Artigo Destaque dos editores

O princípio da insignficância no crime de descaminho

Leia nesta página:

Admitir o patamar de R$ 20.000,00 como insignificante seria totalmente incompatível com todo o ordenamento jurídico, pois este valor é muito superior àqueles utilizados na aferição da aplicabilidade do mesmo princípio em outros crimes.

A Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda consagrou, em seu texto legal, a possibilidade do não ingresso com execuções fiscais em valores inferiores a vinte mil reais.

Embora tal portaria tivesse conteúdo eminentemente tributário, foi suscitado ao judiciário a sua aplicabilidade como norteadora para a aplicação do princípio da insignificância nos crimes tributários, sendo com maior frequência utilizada no crime de descaminho.

O crime de descaminho está previsto no artigo 334 do Código Penal. Segundo tal, comete este crime aquele que ilude “no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”.

Fernando Capez (2013, p. 596) declara que, no referido crime, “tutela-se a Administração Pública, em especial o erário público, uma vez que no descaminho o Estado deixa de arrecadar os pagamentos dos impostos de importação, exportação ou consumo”.

No mesmo sentido, Bitencourt e Luciana Monteiro (2013, p. 281-282), ensinam que “protege-se a salvaguarda dos interesses do erário público, diretamente atingido pela evasão da renda resultante das operações clandestinas ou fraudulentas na prática do descaminho”.

Hoje, a melhor doutrina consagra que o crime de descaminho é considerado um crime contra a administração pública – assim como prevê o Código Penal, e, tendo em vista seu conteúdo claramente tributário, também é considerado um crime contra a ordem tributária.

Bitencourt e Monteiro (2013, p. 279-280), no mesmo sentido, declaram que “Apesar de não figurar especificamente entre os crimes contra a ordem tributária, tipificados na Lei n. 8.137/90, o descaminho também é um comportamento delitivo que afeta o erário público, comprometendo a legítima pretensão de arrecadação dos impostos que recaem sobre a entrada e saída de mercadorias do território nacional”.

O verbo nuclear do tipo previsto no artigo 334 do Código Penal é “iludir”. Iludir traduz-se na conduta que visa burlar, enganar, fraudar o sistema tributário nacional, não se recolhendo os impostos devidos.

Conforme se pode constar, o tipo penal é claro ao demonstrar que se deve iludir direito ou imposto. Por interpretação literal da norma, posiciono-me ao lado da corrente que defende que só configuraria o descaminho o fato de iludir impostos. Isso porque o legislador taxativamente o colocou ali, não caracterizando o crime o fato de iludir o pagamento do PIS (Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e COFINS (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social).

Nesse sentido, conforme nos ensina o Excelentíssimo Juiz Federal Marcelo Adriano Micheloti (2010) em artigo publicado, “se ocorrer de iludir apenas o pagamento de outras espécies tributárias (v.g.: PIS/PASEP importação, COFINS importação), não restará configurado o delito”.

Por óbvio, o sujeito ativo do crime previsto no caput será aquele que iludir os impostos devidos na importação ou exportação de produtos, não havendo discussões necessárias nesse sentido.

Sobre o momento consumativo, faz-se necessário tecer alguns comentários.

Alguns autores defendem que a consumação do delito em análise ocorre com “a liberação das mercadorias, sem o pagamento dos impostos ou direitos relativos a elas” (CAPEZ, 2013, p. 600).

Entretanto, sendo o descaminho um crime tributário, o momento consumativo seguiria a súmula vinculante nº 24 do STF, ou seja, consuma-se o delito após o lançamento definitivo do tributo.

Por fim, o elemento subjetivo do tipo do descaminho é o dolo, ou seja, a “vontade livre e consciente de (...) iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo da mercadoria” (CAPEZ, 2013, p. 599).

O parágrafo 3º do artigo 334, então, traz a figura do descaminho majorado. Terá a pena aplicada em dobro o descaminho praticado por intermédio de transporte aéreo, marítimo ou fluvial.

A justificativa para tal aumento pode decorrer do fato de que o controle das mercadorias por esses meios ser mais complicado (BITENCOURT et al, 2013, p. 308).

Feitas breves considerações acerca do descaminho, não é possível utilizar a Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda para estabelecer parâmetros de insignificância neste delito.

Tal afirmação decorre do fato de que, analisando-se a portaria como um todo e não somente suscitando a aplicabilidade de um artigo de norma, é possível concluir, primeiramente, que o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) não é insignificante para a Administração Pública.

Isso porque o artigo 1º, §§ 6º e 7º, da referida portaria propagam a hipótese de ajuizamento de execuções fiscais cujo valor seja inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), aclarando, assim, que tal valor não é insignificante.

Deste modo, embora a Portaria da Fazenda demonstre que seja inviável o ingresso com a execução fiscal, resta-se claro que tais valores não são insignificantes, tendo em vista que ainda há interesse de recebê-los.

É exatamente essa possibilidade de receber os valores inferiores a vinte mil reais que inviabiliza a aplicação da portaria e a incompatibiliza com o processo penal.

Isso porque é claro que existe a possibilidade de não ingressar com a execução fiscal de valores inferiores a R$ 20.000,00. E, como se sabe, um dos princípios da ação pública incondicionada é o da obrigatoriedade.

Segundo tal princípio, o Ministério Público, ao se deparar com uma conduta típica, tem o dever de intentar a ação penal.

No caso da insignificância no descaminho, permitir que a mesma se baseie na Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda, traria uma incongruência no ordenamento jurídico como um todo.

 Isso porque existiria uma norma fazendária declarando a possibilidade de intentar a ação fiscal e, ao mesmo tempo, afirmando que em alguns casos a seria viável, enquanto uma norma constitucional aclara o dever institucional de promover a ação penal.

Deste modo, em respeito à independência das áreas cíveis e criminal, não se pode aplicar uma possibilidade prevista em uma (in casu na cível) na outra, ainda mais sendo a mesma manifestamente incompatível com a seara penal.

Portanto, tendo em vista que a “possibilidade” não pode existir em uma ação penal pública incondicionada e em respeito à independência das áreas no direito, a Portaria nº 75/2012 da Fazenda Nacional, no que diz respeito ao parâmetro de vinte mil reais, não deve ser utilizada no procedimento penal.

Ademais, a restrição do ingresso com execuções fiscais guarda pertinência apenas com a relação de custo-benefício e não de insignificância. Permitir que vinte mil reais se torne insignificante trará, acima de tudo, uma insegurança jurídica, tendo em vista que, ainda que indiretamente, estaria se encorajando as pessoas a não se importarem com tributos que não ultrapassem este patamar, tendo em vista que não sofreriam problemas nas searas tributária e penal.

Os únicos valores que a Portaria nº 75/2012 da Fazenda Nacional declara claramente serem insignificantes são os iguais ou menores a cem reais, tendo em vista que, em seu artigo 7º, inciso I, está preceituado que serão excluídos “os débitos inscritos na Dívida Ativa da União, quando o valor consolidado remanescente for igual ou inferior a R$ 100,00”.

No caso deste inciso está claramente demonstrado que a Fazenda Nacional não se importa com os valores iguais ou inferiores a cem reais, sendo os mesmos insignificantes para o erário, não existindo possibilidade alguma de tentativa de recuperação destes valores.

Uma demonstração clara de que a Administração Pública quer receber os valores maiores que cem reais e menores do que vinte mil é o sistema de Cadastro Informativo de Créditos não quitados do setor público federal – CADIN.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Segundo o artigo 2º, inciso I da lei nº 10.522/2002, serão registradas no CADIN aqueles que “sejam responsáveis por obrigações pecuniárias vencidas e não pagas, para com órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta”.

Ou seja, a Administração resolveu criar um órgão que registre, em seus bancos de dados, os seus devedores, ou seja, aqueles que fossem responsáveis por obrigações pecuniárias vencidas ou não pagas. Tais obrigações, por sua vez, se materializam com a inscrição delas na chamada Certidão de Dívida Ativa.

Aqueles que constarem nesse registro, não poderão praticar alguns atos, que estão previstos no artigo 6º da Lei nº 10.522/2002.

Deste modo, é possível concluir que, embora a União tenha autorizado o não ingresso de execuções fiscais em valores inferiores à R$ 20.000,00, ela ainda tem interesse de receber os respectivos valores, utilizando-se de um meio indireto de coação, fazendo com que o devedor não possa praticar determinados atos se não estiver com sua situação regularizada junto à União.

Ademais, a aplicabilidade da insignificância no patamar de vinte mil reais nos crimes tributários traria grande incongruência na seara penal.

Isso porque, a título de exemplo, o STJ (2013), em decisão no Agravo Regimental em Recurso Especial nº 212846, já decidiu não ser insignificante um furto de um celular no valor de R$ 129,00 (cento e vinte e nove reais), declarando que o valor, à época dos fatos, representava mais de 23% (vinte e três por cento) do salário mínimo vigente.

Ora, como uma conduta que afeta o bem jurídico em valor que representa 23% (vinte e três por cento) do salário mínimo pode ser considerada típica e outra que representa 27 (vinte e sete) salários mínimos ser considerada insignificante?

A desproporcionalidade se mostra gritante, podendo-se afirmar que a existência desses dois parâmetros infringe, também, o princípio da proporcionalidade.

Diante de todo o exposto, conclui-se pela impossibilidade da aplicação do princípio da insignificância, baseando-se no artigo 1º da Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda, no delito de descaminho.

Isso porque, em análise da referida portaria, possível o entendimento de que o valor de vinte mil reais não é insignificante, tendo em vista que existe a possibilidade, aclarada na própria portaria, de cobrar os referidos valores.

Havendo tal probabilidade, a Portaria se torna totalmente incompatível com o Processo Penal, tendo em vista que o parquet tem o dever de propor a ação penal existindo um fato típico, o que ocorreria no caso, ante o princípio da obrigatoriedade, sendo certo que esta aplicabilidade atacaria, também, a independência das searas jurídicas.

Além disso, os únicos valores demonstrados cabalmente como insignificantes na referida portaria seriam aqueles iguais ou inferiores a R$ 100,00 (cem reais), somente sendo possível aplicar-se a insignificância com base nesta portaria se este fosse o parâmetro.

Ademais, a portaria aclara uma situação em que não vale a pena ingressar com a execução fiscal, mas jamais declara que tais valores são insignificantes. Exemplo disso é a inscrição dos devedores no CADIN, fazendo com que os mesmos, enquanto não regularizarem suas situações junto ao fisco, não possam praticar determinados atos.

No mais, admitir o patamar de R$ 20.000,00 como insignificante seria totalmente incompatível com todo o ordenamento jurídico, pois este valor é muito superior àqueles utilizados na aferição da aplicabilidade do mesmo princípio em outros crimes.


Referências Bibliográficas

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte especial 3. 11ª Edição. São Paulo:Saraiva, 2013.

BITENCOUR, Cezar Roberto et al. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo:Saraiva, 2013.

MICHELOTI, Marcelo Adriano. Descaminho: cálculo do valor para fins de insignificância. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2576, 21 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17023>. Acesso em: 02/03/2015.

STJ. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 212846 MS, Sexta Turma, Relatora Ministra Assusete Magalhães, julgado em 26/09/2013.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Guilherme Saab Lanza

Parecerista. Advogado. Inscrito nos Quadros da Ordem dos Advogados do Brasil - SP sob o nº 358.073 e suplementarmente no Estado do Mato Grosso sob o nº 20.105. Formado na LX Turma do Centro Universitário Toledo - Araçatuba (SP-2014). Orador representante do Centro Universitário Toledo na 18ª Competição de Juri Simulados da Corte Interamericana de Direitos Humanos (18ª Moot Court Competition) - Washington-DC (2013).

Renato Alexandre da Silva Freitas

Mestre em Direito na área de concentração de Tutela Jurisdicional no Estado Democrático de Direito, pela Unitoledo de Araçatuba/SP com Dissertação aprovada com distinção pelos membros da Banca Examinadora. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Toledo, com especialização lato sensu em Direito Processual, Direito Tributário e Docência no Ensino Superior. Atualmente é Coordenado do Curso de Graduação do Centro Universitário Toledo em Araçatuba. Professor de Direito Tributário, Direito Empresarial e Direito Civil no Curso de Graduação em Direito; Introdução ao Estudo de Direito e Legislação Tributária e Comercial no curso de Graduação em Administração de Empresa e de Ciências Jurídicas e Sociais nas Engenharias do Centro Universitário Toledo. Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LANZA, Guilherme Saab ; FREITAS, Renato Alexandre Silva. O princípio da insignficância no crime de descaminho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4270, 11 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36916. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos