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Aceitação da herança: existe e é requisito necessário

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O trabalho discorre acerca da aceitação da herança, defendendo ser a aceitação um requisito necessário para que se concretize a transmissão do quinhão hereditário, ao contrário do que prega parte da doutrina civilista.

A aceitação e o princípio da saisine

Diferentemente do que acontecia em suas origens históricas, notadamente nos direitos romano e grego, em que o filho natural primogênito era obrigado a herdar o patrimônio do falecido, no direito moderno, e naturalmente no direito brasileiro, a aceitação passou a ser requisito necessário para a concretização da transmissão da herança[1].

Assim dispõe o artigo 1.784 do Código Civil de 2002:

“Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.

Esse dispositivo consagra de forma clara o princípio da saisine, instituto de origem francesa que logo foi incorporado pelos países de tradição jurídica românica[2], que prega que o fato jurídico que dá origem à transmissão do acervo patrimonial ao herdeiro é a morte natural, não sendo necessária qualquer outra formalidade. Assim, a transmissão da herança dá-se de forma automática e imediata, ipso jure, no momento da morte do de cujus.

Ocorre que, muito embora a transmissão da herança se dê de forma automática e independente de manifestação de vontade, ainda assim o art. 1.804 do CC fala em aceitação da herança:

“Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão”.

O que a lei quis prestigiar ao introduzir o requisito da aceitação foi a autonomia da vontade, pois ninguém pode estar obrigado a receber herança se assim não o desejar. Dessa forma, a saisine diz respeito a uma transmissão provisória, que é confirmada, tornando-se definitiva e provocando o fecho contratual, quando o sucessor expressamente aceita a herança ou passa a agir como se herdeiro fosse[3].


Natureza jurídica e características da aceitação

  • Ato jurídico em sentido estrito

Há autores que enquadram a aceitação no âmbito dos negócios jurídicos[4]. No entanto, nos filiamos ao entendimento que a classifica como um ato jurídico em sentido estrito[5], visto que o herdeiro que aceita a herança não pode escolher os efeitos a serem produzidos, tendo de aceitar os já previstos em lei.

  • Necessidade

Divergindo da corrente doutrinária majoritária, que enxerga como existente e necessária a aceitação da herança para confirmar a transmissão do patrimônio, está o posicionamento de Maria Berenice Dias, para quem a aceitação não existe, sendo “um nada jurídico”, pois, para a autora, a aceitação tácita inexiste e a expressa é desnecessária, tendo em vista que ninguém precisa “manifestar se aceita algo que por direito já lhe pertence”. Sustenta que, “como a transmissão é instantânea, não há motivo para se atribuir ao herdeiro a faculdade de aceitar ou renunciar à herança”[6].

Tal argumento não deve prosperar, pois, como explicado, a transmissão instantânea quando da morte do de cujus, em respeito ao princípio da autonomia da vontade, tem caráter provisório, sendo a aceitação condição indispensável para que alguém se torne efetivamente herdeiro. Dessa forma, após a transmissão da herança, restam ao herdeiro duas opções: aceitá-la ou repudiá-la, sendo a aceitação um ato jurídico unilateral necessário para que o herdeiro demonstre seu desejo de ficar com a herança que já lhe foi transmitida por força de lei[7].

  • Irrevogabilidade e irretratabilidade

É a aceitação irrevogável (art. 1.812 do CC), sendo passível de anulação (que não se confunde com revogação), antes de transitada em julgado a decisão da partilha, em caso de vícios na exteriorização da vontade[8].

A regra também vale pare os casos de aceitação tácita em que o herdeiro passou a agir como tal, não podendo mais se retratar.

Por a aceitação não ser passível de revogação, foi a lei cuidadosa ao especificar determinados atos que não implicam em aceitação. Assim, não exprimem aceitação:

  1. os atos oficiosos (art. 1.805, § 1º do CC), como os gastos com o funeral do finado, as providências com finalidade de conservar os bens, os atos meramente administrativos e a guarda provisória.
  2. a cessão gratuita, pura e simples, da herança, aos demais coerdeiros (art. 1.805, § 2º do CC).

Dessa forma, caso o herdeiro se arrependa de ter aceitado a herança, poderá, como solução, ceder os seus direitos hereditários, até mesmo a título gratuito, contanto que o bem não esteja gravado por cláusula de inalienabilidade (art. 1.911 do CC)[9].

  • Universalidade, indivisibilidade e não sujeição a termo ou condição (art. 1808 do CC)

Não é possível haver aceitação parcial da herança, uma vez que não pode o herdeiro aceitar apenas determinado ou determinados bens, pois quando se herda, herda-se uma universalidade, que se transmite por inteiro, mesmo que em fração ideal. Também não pode a aceitação estar sujeita a termo ou condição, sendo nula a cláusula que assim o estabeleça. Dessa forma, a título de exemplo, não poderia um herdeiro estabelecer como condição da sua aceitação a renúncia de outro herdeiro[10].

Importante é esclarecer que a vedação à aceitação parcial diz respeito às transmissões de patrimônio sob o mesmo título sucessório, uma vez que nos casos em que se transmitem mais de um título, a aceitação de um e a recusa de outro não implicam em aceitação parcial. Apenas o sucessor exerceu seu direito separadamente (art. 1808, §§1º e 2º do CC)[11].


Espécies de aceitação

Quanto à forma: expressa, tácita ou presumida

  • Expressa

É a forma mais rara de aceitação[12]. A declaração expressa deve ser obrigatoriamente escrita (art. 1805 do CC), em instrumento público ou particular, podendo ainda dar-se por termo nos autos[13].

  • Tácita

É a forma mais comum de aceitação. Dá-se quando o herdeiro passa a agir como tal, praticando atos positivos ou negativos que subentendam seu desejo de ficar com a herança[14]. A título exemplificativo, Sílvio de Salvo Venosa cita o caso do herdeiro que propõe ação para defender o espólio ou que promete alienar bens da massa hereditária. Da mesma forma, quem recebe uma joia valiosa e a usa ostensivamente estará aceitando a herança tacitamente[15].

Como já explicado, exclui a lei dos casos de aceitação tácita os atos oficiosos e a cessão gratuita, pura e simples, da herança, aos demais coerdeiros (art. 1.805, §§ 1º e 2º do CC). Roberto Senise Lisboa ainda acrescenta ao rol os casos de “requerimento de abertura do inventário, sem que se decline a qualidade de herdeiro e a pretensão em herdar”; e de “simples outorga de mandato a advogado, a menos que se faça representar como herdeiro no inventário”[16].

  • Presumida

É a que se opera quando, quem tem interesse jurídico na aceitação de outrem (por exemplo, o credor do herdeiro), após 20 dias de aberta a sucessão, ingressa em juízo para que o herdeiro diga, no prazo de 30 dias, se a aceita a herança ou não. Caso confirme estará aceitando de forma expressa. Caso permaneça em silêncio, presume-se a aceitação[17].

Quanto ao agente: direta ou indireta

  • Direta

É a que é promovida pelo próprio sucessor.

Sendo o herdeiro incapaz, a aceitação caberá ao representante legal ou assistente. No caso de ter tutor ou curador, a aceitação estará condicionada a autorização judicial (art. 1.748, II do CC). De igual maneira, pode ser a aceitação manifestada por mandatário (art. 653 a 692 do CC) ou gestor de negócio (art. 861 a 875 do CC) com poderes conferidos por escrito ou verbalmente. Em todos estes casos a aceitação é direta, pois foi promovida pelo próprio titular do direito[18].

Importante salientar que, caso o sucessor faleça sem manifestar sua vontade em relação à herança, “o direito de deliberar transmite-se a seus sucessores”[19].

  • Indireta

É a que é promovida por terceiro interessado (art. 1.813 do CC), no caso os credores do sucessor, que poderão aceitar a herança em seu lugar, até o limite do crédito (art. 1.813, §2º do CC), caso este renuncie, causando-lhes prejuízo. Os credores, desta forma, sub-rogam-se na herança do devedor renunciante[20].


Direito de deliberar

Fixa o art. 1.807 do CC:

“O interessado em que o herdeiro declare se aceita, ou não, a herança, poderá, vinte dias depois de aberta a sucessão, requerer ao juiz prazo razoável não maior de trinta dias, para dentro dele, se pronunciar o herdeiro, sob pena de se haver a herança por aceita”.

A intenção de dito dispositivo é evitar incerteza nos que não foram chamados em primeiro lugar na ordem de vocação, visto que ficam sem saber se serão ou não herdeiros, por não ter o que recebeu a herança se manifestado. Por isso, dá a lei oportunidade para que estes questionem o que recebeu o patrimônio. Caso este permaneça em silêncio, estará aceitando o seu quinhão[21].


REFERÊNCIAS

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 5.

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DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Incidentes à transmissão da herança: aceitação, renúncia, cessão de direitos hereditários e petição de herança. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). Direito das sucessões. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 41-82.

GOMES, Orlando. Sucessões. 15. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direito de família e sucessões. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 5.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito das sucessões. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro, 2012. v. 6.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das suessões. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. v. 7.


Notas

[1] Cristiano Chaves de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 44-45.

[2] Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito civil, v. 5, 226.

[3] Neste sentido: Cristiano Chaves de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 46; Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito civil, v. 5, 226; Roberto Senise Lisboa, Manual de direito civil, v. 5, 299; e Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, v. 7, 17.

[4] Neste sentido: Orlando Gomes, Sucessões, 22; e Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, v. 6, 53.

[5] Neste sentido: Cristiano Chaves de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 47.

[6] Maria Berenice Dias, Manual das Sucessões, 194-195.

[7] Cristiano Chaves de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 45.

[8] Neste sentido: Cristiano de Farias Chaves, Incidentes à transmissão da herança, 48; e Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, v. 7, 22.

[9] Neste sentido: Cristiano Chaves de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 48.

[10] Neste sentido: Cristsiano de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 48; Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito civil, 227; e Silvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 7, 22.

[11] Neste sentido: Cristsiano de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 49; Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito civil, 227; e Silvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 7, 22.

[12] Silvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 7, 20.

[13] Neste sentido: Cristsiano de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 49.

[14] Ibidem, 50.

[15] Silvio de Salvo Venosa, Direito civil, v. 7, 20.

[16] Roberto Senise Lisboa, Manual de direito civil, v. 5, 300.

[17] Neste sentido: Cristsiano de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 51.

[18] Ibidem, 51-52.

[19] Orlando Gomes, Sucessões, 20.

[20] Neste sentido: Cristsiano de Farias, Incidentes à transmissão da herança, 52-53.

[21] Neste sentido: Maria Berenice Dias, Manual das sucessões, 197; e Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, v. 7, 27.

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Sobre a autora
Ana Tereza Duarte Lima de Barros

Advogada e professora da graduação em Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Limoeiro-PE. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi bolsista do CNPq. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco com graduação sanduíche na Universidade de Salamanca (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Ana Tereza Duarte Lima. Aceitação da herança: existe e é requisito necessário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4504, 31 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37142. Acesso em: 26 abr. 2024.

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