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Princípio da dignidade da pessoa humana como instrumento de reconhecimento do direito sucessório às famílias simultâneas

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A legislação brasileira é omissa no que diz respeito ao reconhecimento de famílias simultâneas para fins de direito sucessório, mas o tema vem sendo tratado pela doutrina e jurisprudência.

RESUMO:A legislação brasileira é omissa no que diz respeito ao reconhecimento de famílias simultâneas para fins de direito sucessório. O tema, cada vez mais recorrente nos tribunais, vem sendo tratado apenas pela doutrina e pela jurisprudência, de modo que o presente trabalho, que busca uma análise dessa relação familiar, vem pautado apenas nestas duas fontes. O reconhecimento de famílias simultâneas para o direito sucessório compreende aquelas que envolvam um casamento e uma união estável ou até mesmo entre duas ou mais uniões estáveis, englobando, inclusive, as relações homoafetivas, tema cada vez mais recorrente no cenário jurídico e político brasileiro. Em razão dessas diversas formas de relação familiar, é salutar que exista uma análise do tema baseada no princípio da dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE:Casamento; união estável; família; sucessões; famílias simultâneas; direito civil; direito das sucessões; dignidade da pessoa humana.


INTRODUÇÃO

“Ah, esses moralistas... Não há nada que empeste mais que um desinfetante”. (Mário Quintana)

Não é novidade para a sociedade brasileira, muito menos para os Tribunais, a existência de famílias simultâneas. Todavia, o seu reconhecimento encontra uma grande barreira no Poder Legislativo, o que também não é novidade quando se trata de assuntos polêmicos, uma vez que muitos dos nossos parlamentares preferem permanecer omissos nesses casos, a bater de frente com a opinião pública e seu eleitorado. Pois bem, essa dificuldade em se debater o tema, alimentada pela “moralização” do direito e das relações sociais, tem feito que ele encontre espaço apenas na doutrina e nos tribunais.

O Direito é feito pela sociedade e para sociedade. No entanto, não consegue acompanhar com a mesma velocidade a dinâmica das relações sociais e consequentemente das relações familiares. Ao longo do tempo o conceito e a forma de estruturação da família vêm sofrendo mutações e muitas delas ainda não estão previstas em lei, entre elas, as famílias simultâneas.

O fato de a sociedade não ver com bons olhos a existência dessa relação familiar não exclui a sua existência. Elas estão ai e precisam ser amparadas pelo direito, sob pena de que se cometam injustiças e que se fira o princípio do acesso ao judiciário. A dinâmica do direito dá espaço para o surgimento dessas novas relações sociais e familiares e exige que o direito crie formas de tutelá-las.

Antes de adentrarmos no mérito a que o artigo se propõe, é importante uma conceituação do que são as famílias simultâneas. Em breves palavras, essa relação familiar se dá quando o cônjuge no casamento ou o companheiro na união estável mantém uma relação familiar paralela à sua família constituída. Ou seja, isso nunca foi novidade desde a existência da humanidade.

Tal relação é muitas vezes vista pela sociedade como adultério, traição ou um “lance”, como tem se colocado nas letras de música. O problema e que não se trata apenas de um caso, mas de uma relação duradoura, muitas vezes pública e com filhos, criando uma nova família.  A visão e postura monogâmica adotada pela nossa sociedade desde sua concepção é o principal instrumento que faz com que essas novas relações familiares tenham dificuldade de serem aceitas pela sociedade.

De forma lúcida, a ilustre professora Maria Berenice Dias traça alguns comentários acerca do tema:

Pelo jeito, infringir o dogma da monogamia assegura privilégios. A mantença de duplo relacionamento gera total irresponsabilidade. Uniões que persistem por toda uma existência, muitas vezes com extensa prole e reconhecimento social, são simplesmente expulsas da tutela jurídica. A essa “amante” somente se reconhecem direitos se ela alegar que não sabia da infidelidade do parceiro. Para ser amparada pelo direito precisa valer-se de uma inverdade, pois, se confessa desconfiar ou saber da traição, recebe um solene: bem feito! É condenada por cumplicidade, “punida” pelo adultério que não é dela, enquanto o responsável é “absolvido”. Quem mantém relacionamento concomitante com duas pessoas sai premiado. O infiel, aquele que foi desleal permanece com a titularidade patrimonial, além de ser desonerado da obrigação de sustento para com quem lhe dedicou a vida, mesmo sabendo da desonestidade do parceiro. Paradoxalmente, se o varão foi fiel e leal a uma única pessoa, é reconhecida união estável, e imposta tanto a divisão de bens como a obrigação alimentar. A conclusão é uma só: a justiça está favorecendo e incentivando a infidelidade e o adultério!

Para Maria Berenice Dias, o não reconhecimento de famílias simultâneas não condiz com a realidade, é fechar os olhos para conjuntura atual da sociedade. Esse “fechar os lhos” é um caminho para o cometimento de diversas injustiças. Ora, numa sociedade onde já se concede direito a vários modelos de famílias, monoparentais, homoafetivas, pluriparentais, eudemonistas, etc, não existe razão de ser ao não reconhecimento de famílias simultâneas. Negar direitos a uma família por não se concordar com a sua formação não condiz com o Estado Democrático de Direito.


DA AUSÊNCIA DE AMPARO LEGAL ÀS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS

A importância de discussões, sejam doutrinárias, sejam jurisprudenciais acerca do tema simultaneidade familiar é inegável. Todavia, o não reconhecimento legal dessa relação familiar acaba tornando-a apenas como uma situação de fato e não de direito, o que não impede a existência de decisões acanhadas sobre o tema.

Como dito no parágrafo anterior, a falta de normas que regulem as famílias simultâneas não tornam o ordenamento jurídico alheio a esse tema, mesmo que a tenha apenas como uma relação de fato e não direito. Sua tutela apresenta-se amparada pelos princípios, que estabelecem uma espécie de canal entre mundo exterior, que muda constantemente de forma bem mais rápida e mundo das normas que o acompanha, porém de forma mais lenta. É esse canal que permite a tutela das relações de sucessão envolvendo famílias simultâneas.

As relações entre os indivíduos, sejam elas quais forem, necessitam de regulamentação e amparo jurídico e legal. Posto isto, não existe razão de ser numa omissão do Estado para regulamentar esse tipo de relação familiar. As famílias simultâneas estão aí, existem de fato e precisam de amparo legal sob pena de não concederem direitos a terceiros que podem ser entendidos como direitos fundamentais e de violação do princípio da dignidade da pessoa humana, tão valioso para o nosso ordenamento jurídico.

A FAMÍLIA MONOGÂMICA

Antes de começar a traçar algumas considerações, faz-se oportuno trazer o pensamente de dois civilistas de grande importância, cada uma em seu tempo, Washington de Barros Monteiro e Rodrigo da Cunha Pereira, respectivamente:

Em todos os países em que domina a civilização cristã, a família tem base estritamente monogâmica, que, no dizer de Clóvis, é o modo de união conjugal mais puro, mais conforme os fins culturais da sociedade e mais apropriado à conservação individual, tanto para os cônjuges como para a prole. A monogamia constitui a forma natural de aproximação sexual da raça humana. (MONTEIRO, 2001, v.2, p.54)

Por sua vez, Rodrigo da Cunha Pereira expõe:

Começa-se, então, a fazer distinções através das expressões “concubinato puro” e “concubinato impuro”. Essas expressões veiculam estigmas morais com as quais não se pode concordar. Porém, é necessário fazer uma distinção entre concubinato adulterino e não adulterino. Tal distinção não tem a função de discriminar ou de “moralizar”. A importância desta distinção está em manter a coerência em nosso ordenamento jurídico com o princípio da monogamia. Se assim não o fizéssemos, estaríamos destruindo um princípio jurídico ordenador da sociedade. Todo o Direito de Família está organizado em torno desse princípio, que funciona, também, como um ponto-chave das conexões morais. (DIAS e PEREIRA, 2002, p. 231).

Antes de mais nada é importante ressaltar que a monogamia, tal como é posta, não se trata de uma determinação moral empurrada goela a baixo, mais de uma imposição do nosso próprio ordenamento jurídico. O comportamento moral das pessoas atua como um indicativo para a criação das leis. Todavia, o descumprimento desses indicativos não resulta em nenhuma reprimenda jurídica, mas tão somente num desconforto social por parte daqueles que não aceitam tal conduta. Diferentemente, aqueles que descumprem preceitos legais, tais como a imposição da monogamia, sofrem restrições jurídicas. No caso da monogamia, especificamente, gera restrições tanto de natureza civil como de natureza penal.

Mesmo estando arraigada a cultura brasileira, a monogamia, tão como é conceituada pelo próprio significado da palavra, está contida de forma expressa na Constituição Federal de 1988, tão pouco em qualquer outra norma que verse sobre Direito de Família.

Partido desse ponto é importante destacar que a monogamia não é um princípio jurídico, pois, como dito anteriormente, não vem contida de forma expressa na Carta Magna, nem na legislação infraconstitucional. Contudo, a sua defesa de forma inflexível acaba batendo de frente e desrespeitando princípios basilares previstos na Constituição, como o princípio da dignidade da pessoa humana, pois diz que aquelas formas que determinadas famílias escolheram para se formar não são corretas, pois não seguem determinados princípios e regras morais, portanto não merecem reconhecimento legal e consequente amparo jurídico.

A constatação do não reconhecimento expresso da monogamia no ordenamento jurídico pátrio nos leva a reflexão de qual motivo então faz com que se defenda com tanta veemência a manutenção do modelo monogâmico no Brasil. A resposta mais óbvia é a proibição expressa da bigamia o que de forma inversa acaba estimulando a defesa da monogamia.

Assim preceitua o Código Penal:

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

Ora, se no plano jurídico apenas a bigamia é colocada no ordenamento jurídico como relação de simultaneidade familiar proibida pela legislação pátria, as demais formas apresentam-se apenas como reprovabilidade moral. Portanto, não cabe ao Estado fazer qualquer tipo de imposição para que esses tipos de relações e modelos familiares se enquadrem no modelo monogâmico, muito menos que se adéquem ao que é moralmente aceito.

Como dito no inicio desse trabalho, a existência de famílias simultâneas não se apresenta como novidade, tão pouco o fato das pessoas traírem seus cônjuges ou companheiros. Isso sempre existiu e, com a dinâmica das relações sociais e a proximidade cada vez maior entre pessoas pelas redes sociais, parece que tem se tornado mais frequente. Se não é verdade que tem se tornado mais frequente, pelo menos podemos dizer que casos de traição tem tido cada vez mais publicidade. A questão é que, levando em consideração essa elevação dos casos ou de publicidade dos casos, poderíamos pensar se ainda existe a monogamia.

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A verdade é que relações exclusivamente monogâmicas tem sido cada vez menos frequentes. A sociedade impôs um ritmo de desvinculação desse modelo considerado por muitos um modelo machista e ultrapassado, para aceitar novos modelos de relações familiares mais amplos que atendam as necessidades das pessoas na atualidade. Todavia, o ordenamento jurídico e aqueles responsáveis pela mutação, nosso parlamento, tem tomado uma postura cada vez mais reacionária, indo na contramão do caminho seguido pelos novos modelos de família.

A legislação atual proíbe expressamente a existência de dois casamentos (bigamia). Todas as demais relações de simultaneidade familiar são questionadas a partir de uma tese de não seguimento do modelo monogâmico, não amparada pelo nosso ordenamento jurídico pátrio. Enquanto não se regulam tais relações, as mesas dos juízes continuaram cada vez mais abarrotadas de processos questionando a legalidade e a constitucionalidade da forma que determinadas famílias escolheram para se constituir.

DAS FORMAS DE SIMULTANEIDADE FAMILIAR

Uma das formas mais comuns de simultaneidade familiar e que não encontram tanta ou quase nenhuma rejeição na sociedade, é aquela onde os filhos, após a separação dos pais, passam a conviver em dois núcleos familiares, cada um composto por um dos pais juntamente com a madrasta ou padrasto. Podemos considerar essa forma de simultaneidade familiar como aquela vista pela perspectiva da filiação.

Como dito anteriormente, esse espécie de simultaneidade familiar vista sob o ponto da filiação já não encontra mais resistência na sociedade, pois a separação entre os pais entre os pais não encerra o vínculo entre filhos. Ou seja, estes sempre serão um elo entre pais.

Todavia, quando a forma de simultaneidade familiar passa do prisma da filiação para a simultaneidade conjugal, já encontra enorme resistência por parte da sociedade, usando como argumento de rejeição o princípio da monogamia, se é que ele existe.

Partindo desse pseudo-princípio, a sociedade e o Poder Judiciário têm fechado os olhos para esse tipo de relação familiar, julgando-o moralmente inaceitável, colocando todos os tipos de simultaneidade familiar no mesmo balaio de qualquer traição ou adultério. O caso é que existe uma diferença abissal entre uma mera traição e uma relação familiar, baseada na continuidade e na afetividade, muitas vezes gerando até filho como já dito anteriormente. O problema é que a moralização da família coloca-se como pedra no caminho para que sejam criadas formas de tutelar os direitos a este modelo familiar e sua consequente aceitação por parte da sociedade. Ou pelo menos respeito.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIFERENÇA ENTRE A SIMULTANEIDADE FAMILIAR E O ADULTÉRIO

Importante começar essa abordagem com a afirmação de que não é qualquer tipo de relação afetiva que pode ser considerada como entidade familiar. Pela importância que esse assunto representa no mundo jurídico, existem pressupostos mínimos que devem ser observados, até mesmo para que as formas de simultaneidade familiar não sejam confundidas como meras traições.

O primeiro ponto a ser observado é a intenção de continuidade, de construírem algo juntos e existência de uma boa-fé objetiva, que estabelece a existência de um respeito mutuo.

Isso por si só mostra que nem toda relação afetiva como um mero adultério podem ser consideradas como família. Ou seja, deve haver no mínimo uma característica familiar, imposta pela intenção de continuidade.

Partindo dessa chamada intenção de continuidade, outro ponto que merece destaque é o pré-requisito de durabilidade para que determinado relacionamento possa ser considerado uma família. Ora, não se mede a relação e o afeto entre duas pessoas pelo tempo que ela dura. A intenção de instituição de uma família entre duas pessoas pode ser comprovada por pessoas próximas e que possam testemunhar.

Entre os principais requisitos colocados para o reconhecimento de entidade familiar para as relações de simultaneidade familiar estão a boa-fé, afetividade, coexistência e estabilidade.

O pré-requisito da boa-fé apresenta-se como o principal e mais polêmico. Este se divide em boa-fé subjetiva e boa-fé objetivo. Aquela diz respeito ao desconhecimento de uma situação jurídica anterior, ou seja, do casamento anterior de um dos cônjuges. Se esse desconhecimento existe é porque um dos cônjuges omitiu, o que já desrespeita a boa-fé objetiva que reza pelo respeito mutuo e pela busca de um dos companheiros ou cônjuges não frustrarem os outros. A partir do momento que um dos cônjuges sabe da relação anteriormente estabelecida e aceita se manter na relação, este fere a boa-fé subjetiva, que preza pelo desconhecimento da situação jurídica anterior.

Continuando a análise dos demais elementos, temos a afetividade como um dos principais pontos que tem embasado decisões pioneiras no direito civil, especialmente no que diz respeito a sucessões.

Inegável é que o afeto encontra-se presente nas relações familiares tradicionais, sendo caracterizadas no tratamento/relação mútuo entre os cônjuges e destes para com seus filhos, que se vinculam não só pelo sangue, mas por amor e carinho.

A valorização do elemento afeto como basilar na sua formação e delineação de relação de parentesco é uma das novas concepções da ordem civil trazida pelo atual texto de Código Civil.

Ao lado da afetividade, apresentam-se a coexistência e a estabilidade. Relações esporádicas não podem ser consideradas relações familiares. São esses itens que diferenciam um simples adultério de uma relação de simultaneidade familiar. Tal reconhecimento pode ser feitos até mesmo por pessoas próximas ao casal.

Em suma, a observância desses aspectos, quais sejam, boa-fé, afetividade, coexistência e estabilidade são fundamentais para que determinada relação seja considerada como simultaneidade familiar.

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Sobre o autor
Hemerson Daniel Fernandes de Sousa

Advogado, formado pela Universidade Federal do Piauí, Assessor Jurídico da Vice-Governadoria do Estado do Piauí, Consultor Parlamentar na Assembléia Legislativa do Estado do Piauí, Coordenador-Geral do Congresso de Ciência Política e Direito Eleitoral do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANIEL, Hemerson Fernandes Sousa. Princípio da dignidade da pessoa humana como instrumento de reconhecimento do direito sucessório às famílias simultâneas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4920, 20 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35749. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Artigo realizado sob orientação da Prof.ª Ms. Christianne Matos para conclusão da disciplina de Direito das Sucessões.

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