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Penhora do Bem de Família do Fiador Locatício: (In)Constitucionalidade

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31/01/2015 às 08:59
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Há incoerência jurídica no ordenamento brasileiro, na medida em que a legislação inquilinária afastou da proteção da lei de impenhorabilidade o fiador proprietário de bem de família.

Sumário: Introdução.CAPÍTULO 1. Direito à Moradia e Bem de Família..1.1 A Evolução Histórica da Família.Origem e Formação da Família..Conceito e Definição do Instituto da Família.1.2 O Direito à Moradia.Breves Comentários acerca dos Direitos Humanos Fundamentais.Desenvolvimento Histórico dos Direitos Fundamentais: as Dimensões de Direitos.A Evolução dos Direitos (fundamentais) Sociais e o Reconhecimento do Direto à Moradia.O Direito à Moradia como Garantia de Patrimônio Mínimo..1.3 O Bem de Família.Evolução Histórica do Bem de Família.Conceito e Definição do Instituto do Bem de Família.A Implantação do Instituto do Bem de Família no Brasil.Espécies de Bem de Família: Voluntário e Legal..CAPÍTULO 2. Lei do Inquilinato: Contrato Locatício e Fiança.2.1 O Contrato de Locação e a Fiança Locatícia.Do Direito das Obrigações à Teoria Geral dos Contratos..Dos Contratos em Espécie: o Contrato de Locação. As Garantias do Contrato Locatício..O Contrato de Fiança e a figura do Fiador.A Função Social dos Contratos e a Garantia do Patrimônio Mínimo.CAPÍTULO 3. A (In)Constitucionalidade da Penhora do Único Bem de Família do Fiador em Contrato Locatício. 3.1 A (In)Constitucionalidade do inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90.A Constitucionalidade Condicionada do inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90. Entendimentos do STF e Decisões Divergentes.Conclusão..Nota Complementar..Referências Bibliográficas.


“A pessoa prevalece sobre qualquer valor patrimonial.”

Pietro Perlingieri


INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, em especial nos países desenvolvidos, o problema de acesso à moradia tem-se agravado, provocando intensos debates entre estudiosos de diferentes áreas, como sociólogos, governantes e, como não se pode esquecer, pensadores do Direito. No Brasil, o problema do déficit habitacional não é novidade, pois já no Século XX a crise no setor de moradia assumia dimensões muito elevadas. Diante de tal dilema, a possibilidade de acesso à moradia passou a ser tratada pelo Poder Público não apenas como concretização do direito de habitação, mas, sobretudo, como forma de garantir a ordem, a moral e os bons costumes.

A locação de imóveis tornou-se um fato social de enorme relevância em nosso país, em razão, repisa-se, de grande parte da população não ter acesso ao que comumente chamamos de “casa própria”. Necessitando morar e sem meios de tornar-se proprietário de um imóvel, a solução mais viável apresenta-se através da locação, pois os recursos requeridos para locar um imóvel são infinitamente inferiores aos necessários para adquirir uma moradia. Em consequência da relevância dessa matéria, o tema “locação” ou “inquilinato” foi objeto de inúmeras e sucessivas leis, de maneira que nasceram as legislações intervencionistas, através das quais o Estado passou a ditar grande parte das condições do contrato de locação, restringindo de forma profunda a liberdade contratual e mitigando a autonomia da vontade.

Nesse diapasão, com a edição da Lei da Impenhorabilidade do Bem de Família, Lei 8.009/90, ocorreu uma maior amplitude do instituto do bem de família e, por consequência, intensificou-se a proteção ao direito à moradia em relação ao direito de crédito. Pode-se dizer que, tanto a lei inquilinária, Lei 8.245/91, quanto a lei da impenhorabilidade do bem de família, constituem-se em exemplos de legislação infraconstitucional que realizam e dão concretude ao direito fundamental à moradia. Todavia, um ponto nevrálgico de divergência surgiu entre estes dois sistemas, ocasionando o que se pode chamar de incoerência jurídica. Este ponto de conflito reside, precisamente, no fiador proprietário de bem de família, uma vez que a legislação inquilinária afastou da proteção da lei de impenhorabilidade seu bem imóvel, ainda que tivesse apenas um.

Assim, a ideia de desenvolver o presente tema originou-se, inicialmente, do profundo sentimento de injustiça que desperta a situação do fiador privado de sua moradia em razão do débito de outrem. A vítima dessa situação, ou seja, a pessoa que afiançou, traz no seu olhar o desespero acompanhado da incompreensão do motivo de estar sendo penalizado, quando sua única intenção foi ajudar um amigo e, principalmente, de estar sendo tão duramente castigado, pois será privado de seu maior bem – o seu lar.

Nessa perspectiva, não se pode esquecer que, atualmente, o bem de família possui íntima ligação com a ideia de patrimônio mínimo e com o direito humano fundamental à moradia, ambos corolário do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Deste modo, se propugna uma nova interpretação da norma inserta no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, que admite a penhora do único bem do fiador, isto é, se é possível sacrificar o direito humano fundamental à moradia do fiador ou, ainda, se existe justificativa para este sacrifício.


CAPÍTULO 1

DIREITO DE MORADIA E BEM DE FAMÍLIA

1.1 A Evolução Histórica da Família

Origem e Formação da Família

Desde os primórdios, a instituição da família se fez presente. Talvez não da maneira como a conhecemos atualmente, haja vista sua constituição ter evoluído ao longo do tempo. Contudo, foi a única instituição que, efetivamente, resistiu à passagem dos séculos.

Segundo Friedrich Engels (1987), com o intuito de compreender como o homem evoluiu e formou a família, três épocas principais destacaram-se até que o homem chegasse ao estado da civilização. Num primeiro momento, no estado selvagem, os homens viviam em árvores, morada que os protegiam de feras.

A etapa anterior somente foi transposta, graças, não somente ao uso e posse do fogo obtido pelo atrito, mas, sobretudo, pelo início da formação da linguagem articulada. É durante esta etapa que inventam-se as primeiras armas, como a clava e a lança, toscos instrumentos de pedra sem polimento, característico do período paleolítico, para, mais tarde, vir a ser criado o arco e a flecha. De posse de tais armas, o homem passou a caçar e o produto da caça passou a ser um alimento regular, vindo esta atividade a se tornar uma ocupação costumeira. Nesse ínterim, percebeu-se que as faculdades do homem começavam a se desenvolver na medida em que, de posse do fogo e do machado de pedra, construía pirogas, fazia vigas para edificação de casas etc, mostrando indícios e intenção em querer estabelecer residência fixa (ENGELS, 1987).

O estágio seguinte, o estado de barbárie, representou uma evolução mais significativa, caracterizando-se pela introdução da cerâmica a qual nasceu com o costume de cobrir vasos de madeira com argila. Em seguida, passa-se à fundição dos minérios de ferro até alcançar a fase final, o estado da civilização, com a invenção da escrita alfabética. É neste período que o homem começa a criar e domesticar animais, a cultivar plantas e que, por conseguinte, inaugura-se o princípio da agricultura (ENGELS, 1987).

Percebe-se assim que, através da evolução contínua de um estado para o outro, o homem não somente estabeleceu “raízes” em um local específico a fim de fixar residência, mas foi constituindo grupos, os quais foram evoluindo e se desenvolvendo até diminuir substancialmente o número de seus componentes, de maneira a compor a família tal qual hoje conhecemos, a família monogâmica, individual, nuclear, restrita a um número “limitado” de pessoas.

Assim, relativamente à evolução e formação da família, nos primeiros tempos, conclui-se ter esta, estado sempre presente, e, formada, inicialmente, por muitos componentes.

Para Jenny Magnani de O. Nogueira, na obra organizada por Antônio Carlos Wolkmer (2004), baseada em A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges, o princípio formador da família e de todas as demais instituições na antiguidade, teria sido a religião primitiva, constituída por diversas crenças. Naquele tempo, o que unia os membros da família antiga não era o nascimento ou sentimento, mas o culto aos antepassados e ao fogo sagrado, que somente deixava de arder, quando a família inteira houvesse se extinguido. Coulanges diz:

A origem da família antiga não está unicamente na geração. A prova disso temos no fato de a irmã na família não igualar seu irmão, no filho emancipado ou a filha casada deixarem completamente de fazer parte dela (…). O esteio da família não o encontramos tão pouco no afeto natural. O direito grego como o direito romano não tinham em conta este sentimento. Este podia realmente existir no íntimo dos corações, mas para o direito não contava, nada era. (…) O que uniu os membros da família antiga foi algo de mais poderoso do que o nascimento: o sentimento ou a força; na religião do lar e dos antepassados se encontrava esse poder. A religião fez com que a família formasse um corpo nesta e na outra vida. A família antiga é assim, associação religiosa, mais que associação natural. (…) Sem dúvida, não foi a religião que criou a família, mas seguramente foi a religião que lhe deu as suas regras (…) (pg. 36 e 37).

Nesse passo e pelo exposto, infere-se que a família era mais uma associação religiosa do que uma associação natural, haja vista que o critério não era a consanguinidade, mas a sujeição ao mesmo culto, a adoração aos mesmos deuses-lares, a submissão ao mesmo pater familias o qual era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Era o pater quem comandava, oficiava o culto aos deuses domésticos e distribuía justiça. Exercia sobre os filhos direito de vida e de morte, podendo impor-lhes penas corporais, vendê-los ou tirar-lhes a vida. A mulher vivia subordinada à autoridade marital, nunca adquirindo autonomia, uma vez que passava da condição de filha à de esposa. Além disso, somente o pater adquiria bens, vindo a exercer poder, não somente sobre o patrimônio familiar, mas, como dito anteriormente, sobre a pessoa dos filhos e da mulher. Entretanto, com o tempo, arrefeceram-se tais regras, visto que as necessidades militares estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos. No Brasil, a organização patriarcal vigorou por todo século XX, não apenas no direito, mas mormente nos costumes, onde o pai, como um pater romano, exercia autoridade plena sobre os filhos que nada faziam sem a sua permissão (PEREIRA, 2004).

O poder paterno era tal que se tornou uma das peças fundamentais para se entender a antiga concepção da família, da autoridade, da herança e, principalmente, da propriedade. A idéia da propriedade privada fazia parte da própria religião, pois determinava que cada família deveria ter seu lar, visto que, tendo esta seus deuses e seu culto, consequentemente deveria, também, ter seu lugar na terra. Assim, a propriedade, não individual, mas da família como um todo, e, um lugar onde os seus antepassados repousavam e passavam a ser considerados como deuses, transformava o solo da família em propriedade inalienável e imprescritível (WOLKMER, 2004).

De acordo com Wolkmer (2004), é neste sentido que a lei primitiva da propriedade e das sucessões teve, em grande parte, sua origem na família e nos procedimentos que a circunscreveram, como as crenças, os sacrifícios e o culto aos mortos.

Assim, uma vez conjugada a família, que inicialmente era organizada sob a direção do pater, característica das sociedades primitivas, ela reunia todos os descendentes de um tronco ancestral comum, unificada em função do culto religioso bem como de fins políticos e econômicos, de modo a se tornar célula-master da organização social (BITTAR, 1993).

Conceito e Definição do Instituto da Família

Superada a pretensa narrativa histórica no tocante à evolução e à formação e constituição da família, mister conceituá-la. Assim, inicialmente, recorre-se à etimologia e significado da palavra.

Etimologicamente, o termo “família” origina-se do latim “fâmulus” que significa conjunto de servos e dependentes de um chefe ou senhor. Entre os chamados dependentes, incluíam-se a esposa e os filhos, de maneira que a família greco-romana compunha-se de um patriarca e seus fâmulus: esposa, filhos, servos livres e escravos (PRADO, 1984).

Atinente à acepção da palavra, de acordo com Prado (1984), no sentido popular e nos dicionários, significa pessoas aparentadas que vivem em geral na mesma casa, particularmente, com o pai, a mãe e os filhos, ou, ainda, pessoas do mesmo sangue, da mesma ascendência, linhagem, estirpe ou admitidos por adoção. Outros autores comungam da mesma definição no tocante ao significado do termo, definindo a família como o conjunto de pai, mãe e filhos; de pessoas do mesmo sangue, descendência e linhagem (BUENO, 2007), ou, mais precisamente como o grupo de pessoas que descendem, por consanguinidade, de um tronco ancestral comum e que usam o mesmo patronímico, originário de antepassados próximos ou remotos. É o conjunto doméstico formado pelo marido, a mulher e os filhos do casal ou filhos por adoção. Pelo novo Código Civil, a família abrange unidades familiares formadas por casamento, união estável ou comunidade de qualquer genitor ou descendente (pg. 137).

De fato, no que diz respeito aos tipos de família, muito embora a mais conhecida seja aquela composta por pai, mãe e filhos, nomeadamente conhecida como família nuclear, subsistem outras formas como exemplifica Antônio de Paulo (2002). Ao mais, distingui-se igualmente em dois gêneros: a família de origem, originada por nossos pais, e, a família de reprodução, formada pela união de dois indivíduos e os filhos decorrentes deste enlace (PRADO, 1984).

Todavia, segundo Pereira (2004), conceituar a família exige certo cuidado dada sua diversificação, na medida que, na largueza desta noção, a figura da gens romana predomina: leva-se em consideração não somente o cônjuge, mas os filhos do cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os cônjuges dos irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados). No sentido genérico e biológico considera-se esta, como outrora dito, o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum, compreendendo os parentes em linha reta (ascendentes e descendentes), e estendendo-se aos colaterais. Ulteriormente contudo, sob a influência da lei da evolução, embora durante séculos tenha sido um organismo extenso e hierarquizado, a família retraiu-se apenas ao grupo formado pelos pais e filhos.

Em sua evolução pós-romana, a família recebeu contribuição do direito germânico, vindo a assumir o modelo tal qual é hoje e assumir cunho sacramental, consagrando ao final, a ideia de Fustel de Coulanges ao concluir que a família era organizada não somente em razão dos seus, mas em função da ideia religiosa.

No entanto, outras características advindas do direito moderno vieram a revestir a instituição da família à medida que substituiu a organização autocrática por uma organização democráticaafetiva, deslocando sua constituição do princípio da autoridade para o da compreensão e do amor.

Nesse ínterim, consoante Pereira (2004), os pais passaram a exercer o poder familiar, de modo a tanto o pai quanto a mãe participar na educação e orientação dos filhos, disciplinando seu espírito na aquisição de bons hábitos influentes, mais tarde, na própria sociedade. Ainda, no desenvolvimento do conceito de família, não mais se comportava a classificação preconceituosa ligada à classificação dos filhos em adotados ou em “legítimos” ou “ilegítimos” que, por metonímia, distinguia à família “legítima”, a qual tinha por base o casamento, da “ilegítima”, originada das relações extramatrimoniais.

Quanto à expressão “poder marital”, no caso brasileiro, já se considerava a mesma um eufemismo vazio, desde a promulgação do texto constitucional de 1988, o qual equiparou direitos e deveres dos cônjuges nas relações matrimoniais e a mulher passou a compartilhar da administração do lar, repartindo com o marido decisões e responsabilidades. Além disso, o grupo familiar reduziu numericamente, porquanto que compartilhadas decisões e responsabilidades com o marido ou companheiro, a necessidade econômica ou até mesmo a simples conveniência, levou a mulher a exercer atividades fora do lar, deixando para trás, como sua principal atuação, o papel de dona de casa e do lar (PEREIRA, 2004).

Portanto, com a promulgação da Carta Magna, as regras de igualdade entre os cônjuges e a paridade entre os filhos, materializou e traduziu recomendações feitas a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Muito embora cogite-se crise na família, tal não se pode conceber, pois, como organismo natural, a família nunca acaba e como organismo jurídico, elabora-se uma nova organização. Ela é única em seu papel determinante no desenvolvimento da sociabilidade, da afetividade e do bem estar físico do indivíduo. Portanto, a família não é um simples fenômeno natural, mas sim uma instituição social variando através da história e apresentando formas diversas em cada época e lugar (PRADO, 1984).

É a instituição que concede prestígio social e econômico a seus membros. É ela que recebe a inequívoca proteção do Estado, com normas de cunho protetivo, o qual intervém cada vez mais à medida em que os poderes privados declinam. Daí regulamentação própria que recebe no plano jurídico, em ramificação no Direito Civil, denominada de Direito de Família. Assim, o direito de família representa, em si, um conjunto de princípios e regras que regem as relações entre o casal e os familiares, seja pessoas ligadas por vínculos naturais ou jurídicos, conjugais ou de parentesco, completando-se com a assistência resultante de liames jurídicos tutelares, previstos para a proteção de incapazes e ausentes. Portanto, o direito de família regula o estatuto familiar da pessoa a fim de resguardar os direitos individuais de seus integrantes, conciliando uma sistemática que entende a família como elo fundamental entre o indivíduo e a sociedade (BITTAR, 1993).

Logo, por tudo que representa, a família é, universalmente, considerada célula social por excelência, organizando-se em razão de seus membros, em um agrupamento o qual se constitui naturalmente e cuja existência a ordem jurídica reconhece. Consequentemente, a Constituição Federal do Brasil de 1988, proclamou-a base da sociedade e com especial proteção do Estado . Entretanto, necessário dizer que o reconhecimento jurídico com a formal proteção do Estado já se fazia presente em nosso ordenamento jurídico, muito embora de forma implícita. E diga-se que tal reconhecimento foi entendido como subentendido em virtude de adesão e ratificação a tratados internacionais, dentre outros instrumentos de mesmo cunho, inseridos em nosso ordenamento jurídico por força do parágrafo 2º do artigo 5º da CF/88, o qual reconhece e adota direitos e garantias decorrentes de tratados do qual o Brasil seja parte. Neste caso, reitera-se, este direito já estava protegido, não somente em razão do disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 , mas, igualmente, em decorrência do artigo 17  da Convenção Americana de Direitos Humanos, ou, mais precisamente, o Pacto de San José da Costa Rica, de 26 de novembro de 1969.

Por fim, ainda que não seja novidade, assumiu relevo a instituição da família. E frise-se que, embora tenha o homem inicialmente se reunido em grandes grupos e clãs, até finalmente se reduzir à família nuclear – pai, mãe e filhos, a finalidade maior deste enlace, não foi unicamente satisfazer às necessidades básicas de ordem pessoal e patrimonial. O principal intuito do homem foi estabelecer um lugar específico que servisse de refúgio e abrigo não apenas para si, mas especialmente para aqueles que compunham sua família, “os seus”, quando dos reveses da vida e no compartilhar dos momentos de glória. A formação e a constituição da família trouxe algo intrínseco à sua existência: a necessidade de um lugar para habitar, de uma moradia.

1.2 O Direito à Moradia

Breves Comentários acerca dos Direitos Humanos Fundamentais

A necessidade de moradia é uma condição histórica, antiga e vital na história da humanidade. No início da história da humanidade, os seres humanos faziam das cavernas a sua moradia. Ainda que a vida fosse muito rudimentar, o homem já sentia a necessidade de possuir um lugar, de abrigar-se e sentir-se acolhido em um local seguro onde pudesse, sobretudo, armazenar bens, ainda que fossem apenas comestíveis. Por esta razão, o homem procurou construir seu abrigo, em qualquer parte, fosse na copa de uma árvore, em uma caverna, nos buracos das penhas, e, até mesmo no gelo, para proteger-se de intempéries e predadores.

Desta forma, ganhou destaque e importância o direito à moradia, porquanto essencial e fundamental ao homem, não enquanto indivíduo isolado, mas especialmente enquanto família.

Desta feita, impossível escaparmos, primeiramente, a uma reflexão no que diz respeito ao direitos fundamentais. Consoante Aina (2002), ao falarmos de direitos fundamentais, estamos nos referindo a um conjunto mínimo de direitos subjetivos, considerados essenciais para que o indivíduo da era contemporânea possa viver com um padrão aceitável de dignidade, realizando efetivamente o princípio da dignidade da pessoa humana insculpido na Carta Magna de 1988 .

Todavia, antes de dar prosseguimento ao trabalho, são imprescindíveis alguns esclarecimentos de ordem didática, no tocante às expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, pois, ainda que as mesmas se refiram a direitos inerentes à essência humana, carecem de tal elucidação para tornar possível algumas distinções. Não há dúvida que os direitos fundamentais, de certa forma, são também, e sempre, direitos humanos. Em que pese os termos serem comumente utilizados como sinônimos, a explicação procedente, segundo Sarlet (2001), é de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado. Já a expressão, direitos humanos, guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referirem-se a posições jurídicas reconhecidas ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, dirigindo-se para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

Ainda, nesta mesma senda, para o jurista hispânico, Pérez Luño, citado por Sarlet (2001), o critério mais adequado para determinar a diferenciação entre ambas categorias é o da concreção positiva, uma vez que o termo direitos humanos se revelou como um conceito de contornos mais amplos e imprecisos que a noção de direitos fundamentais, possuindo estes sentido mais restrito e preciso, na medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidas pelo direito positivo de determinado Estado. Assim, parece lógico e correto afirmar que os direitos fundamentais nascem e acabam com as respectivas Constituições, de modo que, em face de tal constatação, verifica-se que as expressões “direitos fundamentais” ou “direitos humanos”, em que pese sua habitual utilização como sinônimas, se reportam a significados distintos. Entretanto, reconhecer a diferença não significa desconsiderar a íntima relação entre estas duas classes de direitos, ainda mais se levado em consideração que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra, se inspiraram tanto na Declaração Universal de 1948 como em outros documentos de ordem internacional.

Não obstante sua distinção, repisa-se, não se desconsidera a íntima relação entre estas duas categorias, de tal sorte que, nas palavras de Sarlet (2001), vem ocorrendo um processo de aproximação e harmonização rumo ao que já está sendo denominado de direito constitucional internacional.

Desenvolvimento Histórico dos Direitos Fundamentais: as Dimensões de Direitos

Transposta a parte a respeito do significado das expressões a pouco estudadas, mister dizer que o desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais é a história do próprio homem na luta constante pela paz, segurança, liberdade e igualdade. É também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser residem, justamente, no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem.

Foi na Inglaterra da Idade Média, mais especificamente, no século XIII, que encontrou-se o primeiro documento, considerado no mundo anglo-saxão, como a base do conceito atual dos direitos do homem. Trata-se da Magna Charta Libertatum, a aristocrática Carta Magna de 1215 , que serviu, dentre outros documentos, como ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia de propriedade (SARLET, 2001).

Todavia, foi com os estágios que os direitos humanos fundamentais percorreram ao longo de seu processo evolutivo, que se deu margem ao surgimento de uma construção doutrinária que classificou tais direitos em dimensões, adotando-se, classicamente três, embora alguns doutrinadores defendam maior número.

Sua sistematização iniciou-se com o reconhecimento dos chamados direitos fundamentais de primeira dimensão, correspondentes aos direitos civis e políticos, a partir do final do século XVIII. A necessidade de resguardar os indivíduos do abuso do Estado quanto à sua vida, à sua liberdade e à sua propriedade, demonstraram a preponderância destes direitos, de modo a garantir que as pessoas pudessem desenvolver-se e construir seus projetos de vida com segurança e justiça. Assim, demarcou-se uma “zona” de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia em face de seu poder, vindo o homem individualmente considerado ser titular destes direitos (AINA, 2002).

E, diga-se, a materialização de tais direitos teve dois grandes marcos significativos. Consoante Ingo Wolfgang Sarlet, citado por Hilgert (2005), o marco histórico mais importante da constituição definitiva dos direitos fundamentais de primeira dimensão residiu em dois documentos:

a) primeiramente, a constitucionalização iniciada com as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados americanos que culminou com a Declaração de Virgínia, de 12 de junho de 1776, escrita por George Mason, a qual serviu de inspiração para Thomas Jefferson, redator da independência dos Estados Unidos da América, em 4 de julho de 1776; b) treze anos depois, foi a vez do segundo documento, formado este pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, nascida de movimento revolucionário que gerou a derrocada do regime absolutista francês, historicamente identificado como “Revolução Francesa”, com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Ressalte-se que esta declaração é reputada como universalista, posto que os direitos fundamentais, por ela consagrados, consideraram-se válidos para toda a humanidade. Ambos os documentos estabeleceram em seu primeiro dispositivo o princípio da liberdade e o princípio da igualdade, declarando que “todos os homens são por natureza, igualmente livres e independentes”, e, “os homens nascem livres e iguais em direitos”.

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A contribuição francesa foi decisiva para o processo de constitucionalização e reconhecimento dos direitos e liberdades fundamentais nas Constituições do século XIX, muito embora ambas Declarações tenham ganho a devida importância na consagração dos direitos fundamentais, haja vista que, enquanto os americanos tinham apenas os direitos fundamentais, a França completou o que faltava, pois legou ao mundo os direitos humanos. Foi com a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais que culminou a afirmação do Estado de Direito (SARLET, 2001).

Infelizmente, o reconhecimento destes direitos pelo ordenamento jurídico não foi suficiente para erradicar o conflito social da época. O reconhecimento do princípio da igualdade, por exemplo, era meramente formal, apenas garantido entre indivíduos realmente iguais entre si, como no caso de patrões, entre proprietários de terras. Assim, o conceito de tratamento igualitário, basicamente incidia nas relações jurídicas entre dois contratantes burgueses. Ocorre que, na linha evolutiva dos fatos históricos, o impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos, geraram movimentos reivindicatórios, fazendo surgir a necessidade social de um Estado que desenvolvesse uma melhor distribuição de riquezas, ao contrário do modelo anterior, atado ao conceito de não intervencionista, limitado no seu poder de ingerência na esfera individual, pouco podendo fazer para efetivar o princípio da isonomia nas relações, nas quais, havia de fato desequilíbrios de forças.

Dessa forma, concretizaram-se, na esfera dos direitos fundamentais, os direitos de segunda dimensão, também conhecidos como direitos sociais, econômicos e culturais, que compreendem, dentre outros, a educação, a saúde, a moradia etc, e que, nas palavras de Sarlet (2001), “podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem a reivindicações das classes menos favorecidas”. O marco histórico deu-se, efetivamente, no início do século XX e se concretizou com a Constituição Política dos Estados Mexicanos, de 5 de fevereiro de 1917, juntamente da Constituição da República Alemã de Weimar, de 14 de agosto de 1919, tendo sido, respectivamente, as duas primeiras Constituições Sociais mundiais, de maneira que novos direitos fundamentais sociais passariam a figurar em diversos pactos internacionais e a serem inscritos em muitas Constituições (HILGERT, 2005).

Com a evolução do homem, desenvolveram-se os direitos fundamentais e outras dimensões, como no caso da terceira, a qual compreendeu os chamados direitos difusos ou coletivos, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, visto trazerem, em seu bojo, o fato de depreenderem-se da figura do homem individual como seu titular, para destinarem-se à proteção dos grupos como no caso da família, do povo, da nação. Cabe mencionar que alguns autores vislumbram, ainda, os direitos de quarta dimensão, voltados estes para a defesa da democracia, do pluralismo etc (AINA, 2002).

Por conseguinte, conforme referido acima, com o processo de evolução do homem, após a primeira, outras dimensões de direitos foram desenvolvendo-se, visto que, em sendo o direito uma ciência social, ele nasce e se desenvolve em sociedade – de maneira que outro não poderia ser o caminho a ser trilhado. Nesse viés, impossível não aduzir o pensamento de Eugen Ehrlich, através da obra Fundamentos de Sociologia do Direito. Nela, o autor contrapõe o direito vigente a um direito vivo, nem sempre prescrito, mas que domina a vida (HILGERT, 2005). E, é nesta esteira de pensamento, de um direito vivo, que muitos outros direitos, ao longo do tempo, foram inseridos no ordenamento jurídico, quando há muito já se fazia presente nas relações sociais, a lembrar, por exemplo, da união estável – reconhecida e positivada anos depois. O mesmo ocorreu com outro direito, de igual importância, senão maior, que o instituto da união estável; o direito fundamental social à moradia, objeto no nosso próximo ponto.

A Evolução dos Direitos (fundamentais) Sociais e o Reconhecimento do Direto à Moradia

Foi com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ou melhor dizendo, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, que se iniciou a institucionalização dos Direitos Sociais, haja vista trazer ela consigo todo o contexto histórico dos acontecimentos dos séculos XVIII e XIX. Data deste período o surgimento do Welfare State, isto é, o Estado do bem-estar social, o qual se configurou durante o período seguinte ao fim da Segunda Grande Guerra Mundial, em um momento em que a humanidade vivenciou dolorosas experiências e atrocidades múltiplas consequentes do conflito (HILGERT, 2005).

Em virtude deste motivo e com o fim de nunca mais voltar a se repetir os horrores deixados pelo rastro da guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu preâmbulo, considerou o reconhecimento à dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis, fundados na liberdade, na justiça e na paz do mundo. Foi com este fim que se reconheceu em seus artigos 7º que “todos são iguais perante à lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei (..)”, de maneira que, à mera violação de tais direitos, receberia remédio efetivo  com intuito de rechaçar qualquer desrespeito a eles, no propósito de que fossem plenamente realizados. Além disso, no tocante ao direito à moradia, a Declaração previu em seu texto, mais precisamente no item 1 do de seu artigo 25 que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação (...)”, corroborando o direito à propriedade proposto pelo artigo 17  da dita Declaração.

E, no que diz respeito aos direitos humanos e, por consequência, fundamentais, em nosso direito pátrio, estão localizados majoritariamente na Constituição Federal, nossa lei fundamental de caráter hierarquicamente superior, fonte inspiradora e determinadora da legislação infraconstitucional. Nesse sentido, conforme Carli (2009), vale tornar a dizer, o papel da CF/88 é impositivo, visto que suas normas devem incidir sobre todas as demais de caráter infraconstitucional, visto que representa um limite ao legislador, de maneira que importarão em inconstitucionalidade as normas editadas em desacordo e contrariedade a ela. Neste contexto, tornase necessário analisar melhor certas normas que, diretamente, violam valores e direitos humanos fundamentais, como é o caso da regra prevista no artigo 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que admite a penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato locatício, afrontando o direito fundamental à moradia, caso que será estudado em ponto específico.

Seguindo, ainda no que concerne aos direitos humanos fundamentais localizados em nossa Constituição, traz, ela, em seu artigo 5º, um longo catálogo de direitos fundamentais, sob a denominação de direitos e garantias individuais. No entanto, fora deste “catálogo”, ainda podemos localizar muitos outros ao longo de todo corpo constitucional, como por exemplo, o direito de igual acesso aos cargos públicos, o direito dos filhos a tratamento igualitário e não discriminatório, entre outros. Não obstante, de acordo com Aina (2002), além dos direitos fundamentais que se encontram abrigados em nossa Constituição, é possível encontrarmos outros direitos fundamentais, os quais, embora não façam parte do corpo do texto constitucional, encontram-se expressos em tratados internacionais, conforme previsão do art. 5º, § 2º, da CF. Nessa toada, no tocante a princípios adotados, através de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, conforme o magistério de Sarlet (2001), a disposição contida na norma acima referida, traduz o entendimento de que, além do conceito formal de constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, ainda que não conste no catálogo constitucional. Neste contexto, importa salientar que o rol de direitos e garantias contemplados no artigo 5º, apesar de exaustivo, não tem cunho taxativo.

No tocante aos direitos sociais, em nossa Constituição, encontramos um capítulo sobre eles, e, mister esclarecer que há dois gêneros: os direitos a prestações em sentido amplo e os direitos a prestações em sentido estrito. Em sentido amplo compreendem os direitos de proteção e à participação na organização do procedimento, os quais correspondem aos direitos às prestações normativas. Já, prestações em sentido estrito correspondem às prestações materiais que objetivam assegurar o exercício de uma liberdade e igualdade real e efetiva, pressupondo um comportamento ativo do Estado. Conforme Sarlet (2001), os direitos prestacionais são inequivocamente direitos fundamentais, constituindo, em razão disto, direito imediatamente aplicável, nos termos do parágrafo 1º[1] do artigo 5º da CF/88.

Nessa linha de intelecção, oportuno referir que o argumento de que os direitos sociais carecem de leis regulamentadoras para serem garantidos pelo judiciário, é, por certo, falacioso. A uma, que a grande maioria das normas para o exercício dos direitos sociais já existe, e, a duas, que o ordenamento jurídico veda, conforme o disposto na Lei de Introdução ao Código Civil[2][3], que o julgador se exima de decidir sob a alegação de inexistência de previsão legal. De mais a mais, mecanismos constitucionais como o Mandado de Injunção, a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão e a Ação Pública podem ser acionados para o exercício de tais direitos, visto que a tese de não-regulamentação encontra óbice, como referido alhures, no parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (HILGERT, 2005).

Por conseguinte, importa trazer à baila quanto à eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. Conforme leciona José Afonso da Silva, citado por Hilgert (2005), todas as normas têm aplicabilidade imediata, variando apenas na intensidade de sua eficácia, dividindo-se a classificação destas em três: a) normas de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral; b) normas de eficácia contida e aplicabilidade direta e imediata, mas possivelmente não integral; c) normas de eficácia limitada, isto é, as declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e declaratórias de princípios programáticos. Nesse diapasão, conclui-se que esta classificação, mais precisamente àquela atinente à eficácia plena, amolda-se perfeitamente em relação aos direitos fundamentais, pois quanto a estes, existe norma expressa e específica, que estabelece: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Desta forma, segundo Aina (2002), o Estado assume, constitucionalmente, a obrigação de assegurar a todos os cidadãos o acesso aos direitos fundamentais, os quais compreendem uma esfera mínima de direitos que realizam e dão concretude ao princípio da dignidade humana. No caso em debate, o direito à moradia é um direito social identificado, por sua vez, no rol dos direitos fundamentais, tanto àqueles expressos no texto constitucional, quanto àqueles oriundos de instrumentos internacionais no qual o Brasil seja parte, tendo, portanto, de aplicabilidade imediata, repisa-se, por força do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição. Portanto, este direito fundamental, assiste e resguarda o direito da pessoa do fiador no que diz respeito a sua casa, sua moradia. E, digase, esta proteção não advém de uma simples inconformidade por parte do garante da relação locatícia, mas por ela estar positivada e amparada na Carta Magna, de modo que impossível e inadmissível que legislação infraconstitucional se posicione contra este direito, ora também considerado cláusula pétrea . Além disso, a norma infraconstitucional não está somente desprovida de força jurídica em relação à hierarquia das leis, mas trata de forma igual situações desiguais, ferindo de morte o princípio da isonomia, de maneira a afrontar nossa Lei Suprema, vindo a ser, portanto, inconstitucional.

Deste modo, sendo os fins sociais o mote principal do ordenamento jurídico, juntamente da finalidade de justiça social, o qual paira sobre todas as relações, sejam elas privadas ou públicas, culminou em 15 de fevereiro de 2000, a publicação da Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, a qual resultou do projeto de emenda à Constituição nº 601-B. A dita emenda teve por escopo acrescentar ao rol dos direitos sociais do artigo 6º  da Constituição a palavra “moradia” em sua redação. No entanto, muito antes dela, já se evidenciavam indícios substanciais de sua existência, de modo que seu reconhecimento explícito e direto no ordenamento jurídico somente materializou uma caminhada há muito tempo trabalhada, consoante Hilgert (2005)

era inegável que tal direito já existia. Além da dignidade da pessoa humana e da cidadania, dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, II e III), e da menção da moradia como necessidade básica, capaz de ser suprida pelo salário mínimo (CF, art. 7º, IV), a Constituição Federal de 1988 (CF, art. 5º, § 2º) consagra que os direitos e garantias nelas expressos “não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (…) Neste caso, a moradia já estava reconhecida como direito pela Declaração Universal de 1948.” (pg. 61).

Ressalta-se ainda que, nos termos do Parecer de nº 279, de 1977, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, há referências expressas sobre já existir previsão no tocante ao direito à moradia antes da emenda constitucional. Segundo ele, o direito à moradia já estaria consignado na Lei Maior de 1988, porém em outros dispositivos do Estatuto Supremo, muito embora ainda não figurasse no rol do artigo 6º. Consoante Aina (2002):

(…) assim, o artigo 23, IX, da Constituição Federal, estabelece que é de competência comum da União, dos Estados e dos Municípios promover programas de construção de moradia e a melhoria das condições habitacionais e do saneamento básico. No mesmo rumo do reconhecimento da importância do direito à moradia é que o art. 7º da Carta Magna preceitua, no seu inciso IV, que o salário mínimo deverá ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Como conclusão, ante o exposto, votamos pela aprovação da Proposta de emenda à Constituição nº 28, de 1996 (pg. 84).

Ademais, a preocupação com a moradia por parte do legislador, de fato, já se fazia presente em nosso ordenamento há muito tempo, podendo-se citar como exemplo o instituto do bem de família tanto no antigo como no novo Código Civil , e na lei da impenhorabilidade do bem de família (Lei 8.009/90), dentre outras.

De fato, a questão da moradia não é recente, porquanto que no artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotados pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, reza que os Estados-partes do presente pacto teriam que reconhecer o direito a um nível de vida adequado para toda pessoa, bem como a sua família, sobretudo no tocante à alimentação, à vestimenta, à moradia e de modo a dar continuidade às melhorias de condições de vida. O mesmo artigo impôs aos Estados-partes, o dever de tomar medidas apropriadas a fim de assegurar a consecução destes direitos. Portanto, podemos afirmar que o direito à moradia, torna-se a dizer, mesmo que implícito, já contava no nosso rol de direitos fundamentais por ser um direito humano assegurado em tratados internacionais. Por conseguinte, no momento em que o Estado brasileiro ratifica instrumentos internacionais, é possível elencar inúmeros direitos decorrentes dos mesmos, os quais, embora não estejam previstos no âmbito nacional, encontram-se enunciados em tais instrumentos que passam a se incorporar ao direito brasileiro (AINA, 2002).

Todavia, leciona Aina (2002), não foi somente o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que contribuiu para que o direito à moradia viesse à luz e assim ganhasse seu devido valor e relevo. Em 1976, realiza-se a 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – HABITAT I, dando origem à Declaração de Vancouver, que indicou um consenso internacional relativo às políticas de assentamento humano, situando a moradia adequada e os serviços a ela relacionados como um direito humano básico, e apontando, por corolário, a responsabilidade dos governos na adoção de ações, com intuito de garantir este direito, visando a assegurá-los a todas as pessoas. Vinte anos depois, em 1996, realiza-se a 2ª Conferência às Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – HABITAT II, em Istambul. Para esse evento, o Brasil foi indicado relator da parte da Agenda do Habitat (carta de intenções da Conferência), que tratava a respeito do direito à moradia, cabendo-lhe justificar frente a países como Japão e Estados Unidos, que se posicionavam contra este termo, a urgente necessidade de se reconhecer a moradia como um Direito Social.

Entretanto, a participação em tão importante evento mundial, colocou o país em situação delicada, principalmente quando, até então, se verificava uma lacuna em nossa própria Constituição, a qual não reconhecia a moradia como um direito real, como no caso da saúde, do trabalho por exemplo. Mas, uma vez exposto na vitrine perante às demais nações, o Brasil viu-se com sua situação de habitação em estado tão vergonhoso, que, ao menos formalmente, amenizou o problema ao incluir no Estatuto Supremo, através da emenda 26 de 2000, o direito à moradia. Assim, passou a ingressar no rol de diversos países que expressamente adotaram a moradia como um direito constitucionalmente previsto, como no caso da Argentina, México, Portugal, Rússia, Suécia, dentre outros (AINA, 2002).

Inegável, portanto, que o direito à moradia constitui-se em um direito social, de maneira a encontrar abrigo perfeito no rol de direitos humanos fundamentais de segunda dimensão. E, em se adotando a tese de que os direitos sociais constituem os direitos fundamentais, pode ser considerado então o direito à moradia, como um direito fundamental, localizado no ordenamento jurídico em um plano hierarquicamente superior dos direitos fundamentais, isto é, no ápice do sistema. Conforme Aina (2002), da leitura do artigo 6º depreende-se que tal direito se constitui em um direito subjetivo de todos os cidadãos sujeitos ao ordenamento jurídico brasileiro, e, portanto, do fiador em contrato locatício também.

Entretanto, diante de uma situação fatídica e concreta de total descompasso entre a realidade e o plano normativo, há necessidade de vencer o aspecto da aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais a fim de dar imediata concretude à proteção constitucional da moradia. E nessa linha, focamos a questão em debate neste trabalho, qual seja, do fiador de relação locatícia e proprietário de bem de família que, em razão da exceção prevista em regra infraconstitucional, pode vir a ter seu bem penhorado. Contudo, assim como todos os brasileiros, também tem ele o direito constitucional à moradia garantido, sendo-lhe assegurado o direito a um patrimônio mínimo, através da inviolabilidade de seu direito de morar naquilo que é seu.

O Direito à Moradia como Garantia de Patrimônio Mínimo

Muito embora a moradia concretize-se materialmente em um imóvel, seja ele uma casa, um apartamento, um “barraco” etc, constitui-se, na verdade, em um valor imaterial, um bem da vida de aspecto não concreto, um conceito muito mais amplo e complexo do que o conceito “da casa própria”.

De fato, o conceito de moradia vai muito além de mero conceito de “casa própria”, vez que esta apenas materializa tal direito. Na realidade, ao aprofundarmos o tema, ainda que o mesmo não se esgote nesta breve argumentação, pode-se dizer que há uma inter-relação do direito fundamental à moradia com a garantia do patrimônio mínimo, isto é, o direito de propriedade. Segundo leciona Carli (2009), o direito contemporâneo, alicerçado na visão constitucionalista, apóia-se na teoria da função social, como justificação e limite para a propriedade privada. Exige-se da propriedade uma utilidade, seja como direito instrumental, para garantir a efetividade do direito humano fundamental à moradia, seja como função social, norma diretriz da conduta de seus titulares. Em outras palavras, a propriedade deve sempre visar os fins sociais, tanto do titular, quanto da coletividade naquilo que lhe é cabível.

Nessa esteira, consoante Eros Roberto Grau, citado por Carli (2009), é possível enxergar o instituto a partir de duas perspectivas: a) quando o titular a utiliza em seu benefício e no da coletividade; b) com caráter individual, quando serve de base para suprir as necessidades essenciais do titular e de sua família, como o bem imóvel (consubstanciado no bem de família), que lhes servirá de habitação. Assim, a noção de propriedade ganha nova concepção, calcada na função social. É nesse contexto que cumpre acentuar que a Constituição Federal de 1988, reconheceu como direito humano fundamental, tanto o direito de propriedade  quanto o direito à moradia.

Nessa linha de intelecção, defende-se que o direito de propriedade imóvel exsurge como direito humano materialmente constitucional quando preenche alguns pressupostos, tais como o cumprimento de sua função social e como instrumento de concretização do direito à moradia. É baseado no segundo pressuposto que chega-se à questão do problema no tocante ao fiador locatício. Diante da inadimplência do locatário, o fiador se vê ameaçado de perder o único bem imóvel que serve de abrigo para si e para sua família. Questiona-se, então, até que ponto a interferência do direito de crédito do locador no direito humano fundamental à moradia é aceitável e razoável, a ponto de deixar ao desabrigo aquele que, em um ato de solidariedade, assumiu posição de garante em uma locação. Nesse aspecto, é inegável que a propriedade imóvel subsumida no bem de família do fiador, não é o direito fundamental autônomo, mas direito acessório, que viabiliza o direito fundamental e essencial para o ser humano que é o direito a um teto. Deste modo, consoante Carli (2009), não é o direito à propriedade per se que está sendo imunizado, mas o direito de propriedade instrumental que concretiza o direito fundamental à moradia, sendo esta um meio de suprir necessidades essenciais, de maneira a se tornar indisponível, não podendo, por conseguinte, sofrer restrição judicial em razão do contrato de fiança.

Tomemos o seguinte exemplo proposto por Carli (2009), em sua obra “Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à moradia”, páginas 78 e 79 respectivamente:

Caso 1: João é proprietário de único bem em que habita com sua família e foi fiador de um amigo, em um contrato de locação.

Caso 2: Pedro tem dois imóveis, em um ele reside com a família e o outro é apenas acervo do seu patrimônio.

De acordo com a explicação da autora, diante das referidas proposições, observa-se que, no primeiro caso, em que o indivíduo possui apenas um bem imóvel, consubstanciado este em bem de família, o direito à propriedade se subsume ao direito humano fundamental à moradia, visto que no caso telado, o direito de propriedade constitui mero instrumento para dar efetividade ao direito fundamental de habitação. Desta maneira, o direito de propriedade, no primeiro exemplo, tem caráter meramente instrumental, não podendo vir a ser objeto de constrição em razão de obrigação decorrente de fiança. Tal assertiva encontra fundamento tanto no direito fundamental à moradia, quanto na garantia do patrimônio mínimo. Em síntese, a propriedade, neste caso, é a ponte que liga o bem material (o imóvel), ao bem imaterial (o direito fundamental à moradia).

No tocante à segunda hipótese, em que a pessoa é proprietária de dois imóveis, há duas situações distintas: na primeira, o imóvel em que reside serve de abrigo ao proprietário e a sua família – consagrando o bem de família – sendo, assim, inadmissível qualquer forma de constrição e, em particular, aquela que resulte de obrigação decorrente de contrato de fiança, porquanto que, o bem em questão, além de consagrar de forma absoluta o direito humano fundamental à moradia, constituiu direito fundamental, axiologicamente superior ao direito de crédito, o qual pode ser garantido por outros meios legais. Já, na segunda situação, o imóvel não utilizado para moradia do proprietário constitui seu patrimônio excedente, podendo ser objeto de penhora sem qualquer problema tendo em vista que não consubstancia direito fundamental à moradia.

Assim, se conclui que toda a propriedade que atenda a seus fins sociais e que tenha por objeto resguardar o único bem de família do indivíduo, como forma de proteger o direito fundamental à moradia, não poderá ser objeto de execução e tampouco se comparar de forma isonômica ao direito de crédito. Além disso, cumpre dizer que o bem de família surgiu como um dos meios de garantir que a propriedade não fosse apenas um direito fundamental individual, mas um instrumento de efetividade ao pleno exercício do direito fundamental à moradia do titular e de sua família (CARLI, 2009).

Portanto, uma vez reconhecido explicitamente o direito à moradia como um direito humano fundamental social em nosso ordenamento jurídico, necessário se faz seu efetivo cumprimento material, porquanto que o formal já expresso. Nesse passo, importa dizer que sua realização depende, fundamentalmente, da imediata concretude na proteção constitucional da moradia, visto ser a única forma de colocar em prática o que foi reconhecido a muito custo e após tantos anos. Nessa esteira, e, em honra aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia, igual proteção incide no que diz respeito à questão em debate, qual seja, o direito que assiste ao fiador em contrato locatício, de ter seu direito à moradia protegido, materializado este na impenhorabilidade de seu único bem imóvel, isto é, seu bem de família, assim entendido por força de lei.

Todavia, a exceção que jaz no inciso VII do artigo 3º da lei da impenhorabilidade do bem de família, teima em afrontar a Constituição a fim de priorizar interesses econômicos do mercado imobiliário com o fito de alavancar cada vez mais seus negócios, este, a seu turno, focados nos interesses de uma minoria, muito provavelmente decorrentes de lobby . Nessa senda, mister dizer que, este argumento baseia-se e ganha força na medida em que se toma conhecimento que esta hipótese somente veio a fazer parte da lista de tais exceções, quase dois anos após a promulgação da Lei 8.009, de 29 de março de 1990, por ocasião da sanção da Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 (a Lei do Inquilinato), que, através de seu artigo 82  acresceu o dito inciso à Lei da Impenhorabilidade.

Segundo o magistério de Aina (2002), a justificativa para a adição de mais uma exceção ao rol, teria sido que a lei anterior à Lei do Inquilinato, a Lei 6.649, de 16 de maio de 1979, teria como principal característica, a ampla proteção dos locatários que se concretizava, especialmente, pela prorrogação automática dos contratos após o término do prazo contratual, bem como a proibição de rescindi-los sem motivação, não havendo possibilidade jurídica, assim, de postular-se pela denúncia vazia. Além disso, a fiança, dentre as garantias locatícias, teria vigorado até a edição da lei da impenhorabilidade, de forma que a única morada já não mais poderia ser excutida para solver débitos próprios ou de terceiros. Em decorrência disto, os locadores passaram a exigir fiadores que fossem proprietários de dois imóveis, fato este que criou sérios empecilhos à locação diante da dificuldade de conseguir-se alguém que apresentasse tal condição, pois, se o sonho da casa própria já está distante da grande parcela da população, muito mais longínqua está a possibilidade de deter a propriedade de dois imóveis. Diante deste quadro, a única solução encontrada pelo Poder Público, foi a de alterar a Lei 8.009/90, para fazer-se incluir a mencionada exceção.

Entretanto, a inclusão do dito inciso veio somente em detrimento de quem nem ao menos responde pela obrigação principal (no caso, o contrato de locação), mas tão somente a acessória, visto ser o contrato de fiança nada além do que uma obrigação acessória em relação à principal. Além disso, o argumento de que esta exceção seria necessária para o fiel cumprimento do contrato é ultrapassado, pois para isso há outros tipos de garantias, como o seguro-fiança, a caução e a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, institutos estes que serão estudados mais adiante.

Na verdade, se observa um disparate, pois o direito de crédito do locador-credor não pode sequer se comparar ao direito à moradia, por estarem em patamares completamente diferentes na hierarquia das leis. Além disso, fere de morte a própria Constituição, na medida que lei infraconstitucional tenta impor suas regras e preceitos em contrariedade ao Estatuto Supremo, quando, a bem da verdade, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional, somente serão válidas se conformarem com as normas da Constituição Federal, visto que toda a autoridade somente nela encontra fundamento (SILVA, 2006). No caso telado, examina-se uma gritante incompatibilidade entre a norma constitucional expressa no artigo 6º e àquela prevista no inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/90, de maneira que esta não pode, de modo algum, se sobrepor àquela, pelos motivos já expostos alhures.

Além disso, dois absurdos, a título de exemplo para fins comparativos, se apresentam. Primeiramente, aquele que diz respeito à dívida fiscal em cotejo com a situação do fiador em contrato de locação. Na hipótese, a Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980, a qual dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública, encontra à Fazenda dificuldades em cobrar aquele que está em débito, não somente pelo fato de não encontrar bens disponíveis para garantir a execução da dívida, mas por ser a impenhorabilidade oponível em processo de execução fiscal quando houver apenas bem de família. Assim, ainda que aquela pessoa jurídica de direito privado, deva vultuosas quantias em tributos a qualquer um dos entes estatais, em um eventual redirecionamento ao patrimônio do sócio-administrador, terá ela resguardado seu bem de família (caso o responsável ainda não tenha transferido seus demais bens pessoais a outrem e engane o fisco). Embora não pareça óbvio, é mais fácil cobrar o fiador locatício do que aquele que se encontra em dívida ativa. Infelizmente, estes mesmo tributos são aqueles que, em tese, seriam arrecadados pela seguridade social em proveito da coletividade, no que concerne à saúde, à assistência e à previdência social.

A segunda situação seria aquela que diz respeito ao benefício de ordem , previsto no Código Civil, e colocado à disposição do fiador. A grosso modo, este instituto ensejaria que, antes que o fiador fosse chamado a cumprir determinada obrigação, fosse primeiramente chamado o devedor principal, qual seja, o locatário, porquanto que, somente se este não fizesse jus a sua obrigação é que o fiador deveria ser responsabilizado. Assim, o fiador demandado pelo pagamento da dívida teria direito a exigir, até a contestação da lide, que fossem, primeiro, executados os bens do devedor, uma vez ser a sua responsabilidade subsidiária à do devedor principal. Todavia, a viabilidade de tal instituto não é de grande valia para o garante (caso antes não tenha renunciado ), uma vez que, se o locatário tivesse bens, a uma, não locaria bem imóvel (a priori), a duas, caso tivesse algum bem e locasse outro, por certo que, em tese, supõem-se que o mesmo teria boa-fé e condições financeiras de quitar o débito, sem se tornar inadimplente e ensejar, por corolário, que fosse acionado seu fiador. O mesmo ocorre com o instituto da sub-rogação, igualmente do Código Civil, o qual embora esteja previsto, na prática, não tem efetividade alguma, pois, se o locatárioinquilino não paga a dívida ao locador, por certo que, também, não irá pagar ao fiador, até mesmo por uma questão de lógica.

Por fim, tal discussão que aqui se argumenta seria desnecessária se tão somente fossem observados os direitos fundamentais da Constituição os quais, reitera-se, nem ao menos necessitam de lei específica para sua efetivação, por terem aplicabilidade imediata. Este é o caso do direito à moradia; direito este que se materializa em um bem imóvel, e que, devido sua relevância alcançou status de “bem de família”, assunto este do próximo ponto (CARLI, 2009).

1.3 O Bem de Família

Evolução Histórica do Bem de Família

A mais conhecida origem do bem de família remonta, seguramente, ao homestead, surgido na República do Texas, antes de sua incorporação aos Estados Unidos da América do Norte, em 1845. O significado da expressão, reporta-se, efetivamente, ao que pretende resguardar, isto é, o local do lar (home = lar, setead = local).

As razões históricas do instituto derivam, e, ainda que em apertada síntese, pode-se dizer que residem no fato de que, uma vez atraídos pelo progresso vertiginoso da agricultura e do comércio, bem como pelo enorme potencial do novo mundo, bancos europeus fixaram-se no território americano, oferecendo créditos abundantemente, que, por sua vez, impulsionavam o crescimento ainda mais veloz da região, de maneira que a prosperidade fazia a riqueza dos aventureiros e empreendedores. Contudo, viriam as crises econômicas, gerando uma bolha em torno dos preços do açúcar, do algodão, e, sobretudo, dos terrenos da cidade e das terras incultas do oeste. Por conseguinte, narra Martins (2008), viria, como consequência, a grande crise de 1837 e 1839, que, com a falência de um banco de grande expressão de Nova York, o qual teria sido o estopim de uma verdadeira explosão financeira, gravaria, nos anais da civilização americana o retrato de uma de suas mais adversas épocas.

Nesse contexto, consoante Hora Neto (2007), credores realizavam execuções em massa de quem não tinha onde obter crédito, de forma a acabar por ter sua terra, bem como animais e instrumentos agrícolas liquidados, nesse amargo momento, por quase nada, diante do preço exorbitante pago antes da crise. Assim, após veementes movimentos políticos dos trabalhadores, foram editadas várias leis, a exemplo daquela que aboliu a prisão por dívidas, princípio este, hoje consagrado nas Constituições de povos civilizados. Diante desse cenário, surge o Homestead Excemption Act, editado pela República do Texas, em 26 de janeiro de 1839.

Antes, contudo, ressalte-se, quando o México separou-se da Espanha, editou, em 04 de janeiro de 1823, a lei imperial de colonização, a qual rezava que todos os instrumentos agrícolas, máquinas e outros utensílios introduzidos na território pelos colonos, seriam isentos de penhora. A lei do homestead da república texana, entretanto, evoluiu sua abrangência ao trazer ao lado da impenhorabilidade dos bens domésticos móveis (os quais foram, num primeiro momento, objeto de proteção), a proteção aos bens imóveis.

Como consequência, não demorou muito para que outros países passassem a adotar institutos semelhantes. O Canadá, por exemplo, em 1886, editou lei que isentava de execução por dívidas, imóveis no valor de até dois mil dólares, não exigindo que o titular do bem fosse chefe de família (tendência essa, aliás, seguida pelo Brasil ), requerendo, todavia, o registro de sua instituição no cartório competente. A Inglaterra, embora não tenha editado norma específica prevendo o bem de família, criou dois institutos  que traziam em sua essência a garantia de um mínimo existencial. Na Alemanha, por exemplo, apesar das várias tentativas para a adoção do referido instituto, somente após a Constituição de Weimar, de 1919, a qual propugnava a proteção da propriedade familiar, o legislador infraconstitucional, em 1920, editou lei prevendo o bem, denominado de heimstättenrecht (CARLI, 2009).

Por fim, diga-se, a origem do instituído do homestead encontrou razão de ser no espírito do povo americano, no sentimento herdado da nação inglesa de considerar a casa como um verdadeiro castelo sagrado e pela necessidade de estimular os esforços do colono ou do imigrante, no sentido de uma maior proteção e segurança em caso de infelicidade.

Conceito e Definição do Instituto do Bem de Família

Antes de darmos prosseguimento ao tema, necessário fazer maior elucidação quanto à expressão “bem de família”, a fim de compreender sua origem etimológica. Primeiramente, mister analisar separadamente cada uma das palavras que compõem a expressão. Assim, no tocante à palavra “bem”, que significa “aquilo que é útil à existência e conservação, física ou mental; utilidade; vantagem; proveito; bem; propriedade; domínio etc.”, a mesma é um substantivo masculino que descende de “bene”, um advérbio latino procedente da palavra “bonus”, o qual possui estreita ligação, ainda que muito remota, com o verbo latino “beo, as , ávi” que quer dizer “fazer feliz”. Já, em relação à palavra “família”, embora encontre sua origem imediata no vocábulo latino família “ae”, através de “famélia” e “fâmulus”, origina-se, remotamente, ao radical “dhá”, da língua ariana, cujo significa “estabelecer”. Deste modo, verifica-se que, se unirmos o sentido de cada uma das palavras que compõem a expressão, teremos, consequentemente, o significado “estabelecer uma casa feliz” (AZEVEDO, 1974).

Assim sendo, em razão da importância da família bem como da moradia, esta consubstanciada no bem imóvel, ganhou, deveras, suma importância o bem de família, o qual ser tornou um dos instrumentos mais eficazes utilizados para garantir o patrimônio mínimo do indivíduo, uma vez ser a propriedade utilizada como instrumento para a concretização do direito humano fundamental à moradia, bem como forma de subsistência, de maneira a não poder se tornar objeto de qualquer constrição, e, assim, imune a penhora (CARLI, 2009).

Nesta esteira, diga-se que o bem representa um meio de assegurar a mais cara das instituições, qual seja, a família, quanto ao mínimo necessário e suficiente à sua existência, bem como quanto à garantia do domicílio familiar, tornando-o incólume dos revezes da própria vida. Assim, oportuno referir que a lei que o criou visa, principalmente, a isenção de penhora ou de qualquer outro meio de execução que possa privar a família de seu abrigo inviolável. E é nesta idéia de inviolabilidade do lar que reside a real característica do instituto, visto que este nasce como instituto jurídico protetor da família. Foi por este motivo que surgiu o homestead no direito americano, o qual, como dito alhures, consubstanciava-se em um imóvel destinado ao domicílio familiar, isento de penhora, e, em defesa da pequena propriedade, de maneira que cada família poderia possuir, livre de execuções, uma porção de terra rural (cinquenta hectares), ou um terreno urbano de certo valor, nunca superior a quinhentos dólares. Esta foi, efetivamente, uma semente que germinou e se proliferou em prol da proteção que sempre se deveu à família, alicerce sobre o qual se funda e edifica o Estado (AZEVEDO, 1974).

A implantação do Instituto do Bem de Família no Brasil

A inserção do instituto do bem de família na legislação pátria não ocorreu de maneira fácil e imediata. Ao revés, houve vários projetos legislativos, visando a sua regulamentação, antes de sua entronização no Código Civil vigente. Em rápido retrospecto histórico, pode-se informar que foi com o Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, que o instituto apresentou seus primeiros sinais, visto que isentava de penhora alguns bens do devedor executado, sem, entretanto, ainda excluir da execução a moradia (AZEVEDO, 1974).

Não obstante, a primazia da discussão da matéria concernente ao homestead coube, efetivamente ao deputado baiano Leovigildo Filgueiras que, em 1893, apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei contendo a disposição referente à instituição americana do bem. O aludido projeto, de número 10, enumerou os bens que, além dos que constavam no artigo 529 do Regulamento nº 737, não estariam sujeitos à penhora. Contudo, embora este projeto apresentasse aspectos contemporâneos para a época, principalmente no que dizia respeito à possibilidade de se estenderem seus efeitos aos móveis que guarneciam o lar, nunca chegou a ser discutido pela Câmara de Deputados (SANTOS, 2003).

Também em 1893, Coelho Rodrigues apresentou seu Projeto de Código Civil, o qual, nos artigos 2.079 usque 2.090, tratava do homestead sob o título de “lar de família”. Segundo o magistério de Santos (2003), o assunto foi abordado de forma criteriosa, constituindo-se em um patrimônio da família, criado pelos cônjuges ou até mesmo por terceiros. Suas principais características eram a inalienabilidade e a indivisibilidade durante o casamento, e, até mesmo, após este, enquanto permanecesse viúva a mulher e perdurasse a menoridade dos filhos. Todavia, o aludido projeto ainda não tornava impenhorável o denominado “lar de família”, o que o descaracteriza em muito do instituto originário do homestead. De toda sorte, o projeto de autoria de Coelho Rodrigues não foi aceito, de maneira que a matéria em questão, nem ao menos chegou a ser discutida no Congresso. Na realidade, sua adoção, sob a denominação proposta por Rodrigues, somente foi sugerida quando da apresentação ao governo, de novo Projeto ao Código Civil, de autoria de Clóvis Beviláqua.

Outros projetos foram apresentados relativamente ao instituto. Em 5 de outubro de 1903, o deputado paulista Francisco de Toledo Malta apresentou perante à Câmara de Deputados, um projeto de instituição do homestead, o qual tinha como título “a isenção da penhora ao imóvel rural”. Entretanto, como o próprio título do projeto referia, não previa a hipótese da incidência do instituto sobre o imóvel urbano, muito embora reconhecesse expressamente a impenhorabilidade do imóvel, sendo extensiva aos móveis, utensílios e animais que integrassem o bem. Não obstante, tal projeto não teve andamento e, assim como os anteriores, seu destino foi o arquivamento e consequente esquecimento no Congresso Nacional.

Na verdade, a inserção do significante em tela ao sistema normativo civilista brasileiro, ocorreu no Código Civil de 1916, com a sua regulamentação nos artigos 70 a 73, conforme citado supra. Sua introdução ocorreu no livro dos bens em virtude da preocupação do legislador em resguardar o aspecto material sobre o objeto no qual recaia o bem de família, mormente, por força dos efeitos dele decorrente, ou seja, a impenhorabilidade e a inalienabilidade, vindo a ser, todavia, em detrimento da própria finalidade do instituto, qual seja, a intenção de proteger a família contra toda sorte de intempéries econômicas que pudesse atingi-la. Embora Beviláqua rechaçasse sua inserção no livro dos bens, por tratar-se de preceito específico ligado à instituição da família, a matéria permaneceu regulada na parte geral do Código. De qualquer modo, oportuno dizer que o antigo Código Civil traçou linhas mestras do instituto, sobretudo ao agasalhar matéria de ordem processual relativamente ao procedimento. Contudo, o passar do tempo apontou lacunas e omissões no tratamento atinente à matéria, de maneira a ensejar a edição de várias leis visando a complementar o assunto (SANTOS, 2003).

E, efetivamente, foi o que ocorreu. Santos (2003) explica que, com a unificação do Código de Processo Civil pátrio, pela edição do Decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, veio a ser regulamentado, nos artigos 647 a 651, o procedimento a ser observado por ocasião da instituição do benefício. A providência foi oportuna, visto que o Código Civil de 1916, por regular matéria de direito objetivo, não possuía alcance necessário para abranger as normas de direito subjetivo, imprescindíveis à constituição do bem de família. Com a posterior edição do atual Código de Processo Civil, Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, as disposições do antigo código de processo restaram vigentes por expressa previsão legal inserta no inciso VI do artigo 1.128 do novo estatuto processual. No entanto, em que pese o advento do CPC de 1939 ter complementado, no plano processual, o instituto do bem de família, ainda havia falhas gritantes na órbita do direito material, principalmente no que dizia respeito ao valor e ao objeto. Por conseguinte, em 19 de abril de 1941, através do Decreto-lei 3.200, por meio de seus artigos 19 usque 23, o instituto do homestead alcançou feição mais completa, ao ter por escopo estimular a utilização deste. As modificações, contudo, mostraram-se insuficientes, na medida em que conservavam os vícios originários do instituto, isto é, a extrema burocracia aliada à manifestação da vontade do instituidor.

Mais tarde, com a promulgação da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a Lei dos Registros Públicos, veio a ser regulamentada toda matéria atinente ao processo de instituição do bem  de família, respectivamente em seus artigos 260 a 265, de modo a restar revogado o artigo 1.218, VI, do CPC de 1973. Entretanto, oportuno referir que não houve modificação substancial no rito procedimental do instituto, visto que o legislador de 1973 decidiu incorporar os artigos do revogado Código de Processo Civil de 1939 com breves alterações (SANTOS, 2003).

Posteriormente, na década de 90, consoante Carli (2009), o legislador infraconstitucional editou a Lei 8.009, de 29 de março, que estabeleceu o bem de família legal, que representou um verdadeiro avanço no instituto do bem de família, eis que retirou do âmbito da penhora, independentemente da vontade do indivíduo, o bem imóvel onde reside a entidade familiar. Ressalta-se, todavia, que o mencionado diploma legal trouxe algumas exceções à regra da impenhorabilidade e, quase todas, de constitucionalidade duvidosa. Conquanto seja pertinente à análise de cada uma delas, no presente trabalho, estudar-se-á tão somente, a hipótese inserida no inciso VII do artigo 3º, a qual trata sobre a penhorabilidade do bem do fiador decorrente de contrato de locação.

E, diga-se, tal foi a revolução desencadeada pela Lei 8.009 que criou-se um novo instituto de bem de família vindo este a ser expresso na Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a qual instituiu o novo Código Civil. O novel diploma, por derradeiro, veio regular o bem de molde a propiciar-lhe a efetividade que o Código anterior não conseguiu. Desta feita, o legislador pátrio, atendendo a rigor a finalidade do instituto, inseriu-o adequadamente no livro do Direito de Família, respectivamente, nos artigos 1.711 a 1.722, perfazendo profundas e substanciais alterações, tais como a possibilidade de instituí-lo por testamento bem como a limitação do valor do bem a um terço do patrimônio líquido dos instituidores. Além disso, criou-se, seguramente, a maior novidade relativa à matéria, ou seja, a possibilidade do instituto abranger valores mobiliários, tendo por alvo destinar a renda à conservação do imóvel e ao sustento da família, limitando seu valor ao mesmo patamar do imóvel (SANTOS, 2003).

Espécies de Bem de Família: Voluntário e Legal

O sistema legislativo brasileiro, ao regulamentar o instituto do bem de família, visou a preservar o organismo familiar sobre o qual repousam as bases do Estado. Em decorrência, adveio a necessidade de uma reestruturação completa do benefício, com a criação de uma nova espécie, que garantisse impedir a completa desarticulação familiar em caso dos revezes da vida.

Nesse contexto, assesta a doutrina que há duas espécies de bem de família, as quais, segundo Hora Neto (2007), coexistem perfeitamente, posto que centradas em princípios semelhantes, ainda que apresentem requisitos diferentes e acarretem efeitos diversos. Deste modo, as espécies, hoje existentes, encontram-se classificadas em duas grandes categorias: a do bem de família voluntário ou decorrente da vontade dos interessados, e, a do bem de família involuntário ou legal, o qual, por não depender da manifestação da vontade do instituidor, resulta de estipulação legal, sendo norma de ordem pública.

Por conseguinte, de forma sumariada, examina-se as características principais de cada qual das espécies. Primeiramente, examine-se o bem de família voluntário, o qual originou-se do homestead americano, e que tinha por fim a isenção da penhora em favor da pequena propriedade.

Narra Hora Neto (2007), que, inicialmente, esta espécie era prevista no antigo Código Civil de 1916, que dele cuidava em seus quatro artigos (artigos 70 a 73), no livro dos bens. Posteriormente, com o advento do Código Civil de 2002, sistematizou-se as regras atinentes ao benefício no direito de família, vindo a regular a matéria nos artigos 1.711 usque 1.722 do novo estatuto civil.

Em linhas gerais, o bem de família voluntário, como tal se acha regulado no novo Código Civil, só pode ser constituído pela vontade expressa do instituidor. Assim, permite o artigo 1.711 do novel diploma, que o benefício seja constituído pelos cônjuges, entidade familiar ou terceiro, via escritura pública ou testamento, não podendo seu valor exceder a um terço do patrimônio líquido do instituidor existente ao tempo da instituição. Ao mesmo tempo, consoante Sander (2005), declara mantida as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecidas em lei especial. Deste modo, somente haverá necessidade de sua instituição pelos meios supra mencionados, na hipótese de o casal (ou entidade familiar), possuir vários imóveis e não desejar que o efeito da impenhorabilidade recaia sobre aquele de menor valor. Neste caso, o bem deverá ser instituído, reitera-se, mediante escritura pública ou testamento, e levado a registro no Cartório de Registro de Imóveis, vindo a ficar, desde então, isento de execução por dívidas posteriores a sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio ou decorrentes de despesas condominiais, consoante preconiza o caput do artigo 1.715. Todavia, tal isenção durará somente enquanto viver um dos cônjuges (ou companheiros de união estável), ou, na falta destes, até que os filhos completem a maioridade.

Além disso, em sua reestruturação, a nova ordem vinculou o bem de família voluntário imóvel ao móvel, visto que admite que o benefício se constitua em imóvel, seja urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, podendo abranger, inclusive, valores mobiliários, destinados estes à conservação do bem e sobrevivência da família. Ainda, expõe Sander (2005), tanto os móveis quanto aos imóveis que integram o bem de família voluntário, devem sempre ligar-se à destinação residencial, não podendo, igualmente, virem a ser alienados sem o consentimento dos interessados ou de seus representantes legais, ouvido, a custos legis, o Ministério Público. Tornando impossível sua manutenção, poderá o Estado-Juiz, a pedido dos interessados, extingui-lo ou autorizar a sua subrogação em outros. Por fim, no que concerne à extinção do benefício, ocorre ela com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que estes não estejam sujeitos à curatela, de modo que a dissolução da sociedade conjugal não extingue o benefício.

No que toca à segunda espécie ao instituto do bem de família, é aquela que diz respeito ao bem de família legal. De maneira profícua, torna-se a dizer, esta categoria de bem de família, também denominada de obrigatória ou involuntária, adveio da Medida Provisória nº 143, de 08 de março de 1990, editada pelo então Presidente da República, José Sarney e, ulteriormente, aprovada pelo Congresso Nacional, vindo a ser, em seguida, convertida na Lei 8.009, de 20 de março de 1990. Contudo, para chegar à lei atual, um longo e árduo caminho teve de ser percorrido pela doutrina, a qual há muito vinha criticando o tratamento do benefício disposto no Código Civil de 1916. De qualquer modo, a lei em questão materializou o que há tanto tempo era esperado (HORA NETO, 2007).

Assim, mister analisar alguns aspetos do benefício em questão. Entretanto, em síntese, cumpre dizer que, em sede de bem de família legal, o instituidor é o próprio Estado, pois resulta diretamente de lei, de ordem pública por excelência, em defesa do núcleo familiar, independentemente de ato constitutivo, sendo, portanto, dispensável o registro. Ainda, no que diz respeito ao objeto, descreve Hora Neto (2007), o imóvel residencial, urbano ou rural, é próprio do casal (ou da entidade familiar), assim como os móveis que guarnecem a residência do proprietário, independentemente de seu valor ou forma de constituição, sendo impenhoráveis por determinação legal, de forma a não responder por qualquer tipo de dívida, salvo exceções. No entanto, na hipótese de pluralidade de domicílios, a regra é a mesma prevista para o bem de família voluntário, qual seja, aquela constante no aludido parágrafo único[4] do artigo 5º da lei de impenhorabilidade .

Por derradeiro, nota-se que, muito embora o bem de família criado pela Lei 8.009/90, seja completamente diverso daquele que preconiza o novo Código Civil, em razão das inovações trazidas por este, o principal objetivo de ambos, ainda que divirjam em alguns aspectos, é a proteção à família, base da sociedade e célula master do Estado. A maneira como isto ocorre é garantindo um teto mínimo, capaz de abrigar ao individuo e sua família das intempéries da vida, o qual somente ocorre quando observado e materializado o direito à moradia.

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Sobre a autora
Rosilene A. D. Weissheimer

Advogada Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp / Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Univates.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEISSHEIMER, Rosilene A. D.. Penhora do Bem de Família do Fiador Locatício: (In)Constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4231, 31 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35831. Acesso em: 25 abr. 2024.

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