasalho constitucional, impende dizer que tal liberdade encontra limitações no próprio texto fundamental, assim como nas hipóteses de concorrência e de colisões entre direitos fundamentais, quando, a partir de um juízo de ponderação, aquela ceda a um outro direito que, num caso específico, há de merecer maior proteção.

Convém rechaçar, dessa forma, qualquer argumento tendente a considerar a existência de um direito absoluto, imune a flexibilizações, na medida em que, reitere-se, o próprio constituinte estabeleceu restrições a essa liberdade, no afã de não descuidar de outros direitos e valores igualmente dignos de guarida.

Ganha importância, aqui, o princípio da unidade da Constituição, segundo o qual esta deve ser interpretada não como conjunto assistemático de dispositivos, mas como um todo integrado de normas que se completam e se limitam de modo recíproco. Esclarecem Sarmento e Souza Neto (2012, p. 438):

O princípio da unidade da Constituição não é incompatível com o reconhecimento da existência de tensões entre os valores constitucionais, de colisões entre as suas normas. Mas ele impõe que tais colisões sejam equacionadas com base em critérios também ancorados na própria Constituição. Um desses critérios é a imposição ao intérprete de que busque a harmonização de normas constitucionais em conflito. Em outras palavras, o intérprete deve perseguir a concordância prática entre normas constitucionais que estejam em tensão, buscando preservar, ao máximo possível, os valores e interesses que lhes são subjacentes (...) Desde que sejam compatíveis com as possibilidades textuais e sistemáticas da Constituição, as soluções das tensões entre normas constitucionais devem manter, na maior extensão possível, a proteção a cada um dos bens jurídicos envolvidos.

Corolário dessas limitações, a vedação ao anonimato foi prevista, no texto constitucional de 1988, correlata ao direito à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), o qual, naturalmente, é inerente à liberdade de expressar-se.

A inteligência do constituinte, inequivocamente, deriva da percepção de que endossar o relato anônimo tem potencial de impossibilitar eventual utilização da resposta proporcional ao agravo, quaisquer pleitos judiciais por danos materiais e morais que venham a atingir a imagem (art. 5º, V) ou mesmo ações penais envolvendo, por exemplo, crimes contra a honra ou crime de denunciação caluniosa, porquanto somente por meio do conhecimento da autoria da mensagem torna-se viável proceder a uma circunstancial e legítima responsabilização do remetente.

Na mesma linha, e já adentrando a temática central deste artigo, permitir a instauração de ação penal apenas com lastro em denúncia anônima não é condizente com a sistemática constitucional respeitante aos limites à liberdade de expressão.

O sobredito destaque ao termo “apenas” não se operou de modo fortuito, ressaltando-se que o desprezo à notícia apócrifa de crime desponta quando inexistem outros elementos probatórios aptos a permitir o início da persecução criminal. Assevera Pacelli (2014, p. 58):

A chamada delação anônima, com efeito, não pode ser submetida a critérios rígidos e abstratos de interpretação. O único dado objetivo que se pode extrair dela é a vedação à instauração de ação penal com base, unicamente, em documento apócrifo. E isso porque, de fato, faltaria justa causa à ação, diante da impossibilidade, demonstrada a priori, da indicação do material probatório a ser desenvolvido no curso da ação.

No mesmo sentido, acrescentando que a autoridade policial, antes de inaugurar o inquérito, deve verificar a procedência e a veracidade das informações veiculadas pela denúncia anônima, a fim de atestar sua razoabilidade, leciona Lima (2014, p. 126):

Diante de uma denúncia anônima, deve a autoridade policial, antes de instaurar o inquérito policial, verificar a procedência e veracidade das informações por ela veiculadas. Recomenda-se, pois, que a autoridade policial, antes de proceder à instauração formal do inquérito policial, realize uma investigação preliminar a fim de constatar a plausibilidade da denúncia anônima. Afigura-se impossível a instauração de procedimento criminal baseado única e exclusivamente em denúncia anônima, haja vista a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios À responsabilidade, nos campos cível e penal. Na dicção da Suprema Corte, a instauração de procedimento criminal originada apenas em documento apócrifo seria contrária à ordem constitucional, que veda expressamente o anonimato. Diante da necessidade de se preservar a dignidade da pessoa humana, o acolhimento da delação anônima permitiria a prática do denuncismo inescrupuloso, voltado a prejudicar desafetos, impossibilitando eventual indenização por danos morais ou materiais, assim como eventual responsabilização criminal pelo delito de denunciação caluniosa (CP, art. 339), o que ofenderia os princípios consagrados nos incisos V e X do art. 5º da CF.

A jurisprudência majoritária dos Tribunais Superiores tem defendido a licitude dessas denúncias para embasar procedimentos investigativos preliminares, desde que corroboradas por outros indícios que tornem hígida a persecução criminal estatal, nos termos exemplificativos do RHC 38063/MG, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, STJ, DJe 12/11/2014 e da AP 530/MS, Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Roberto Barroso, Primeira Turma, STF, Julgamento 09/09/2014.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Assim, insta concluir ser lícita a denúncia anônima, desde que a somada a outros instrumentos de prova idôneos a robustecer a ação penal desejável, o que atende, diga-se uma vez mais, ao escopo da Constituição Federal de proibir o anonimato.

Por derradeiro, vale mencionar a observância dos argumentos ora expendidos ao disposto na legislação infraconstitucional, a saber, o art. 5º, §3º, do Código de Processo Penal, que dispõe que “qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito”, a reforçar a imprescindibilidade das averiguações por parte das autoridades responsáveis.

Isso resultou, como observado, de um balanceamento de valores, pois a liberdade de expressão e de pensamento, longe de ser intocável, pode ser sobrepujada, em virtude de opção constitucional, por outros bens jurídicos de semelhantes relevo e dignidade.


3 CONCLUSÃO

O direito à liberdade de expressão abrange um conjunto diversificado de situações, como as faculdades de conteúdo espiritual, as expressões não verbais, musicais, da comunicação pelas artes plásticas etc, tutelando, normalmente, qualquer opinião, convicção, comentário, julgamento, de importância, ou não, sobre todo assunto ou sobre toda pessoa.

Tal liberdade encontra limitações no texto fundamental, assim como nas hipóteses de concorrência e de colisões entre direitos fundamentais, quando, a partir de um juízo de ponderação, aquela ceda a um outro direito que, num caso específico, há de merecer maior proteção.

Corolário dessas limitações, a vedação ao anonimato foi prevista, na Constituição Federal de 1988, correlata ao direito à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), o qual, naturalmente, é inerente à liberdade de expressar-se.

Revela-se lícita a denúncia anônima, desde que a somada a outros instrumentos de prova idôneos a robustecer a ação penal desejável, o que atende ao escopo da Constituição Federal de proibir o anonimato, bem como à própria legislação infraconstitucional regente do tema.


4  REFERENCIAL TEÓRICO

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

LIMA. Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET; Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

NETO, Cláudio Pereira de Souza; Sarmento, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

PACELLI. Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Lucas Sales da Costa

Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lucas Sales. Vedação ao anonimato e denúncias anônimas: limitações à liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4486, 13 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35467. Acesso em: 21 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos