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O combate à sonegação fiscal e o direito ao sigilo bancário.

A constitucionalidade da Lei Complementar nº 105/2001 e da Lei nº 10.174/2001 sob o enfoque da Teoria dos Direitos Fundamentais

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Sumário: Introdução; 1 As alterações trazidas pela Lei Complementar nº 105/01 e pela Lei nº 10.174/01; 2 As Normas, Regras e Princípios Jurídicos; 2.1 Colisões de Princípios e Conflitos de Regras; 2.2 A Necessidade de uma Teoria da Argumentação Jurídica; 3 Os Princípios Constitucionais da Razoabilidade e Proporcionalidade; 3.1 O Princípio Constitucional da Razoabilidade; 3.2 O Princípio Constitucional da Proporcionalidade; 3.2.1 Os Subprincípios Constitutivos do Princípio da Proporcionalidade; 4 A Teoria dos Direitos Fundamentais; 5 A Colisão entre o Princípio da Moralidade Administrativa e a Garantia do Sigilo Bancário; Considerações Finais; Referências Bibliográficas.


Introdução

O Poder Público, a fim de dar conta dos encargos assumidos perante a sociedade, sobretudo após o advento do "Estado Social de Direito" [1], modelo estatal de acentuado intervencionismo sócio-econômico, onde figuram como compromissos da Administração Pública promover o bem-estar social, garantindo educação, saúde e previdência aos cidadãos, acaba por necessitar de uma enorme receita orçamentária, capaz de sustentar sua atuação. Como a maior parte da receita estatal provém da arrecadação de tributos, a maneira encontrada pela Administração Pública de ampliar sua receita é gravar a produção de riquezas e o consumo com pesada carga tributária.

Ocorre que a mera instituição de determinado tributo não assegura o aumento da receita do ente político, sendo necessária a criação de mecanismos e práticas fiscalizatórias que garantam o efetivo pagamento da exação, pelo sujeito passivo da norma tributária, combatendo-se, assim, a odiosa prática da sonegação fiscal. No intuito de aprimorar as práticas arrecadatórias da fazenda pública foram implementados vários institutos, como a responsabilidade e a substituição tributárias (Constituição da República [2] – CRFB, art. 150, § 7° e Código Tributário Nacional – CTN, art. 128 e seguintes) e a retenção do tributo pela fonte pagadora (caso do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, previsto no art. 153, III da CRFB e no art. 43 e seguintes do CTN), diminuindo os níveis de sonegação fiscal.

A prática da evasão tributária, entretanto, tem assumido proporções catastróficas, minguando os já escassos recursos estatais e inviabilizando o implemento de políticas públicas. Pode-se dizer, sem exagero, que a sonegação fiscal aliada à corrupção no Poder Público, constituem-se no "câncer" máximo da sociedade brasileira, obstaculizando a estabilidade sócio-política e o crescimento econômico do país.

Neste contexto, basicamente, devem ser inseridas a Lei n° 10.174 e a Lei Complementar n° 105, ambas de janeiro de 2001, como instrumentos legislativos instituídos com a finalidade de combater a sonegação fiscal, otimizando o sistema de arrecadação de tributos pela fazenda pública. Deve-se discutir, todavia, se a legislação mencionada não acaba por restringir, excessivamente, a garantia ao sigilo bancário dos cidadãos contribuintes, uma vez que prevê o cruzamento dos dados da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), com os valores declarados pelo contribuinte, por exemplo, a título de Imposto sobre a Renda, bem como a utilização, pela fazenda pública, de outras informações para a constituição de crédito tributário.

Deve-se discutir, primeiramente, se o sigilo bancário tem "status" de garantia constitucionalmente assegurada aos cidadãos, ou se, pelo contrário, vem previsto apenas na legislação infraconstitucional. O entendimento de considerável parcela da doutrina nacional [3] abona a primeira assertiva, reconhecendo o sigilo bancário como garantia constitucional, insculpida no art. 5º, incisos X e XII da Constituição da República. Este posicionamento, todavia, pode ser refutado, sob o fundamento de que a garantia à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, conforme prevista pelo mandamento constitucional, não comporta a garantia ao sigilo bancário, resguardo a dados de caráter financeiro que se afasta da idéia de intimidade e privacidade.

Ainda que bastante controvertido o reconhecimento do "status" constitucional do direito ao sigilo das informações bancárias, se realmente albergado pelo artigo 5º, incisos X e XII da Constituição da República, no presente estudo, será assim considerado. Restará, deste modo, deslocado o estudo da tensão entre a garantia do sigilo bancário dos cidadãos e o dever da Administração Pública em combater à sonegação fiscal, para o campo da teoria dos direitos fundamentais, procurando-se discutir a relação de prevalência que deve resultar do conflito entre os referidos mandamentos constitucionais.

Antes, porém, de se empreender o estudo acerca da tensão entre os aludidos mandamentos constitucionais, ao que parece, deve ser feita uma breve análise da legislação implicada à presente temática.


1 As alterações trazidas pela Lei Complementar nº 105/01 e pela Lei nº 10.174/01

A legislação que, primeiramente, regulou o sigilo das informações bancárias dos cidadãos foi a Lei nº 4.595/64, que em seu artigo 38 previu, expressamente, a garantia ao sigilo bancário, podendo ser ordenado às instituições financeiras, pelo Poder Judiciário, o fornecimento de esclarecimentos e informações de interesse fiscal. Posteriormente, o artigo 8º da Lei nº 8.021/90 veio prever a possibilidade da autoridade fiscal solicitar informações sobre operações financeiras dos contribuintes, sem a necessidade da ordem judicial, o que, para parte da jurisprudência [4], constitui-se em atuação administrativa ilegal.

Neste contexto se insere a Lei nº 9.311/96, que institui a Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos de Natureza Financeira (CPMF), e em seu artigo 11, § 3º dispôs a seguinte redação:

"Art. 11. Compete à Secretaria da Receita Federal a administração da contribuição, incluídas as atividades de tributação, fiscalização e arrecadação.

(…)

§ 3º A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua utilização para constituição do crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos". (sem grifo na lei)

Sobreveio a Lei nº 10.174/01, que alterou substancialmente o dispositivo legal acima citado, possibilitando ao fisco, entre outras coisas, o cruzamento dos dados referentes à CPMF, com as declarações relativas ao Imposto sobre a Renda. Eis a redação do artigo 1º da Lei nº 10.174/01:

"Art. 11

(…)

§ 3º A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores". (sem grifo na lei)

O artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências, tem a seguinte redação:

"Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente".

Após exame, ainda que superficial, da legislação supracitada, pode-se concluir, certamente, que a intenção da lei é facilitar a prática fiscalizatória da administração fazendária e dificultar o expediente da sonegação tributária pelos contribuintes. Inegável a facilidade e a eficiência de investigações de práticas evasivas, existência das denominadas "contas fantasmas" e "clientes laranjas", quando da comparação dos dados da movimentação financeira dos contribuintes (CPMF), com os valores declarados como devidos, a título de Imposto sobre a Renda, dentre outros casos.

O limite legal à atuação da administração fiscal não mais existe, sendo que a lei, expressamente, autoriza à Secretaria da Receita Federal utilizar as informações obtidas pelo recolhimento da CPMF, para contrastar com outros dados prestados pelos contribuintes, desvelando, com certa facilidade, as atividades de sonegação tributária. Ao que parece, a mencionada atuação do órgão público não se constitui em "quebra" do sigilo bancário dos cidadãos, uma vez que a fazenda pública, dispondo das informações dos contribuintes, somente não as podia usar, para a constituição de crédito tributário, por expressa limitação legal.

O sigilo bancário dos contribuintes, quando do cruzamento dos dados da movimentação financeira com as declarações relativas ao Imposto sobre a Renda, resta plenamente resguardado, pois que a Secretaria da Receita Federal não divulga tais informações a terceiros, apenas as utiliza para constituição de crédito tributário, quando da apuração de atividade sonegatória por parte dos contribuintes. Os dados referentes à CPMF já são do conhecimento do fisco, bem como as informações relativas ao Imposto sobre a Renda, pois declaradas pelos contribuintes, não advindo nenhuma restrição ao direito de sigilo bancário do cruzamento destas informações.

Não há que se cogitar de "quebra" de sigilo bancário, quando da prestação, pelas instituições bancárias, de informações sobre a movimentação financeira dos contribuintes, uma vez que tais dados não serão divulgados ao público, mas sim levados, exclusivamente, ao conhecimento do fisco, quando se constituírem em documentos indispensáveis à instrução de processo administrativo ou procedimento fiscal instaurado, conforme disposto no supracitado art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001.

A garantia de sigilo das informações bancárias tem por finalidade a proteção dos cidadãos, contra a divulgação ao público do conteúdo de seus negócios com as instituições financeiras, mas não proteção contra o fisco. O conhecimento, pela Administração Pública, de informações financeiras dos cidadãos não frustra, em verdade, a garantia ao sigilo bancário, não se podendo falar em devassa ou exposição ao público da intimidade e da vida privada do administrado, quando tais dados restam cingidos à apreciação do fisco. A garantia ao sigilo bancário, em última análise, somente guarda razoabilidade enquanto protege o contribuinte, contra o perigo de divulgação de dados financeiros ao público, mas nunca quando a divulgação fica limitada à administração fazendária.

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Admitindo-se, entretanto, que o cruzamento das informações sobre a arrecadação de CPMF e a declaração de Imposto sobre a Renda devido pelos contribuintes, bem como o conhecimento pelo fisco de outras informações bancárias dos contribuintes fiscalizados, como dados de contas de depósito e aplicações financeiras, ensejam restrição ao direito de sigilo bancário dos cidadãos, deve-se examinar se esta limitação afronta à norma constitucional ou, pelo contrário, se nela encontra respaldo, e, ainda, se há colisão da garantia ao sigilo bancário com outros preceitos constitucionais. Para tanto, faz-se mister um estudo sobre a coerência do ordenamento jurídico e a teoria dos direitos fundamentais.


2 As Normas, Regras e Princípios Jurídicos

As normas jurídicas são imperativos de conduta pelos quais se estabelecem os comportamentos necessários à organização da convivência humana. São diretivas que norteiam a sociedade sob determinados valores por ela própria eleitos. O sistema normativo [5] é um conjunto de regras e princípios que orientam determinado espaço territorial, em um dado momento histórico. Pode-se dizer, inicialmente, que os princípios, hierarquicamente superiores, são normas com um grau de abstração relativamente elevado (generalidade), enquanto as regras, hierarquicamente inferiores, são normas com grau de abstração relativamente reduzido (especificidade). Os princípios gozam de certa indeterminabilidade na aplicação ao caso concreto, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta, imediata [6].

A idéia de princípios está intimamente ligada à noção de fundamento, base, pressuposto teórico que orienta determinado sistema. Os princípios são linhas mestras sobre as quais se arrima todo um sistema de conhecimento humano. Os princípios jurídicos, portanto, são normas que sustentam todo o ordenamento normativo. Podem ser expressados mediante enunciados normativos ou figurar implicitamente no ordenamento. São, pois, orientações e mandamentos de natureza fundamental e geral, tomados a partir do sistema jurídico vigente, da racionalidade do ordenamento normativo, capazes de evidenciar a ordem jurídica reinante em um dado momento.

De inegável importância para o estudo do Direito é a diferenciação das normas jurídicas em regras e princípios. Conforme restou consignado anteriormente, regras e princípios jurídicos são normas, porquanto, segundo defende Robert Alexy, ambos se formulam com a ajuda de expressões deônticas fundamentais, como mandamento, permissão e proibição. Pode-se dizer, que regras e princípios são espécies de normas que se constituem em fundamentos para juízos concretos de dever ser [7].

Os critérios de distinção entre regras e princípios jurídicos são consideravelmente numerosos, cabendo grande ênfase ao "critério de generalidade", segundo o qual os princípios são normas de um grau de abstração relativamente alto, enquanto as regras são normas com nível de abstração relativamente baixo [8]. De posse dos critérios de distinção, Robert Alexy avança para a formulação de uma tese que defende a inexistência, entre regras e princípios, tão-somente de uma distinção de grau, mas sobretudo de qualidade [9]. Aí reside o âmago da distinção entre regras e princípios, sendo que estes são normas que ordenam a realização de determinado direito na medida do possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes, enquanto aquelas somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, deve ser cumprida na sua exata medida, nem mais nem menos. As regras contêm "determinações" no âmbito do fático e do juridicamente possível, ao passo que os princípios são "mandamentos de otimização" [10].

Os princípios jurídicos, normas impositivas de otimização, podem ser realizados ou concretizados em diferentes graus, variando segundo condições fáticas e jurídicas. O mesmo princípio, deste modo, terá diferentes graus de aplicação na resolução de situações da vida cotidiana. O valor conferido a determinado princípio, numa dada situação fática, poderá ser diverso em outro caso, podendo até, por vezes, ter sua aplicação afastada naquela situação. As regras jurídicas, por outro lado, enquanto normas que prescrevem uma dada situação ou impõem um determinado comportamento, quando válidas, devem ser cumpridas na exata medida de suas prescrições, não deixando margem à graduação de aplicação.

2.1 Colisões de Princípios e Conflitos de Regras

A distinção entre regras e princípios jurídicos acima referida se apresenta sumamente relevante, quando da resolução das tensões que se produzem no interior do ordenamento normativo. Num sistema de normas, constituído por regras e princípios em constante e necessária transformação, que refletem uma sociedade dinâmica e heterogênea, inevitáveis são os conflitos entre as espécies normativas, situação que reclama adoção de critérios capazes de resolver o conflito e, consequentemente, salvaguardar a unidade e a coerência do ordenamento jurídico.

Quando o conflito se desenvolve entre as diferentes espécies de normas jurídicas, isto é, na contradição entre regras e princípios, a resolução do conflito é, de certo modo, facilmente alcançada. Deve-se, aplicar o critério que determina, no mais das vezes, a superioridade hierárquica dos princípios sobre as regras. Os princípios jurídicos, pela condição de normas gerais e fundamentais, prevalecem sobre as regras, normas de generalidade relativamente baixa. É certo que, porém, que em determinadas condições, deve ser aplicada a regra específica, ficando afastada a aplicação do princípio jurídico.

O conflito entre regras já reserva maiores dificuldades de resolução. No conflito entre regras, a aplicação de duas diferentes prescrições jurídicas, ambas válidas, conduzem a resultados incompatíveis entre si. Usando novamente os ensinamentos de Robert Alexy, é possível afirmar que um conflito entre regras pode ser resolvido se for introduzida uma cláusula de exceção em uma regra, na intenção de remover o conflito [11]. O conflito entre regras se resolve no âmbito da validade, já que se uma regra vale e é aplicável ao caso concreto, então, valem também suas conseqüências jurídicas, pois contidas dentro do ordenamento normativo. Deste modo, se a aplicação de duas regras juridicamente válidas conduz a juízos concretos de dever ser reciprocamente contraditórios, não restando possível a eliminação do conflito pela introdução de uma cláusula de exceção, pelo menos uma das regras deverá ser declarada inválida, como meio de preservação do ordenamento [12].

A colisão de princípios jurídicos não se resolve no campo da validade, mas no campo do valor. Se uma determinada situação é proibida por um princípio, mas permitida por outro, não há que se falar em nulidade de um princípio pela aplicação do outro. No caso concreto, numa "relação de precedência condicionada", determinado princípio terá maior relevância que o outro, preponderando. Não se pode aceitar que um princípio reconhecido pelo ordenamento possa ser declarado inválido, porque não aplicável a uma situação específica. Ele apenas recua frente ao maior peso, naquele caso, de outro princípio também reconhecido pelo ordenamento normativo. A solução do conflito entre regras, em síntese, dá-se no plano da validade, enquanto a colisão de princípios no âmbito do valor.

Na resolução da colisão de princípios deve-se levar em consideração as circunstâncias que cercam o caso concreto, para que, pesados os aspectos específicos da situação, prepondere o preceito mais adequado. A tensão se resolve mediante uma ponderação de interesses opostos, determinando qual destes interesses, abstratamente, possui maior peso no caso concreto. A tensão de princípios não é eliminada pela invalidação de um deles, nem, tampouco, pela introdução de uma cláusula de exceção em um dos princípios, de modo a limitar sua aplicação em casos futuros. Eqüivale dizer que, tomando em conta o caso, determinam-se as condições sob as quais um princípio precede ao outro, em um "relação de precedência condicionada". Havendo modificação nas condições, a questão da precedência pode ser resolvida inversamente [13].

O jurista Robert Alexy denomina "lei de colisão" a solução da tensão de mandamentos de otimização, com base na relação de precedência condicionada. Não existem relações absolutas de precedência, pois que sempre serão determinadas pelas circunstâncias do caso concreto. Não existe um princípio que, invariavelmente, prepondere sobre os demais, sem que devam ser levadas em consideração as situações específicas do caso. Em última análise, não existem princípios absolutos ou um princípio absoluto que em colisão com outros princípios, independentemente da situação posta, precederá [14].

A existência de princípios absolutos, capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão, não se mostra consoante com o próprio conceito de princípios jurídicos. Não se pode negar, por outro lado, a existência de mandamentos de otimização relativamente fortes, capazes de preceder aos outros em praticamente todas as situações de colisão. Pode-se citar, como exemplos, os princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da proteção da ordem democrática, o direito à higidez do meio-ambiente.

2.2 A Necessidade de uma Teoria da Argumentação Jurídica

A teoria da "lei de colisão" dos princípios jurídicos acima referida, ao que parece, não é capaz de se sustentar sem o arrimo de uma sólida teoria da argumentação jurídica, coerente o bastante para fundamentar a decisão pela preponderância de um princípio que, no caso concreto, mostra-se contraposto a outros, todos reconhecidos pelo sistema normativo. Neste sentido, Robert Alexy construiu uma teoria da argumentação jurídica que pretende fornecer fundamentos à decisão pela precedência de determinado valor, que se mostre em colisão com outros, legitimando a atuação jurisdicional. Segundo o jurista alemão, a decisão jurídica não se constitui em uma decorrência lógica das formulações a respeito de normas jurídicas, em virtude da vagueza da linguagem normativa, da possibilidade de conflito entre normas, dos casos de lacuna e da existência de decisões "contra legem". A fundamentação das decisões jurídicas se reflete em uma questão de ordem metodológica, devendo-se, pela consolidação de uma teoria da argumentação jurídica, que ultrapassa a mera "subsunção lógica", alcançar, na maior medida possível, "racionalidade à fundamentação jurídica e correção às decisões" [15].

Não é objeto deste artigo o estudo acerca da retórica, ou de uma teoria do discurso, ou até, de uma discussão mais profunda de uma teoria da argumentação jurídica, temas que para serem discutidos com profundidade, pela extremada complexidade, demandam consideráveis estudos preliminares, o que acabaria por se distanciar da temática central. Por outro lado, ainda que brevemente, devem ser traçadas as diretrizes gerais da teoria da argumentação jurídica desenvolvida por Robert Alexy, como instrumento hábil à implementação de decisões jurídicas justas e corretas, quando da necessidade, em uma dada situação concreta, da ponderação de valores fundamentais contrapostos.

No entendimento de Robert Alexy, os denominados "cânones de interpretação" das normas jurídicas, ainda que de certa valia e relevância na práxis jurisdicional, pela inegável indeterminação e "debilidade", não podem ser considerados suficientes à fundamentação das decisões jurídicas. As regras de hermenêutica são inconsistentes para conferir ao Direito um estatuto racional. Quando, em uma determinada decisão, o julgador se depara com uma situação de difícil solução, pela vagueza dos enunciados normativos e insuficiência dos critérios de hermenêutica, acaba decidindo por juízos valorativos. Estas "tomadas de posição" devem orientar-se de acordo com valorações moralmente corretas [16].

Robert Alexy sustenta que o discurso jurídico se constitui em uma espécie de discurso prático, uma vez que ambos criam um enunciado normativo que pretende ser correto, entretanto, o discurso jurídico ocorre sob o que o autor convencionou denominar "condições limitativas", quais sejam, a vinculação à lei, à doutrina, à jurisprudência, etc., sendo, consequentemente, mais complexo e apto à constituição de um discurso racional, capaz de fundamentar uma decisão correta. Fala-se, então, em discurso prático racional, a possibilidade de se fundamentar um decisão jurídica segundo uma teoria da argumentação que observa um sistema de regras discursivas, um conjunto de regras e formas de argumentos que tornam possível o julgamento racional [17].

O discurso estruturado segundo regras formais [18], seguindo uma postura analítico-normativa, permite ao julgador se aproximar da decisão correta, analisando qual dos contendores oferecem os melhores argumentos. Cabe asseverar que, apesar de entender sua teoria da argumentação jurídica como capaz de possibilitar o alcance da decisão jurídica correta, o autor alemão rejeita a idéia da existência, por meio do discurso racional, de uma única decisão justa. A teoria da única solução correta depende de "condições ideais do discurso" que, na prática, são impossíveis de serem alcançadas. Ademais, a variação de peso, temporal e espacial, dos princípios acaba legitimando o alcance de soluções diversas, ainda que usado o mesmo procedimento racional de discurso.

Inegável, portanto, que a teoria da argumentação jurídica proposta por Robert Alexy avançou, consideravelmente, no que concerne à fixação de uma metodologia, um procedimento, propício ao alcance da fundamentação mais oportuna à decisão jurídica. A teoria do discurso racional do direito estabelece diretrizes, relativamente sólidas, à obtenção de decisões justas e corretas, segundo critérios de racionalidade e razoabilidade. Adiante, empreender-se-á a análise acerca dos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade, como critérios de determinação da "relação de precedência condicionada" entre a garantia ao sigilo das informações bancárias dos cidadãos o e princípio da moralidade administrativa, o dever do Poder Público em combater a sonegação fiscal.

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. O combate à sonegação fiscal e o direito ao sigilo bancário.: A constitucionalidade da Lei Complementar nº 105/2001 e da Lei nº 10.174/2001 sob o enfoque da Teoria dos Direitos Fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3664. Acesso em: 25 abr. 2024.

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