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Dormindo com o torturador:

37% deles não são agentes públicos

09/02/2015 às 12:41
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Todos nós brasileiros estamos vinculados à tortura: como vítimas, como agentes dela (públicos ou privados) ou como coniventes (por razões ideológicas ou culturais ou sociais ou por falta de garantias, denunciamos e punimos pouquíssimos casos de tortura no Brasil).

A pesquisa "Julgando a Tortura" (veja site da Conectas Direitos Humanos), promovida por esta entidade juntamente com Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Pastoral Carcerária, Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat) e Núcleo de Estudos da violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e divulgada em 29/1/15, que analisou 455 acórdãos (decisões de todos os órgãos colegiados de segunda instância) entre 2005 e 2010, com 752 réus e 800 vítimas, concluiu: 61% desse grupo de torturadores são funcionários do Estado (policiais, agentes penitenciários, monitores de adolescentes etc.) e 37% agentes privados (pais, mães, agentes de segurança etc.), incluídos casos de violência doméstica. Muitos torturados dormem sob o mesmo teto do torturador (31% dos casos examinados ocorrem dentro de uma casa).

Em regra a tortura é pratica por agentes públicos:

"Parado por dois policiais militares na frente de sua casa, em São Simão (SP), um motorista de 32 anos, que tinha ingerido bebida alcoólica e era suspeito de participar de uma corrida clandestina, não apresenta os documentos solicitados pelos agentes de segurança e age de maneira rude, xingando-os. Ao invés de receber voz de prisão, ele leva um jato de spray de pimenta nos olhos, é algemado e conduzido dentro da viatura para uma rua escura. Nela, é espancado e desmaia. O motorista passa de suspeito de dois crimes à vítima de uma grave agressão. Sofre fratura em um braço, tem traumatismo craniano e perde parte da audição. Torturado, esse motorista passa a fazer parte de um pequeno grupo de vítimas desse delito que tem seus casos julgados" (Afonso Benites, El País).

Também se pratica tortura contra os agentes públicos:

Dois homens foram encontrados mortos (no RJ), enrolados em sacos pretos. Segundo a polícia, uma das vítimas é o policial Diego Soares (do Exército), lotado na UPP da Vila Kennedy. O corpo do outro homem ainda não foi identificado.

Um dos achados da pesquisa foi constar que muitos torturadores não são agentes públicos:

"Um dos casos que ilustra essa situação ocorreu em Porto Alegre (RS) em 2003 e foi julgado no Tribunal em 2010. Uma menina de três anos foi agredida fisicamente por sua mãe e por seu padrasto. A criança levou seguidos tapas e socos na face, chutes na barriga, cintadas nas costas, chineladas nas pernas e obrigada a se ajoelhar no sal grosso com o rosto encostado na parede. A sessão de espancamento durou mais de três horas. Os exames periciais mostraram que a garota tem hematomas por todo o corpo, costelas quebradas, fraturas nas pernas e sofre danos neurológicos. Ela correu sério risco de morrer e os adultos responsáveis por ela foram condenados pelo crime de tortura" (El País).

A amostra revela que todos nós brasileiros estamos vinculados à tortura: como vítimas, como agentes dela (públicos ou privados) ou como coniventes (por razões ideológicas ou culturais ou sociais ou por falta de garantias, denunciamos e punimos pouquíssimos casos de tortura no Brasil). Tudo começa com a convivência (com os torturadores). Depois é que vem a conivência (que gera impunidade). Esse é o eixo central do relatório da Comissão da Verdade. A tortura também faz parte do processo de aceleração destrutiva (PAD) do Brasil.

Chance de absolvição. Os agentes públicos têm maior chance de absolvição que agentes privados: 19% das sentenças condenatórias de primeira instância foram convertidas em absolvição e 47,6% mantidas; em relação aos agentes privados, apenas 10% das sentenças foram revertidas e 61,4% mantidas. Quando a decisão inicial era de absolvição, o veredito se manteve em 15% dos casos envolvendo agente público e em 5% relativos a agentes privados.

Falta de provas. Grande parte das absolvições ocorre por falta de provas. Em 72% das decisões contra agentes privados, as provas foram consideradas suficientes para comprovar a tortura. A palavra da vítima aqui tem grande valor. O percentual cai para 53% quando os envolvidos são policiais e agentes penitenciários (quando a palavra da vítima não tem a mesma valoração). Outro detalhe: os institutos de perícia não deveriam integrar a estrutura policial. Tinham que ser órgãos autônomos (como é a defensoria pública, por exemplo) (veja PEC 325/2009).

Problema da lei. A tortura está prevista na Lei 9.455/97; esse crime pressupõe "intenso sofrimento físico e/ou mental". Por isso, "escoriações" não bastam para caracterizar tortura, segundo muitos juízes, que optam pela absolvição do acusado ou por penas de lesão corporal e abuso de poder. O problema é que o sofrimento é subjetivo. É difícil saber quando é intenso. Isso vem dando margem para muitas desclassificações (do crime de tortura para o crime de lesão corporal, por exemplo).

Motivação. As motivações da tortura variam de acordo com quem a pratica. Relativamente aos agentes públicos, na maior parte dos casos (65,6%) a violência foi usada como método para obter informações ou confissão. Quando o autor é agente privado, o sofrimento é usado como forma de castigo em 61% dos casos.

Local da tortura. Em relação ao local do crime, 33% dos casos de tortura ocorreram em locais de contenção (prisões, delegacias e unidades de internação), 31% em residências (a tortura é bastante praticada dentro de casa) e 16% em via pública.

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Apesar de todos os avanços já conquistados, o brasileiro continua sendo um bicho-humano extremamente selvagem (do contrário não seríamos o 12º país mais violento do planeta - segundo a ONU -, com 29 assassinatos para cada 100 mil pessoas, sendo 6 por hora). Darcy Ribeiro (em O povo brasileiro) diz: "Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos".

Solução. Muita coisa ainda pode ser feita para reduzir drasticamente o número de torturadores no Brasil (dentre essas medidas, afigura-se muito adequada a chamada "audiência de custódia", em 24 ou 48 horas depois da prisão, presidida por juiz de direito). Mas a selvageria do brasileiro somente vai reduzir quando melhorarmos sensivelmente nosso IDH (índice de desenvolvimento humano, que mede renda per capita, escolarização e expectativa de vida). O Brasil ocupa a 79ª posição, em 187 países. Ou seja: pertence ao segundo grupo, que é muito violento. Vejamos:

Enquanto não chegarmos ao primeiro grupo, seremos um país de segunda categoria (isto é: muito violento, torturador, pouco escolarizado, péssima renda per capita, muito ignorante, parasitário, extremamente desigual, autoritário-paternalista, conformista e com corrupção endêmica). Fazer subir nosso IDH significa elevar nossa civilização (que é o melhor antídoto contra a violência, incluindo a tortura). Os países com os melhores IDHs (destacando-se os europeus) não apresentam (em média) nem sequer duas mortes para cada 100 mil pessoas. A civilização (que pressupõe excelente escolaridade e boa renda per capita) está ligada diretamente com a violência.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Dormindo com o torturador:: 37% deles não são agentes públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4240, 9 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36184. Acesso em: 25 abr. 2024.

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