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Óbices ao acesso do militar à Justiça pela Lei nº 6880/80

17/01/2018 às 13:33
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É nula de pleno direito qualquer sanção aplicada na vida castrense sob a alegação de que não foram esgotadas as vias administrativas e de comunicação prévia da intenção de recorrer ao Judiciário.

Inicialmente, deve-se destacar, no presente artigo, que o Direito Militar não é tratado com o mérito necessário, pois poucos são os estudos levados a efeito nesse sentido.

Acredita-se que pelo fato de o Direito Militar tratar de questões específicas, em especial a hierarquia e a disciplina que devem nortear a conduta da atividade castrense, os problemas afetos aos militares devam ser resolvidos apenas à luz das normas infraconstitucionais, o que é uma anormalidade.

Assim, o presente artigo visa demonstrar um entendimento quanto ao direito dos militares no que tange ao princípio da inafastabilidade do exercício da jurisdição, bem como ao princípio do direito ao acesso à justiça, fazendo menção, mesmo que perfunctória, no que tange à receptividade ou revogação do Estatuto dos Militares – Lei nº 6880/80 frente à Lei Maior de 1988.

Estabeleceu o STF que lei infraconstitucional anterior à Constituição Federal de 1988 só poderá ser revogada, ou incidentalmente atacada, por inconstitucionalidade se com esta for incompatível. Assim sendo, tem-se evidentemente que o Estatuto dos Militares não é inconstitucional, mas certamente tem artigos que são eivados de inconstitucionalidade, que é o objetivo deste estudo.

Em primeiro lugar, deve-se analisar o parágrafo 3º do art. 51 da Lei nº 6.880/80. Eis o que nele se encontra disposto:

 Art. 51. O militar que se julgar prejudicado ou ofendido por qualquer ato administrativo ou disciplinar de superior hierárquico poderá recorrer ou interpor pedido de reconsideração, queixa ou representação, segundo regulamentação específica de cada Força Armada.

[...]

§ 3º O militar só poderá recorrer ao Judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado (grifo nosso).”

Pela redação, pode-se, em uma análise prévia, dividir o referido dispositivo legal em duas partes: a primeira em que fica estabelecido que o militar só possa se socorrer da via judicial, depois de esgotados os recursos administrativos; e a segunda que, ao se valer do princípio do acesso à justiça, deverá o militar antecipadamente, comunicar deste seu intento à autoridade à qual estiver subordinado.

Verifica-se que, apesar de sabedores da rigidez, da hierarquia e da disciplina, pilares incontestáveis que regem a atuação dos militares, não se deve desejar que o militar esgote todos os recursos administrativos para, somente após isso, poder se valer do socorro jurisdicional para ver seus direitos tutelados. Além disso, ainda ter que comunicar ao seu superior hierárquico a respeito do desejo de recorrer judicialmente, coloca em evidência o ranço da ditadura militar ínsito no discurso legislativo sob análise.

Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 prevê, no artigo 5º, inciso XXXV, inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, também chamado de cláusula do acesso à justiça, ou do direito de ação: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Desse modo, entende-se, ao confrontar-se o diploma infraconstitucional com o princípio constitucional, que o militar, mesmo sofrendo uma lesão ou ameaça de direito, não poderá se valer do judiciário para ver tutelado esse direito ou essa ameaça, antes de esgotar todos os recursos administrativos como estabelece o Estatuto dos Militares na primeira parte do §3º do Art. 51.

Trata-se, no presente caso, de inconstitucionalidade, pois mesmo diante de toda hierarquia e disciplina que norteiam a conduta dos militares, categoria específica de servidor, eles não podem ter seus direitos restringidos, visto que a Constituição Federal não os restringe.

Ainda com relação à segunda parte do referido dispositivo, em que o militar deverá comunicar antecipadamente seu intento de valer-se do socorro jurisdicional para ver seus direitos protegidos, nota-se, com certa ressalva, que, neste caso específico, por tratar-se da especificidade das normas militares, aquela não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Porém, não se trata de um dispositivo inconstitucional, pois, diante desta comunicação, poderá o militar ver o seu direito resguardado, caso o seu superior hierárquico, tomando conhecimento do desiderato daquele subordinado, acate a intenção do militar com lesão ou ameaça a direito de servir-se da via judicial.

Todavia, o superior hierárquico pode criar uma barreira desarrazoada ao exercício do direito, inibindo, assim, o militar de recorrer à Justiça, haja vista o fundado receio de vir a ser vítima de perseguições por parte de seus superiores, o que, inclusive, é corriqueiro, mas velado nas Forças Armadas.

Sobre os princípios da hierarquia e disciplina, inserido na Lei nº 6.880/80 – Estatuto dos Militares, assim dispõe a redação do art. 14, §§ 1º e 2º:

Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade”.

§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo”.

Embora não se confundam, os termos hierarquia e disciplina são correlatos, pois somente se é obrigado a obedecer a quem tem poder hierárquico. No caso, os militares estão subordinados a seus Comandantes. Dessa forma, esses princípios devem sim ser preservados dentro das Forças Armadas. Entretanto, os direitos e garantias fundamentais inseridos no art. 5º da Constituição Federal de 1988, por serem normas de aplicação imediata, devem ser assegurados a todos os cidadãos, sejam eles civis ou militares.

Ademais, vale comentar que, embora o parágrafo 3º do art. 51 da Lei n. 6.880/80 não tenha sido recepcionado pela ordem constitucional vigente, de igual forma não foi revogado, e muitos Comandantes aplicam punições disciplinares a seus subordinados que ousem buscar o Poder Judiciário sem antes esgotarem a via administrativa, com fundamento de que eles teriam ofendido os princípios da hierarquia e disciplina. Em razão disso, inúmeros militares que sofreram tais sanções disciplinares sob esta alegação buscaram o poder judiciário para que fossem anuladas tais punições.

A resposta ao apelo judicial de tais militares foi procedente e as punições a eles aplicadas foram tornadas sem efeito, haja vista o ordenamento jurídico pátrio ter recepcionado o parágrafo 3º do art. 51 da Lei n. 6.880/80, no que tange ao direito do exercício de ação.

Assim, vale trazer a tona, a título de ilustração, um caso do cliente deste escritório, o qual teve a sua punição anulada, em razão do Comandante o obrigar a cumprir expediente da Unidade Militar, bem como em razão deste ter impetrado habeas corpus no STM, para haver o seu direito ao afastamento das atividades militares. Eis o julgado:

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. INFRAÇÃO DISCIPLINAR. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. LIVRE ACESSO AO JUDICIÁRIO.

1. Tendo em vista que a coação alegada não resulta da prática de infração penal militar (Carta Magna, art. 124), a competência para processar e julgar o presente "habeas corpus" é da Justiça Federal de primeiro grau, porquanto os atos praticados pela autoridade impetrada não se acham submetidos à jurisdição originária de órgão judicial colegiado (Carta Magna, arts. 102, I, "d" e "i"; 105, I, "c"; 108, I, "d"), sendo aplicável, portanto, o disposto no artigo 109, VII, da Constituição. Precedentes desta Corte e do STF.

2. O art. 51, § 3º, da Lei 6.680/1980, o qual prevê que "o militar só poderá recorrer ao Judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado", não foi recepcionado pela Carta Magna de 1988 por violar o princípio do livre acesso ao Judiciário (Artigo 5º, inciso XXXV), sendo, portanto, inconstitucional a imposição de sanção ao paciente por haver impetrado "habeas corpus" perante o STM sem comunicar o fato, previamente, à autoridade militar. Precedentes desta Corte e dos Tribunais Regionais Federais da 2ª, da 4ª e da 5ª Regiões.

3. Nos termos do artigo 3º, XV, do Decreto 2.040/1996, a vinculação do militar à organização respectiva (OM), na condição de adido, não impõe a integração efetiva às atividades dela. Precedentes desta Corte.

4. Confirmação da ordem, a qual foi deferida "para determinar que a autoridade impetrada se abstenha de aplicar qualquer penalidade disciplinar ao paciente em face da recusa de cumprir o expediente da Unidade Militar, bem como em razão de ter impetrado habeas corpus no STM".

5. Recurso em sentido estrito e reexame "ex officio" a que se nega provimento.

(RCHC 0001936-25.2006.4.01.3803 / MG, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL LEÃO APARECIDO ALVES (CONV.), TERCEIRA TURMA, DJ p.33 de 21/09/2007)

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No mesmo sentido, encontram-se várias decisões proferidas no âmbito dos Tribunais Regionais Federais. É o que se ratifica com o seguinte julgado do Tribunal Regional da 4ª Região:

DIREITO ADMINISTRATIVO. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. MILITAR PUNIDO COM PENA DE PRISÃO POR TER IMPETRADO MANDANDO DE SEGURANÇA PARA DEFESA DE SEUS DIREITOS.

1. O Dec-90608/84, item 15 do Anexo 1, ao estabelecer que caracteriza infração disciplinar " recorrer ao judiciário sem antes esgotar todos os recursos administrativos " e o ART-51, PAR-3, do Estatuto dos Militares ( LEI-6880/80 ), ao enunciar que " o militar só poderá recorrer ao judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado ", não foram recepcionados pela Magna Carta de 1988, onde é assegurado o direito de acesso ao judiciário, sem a necessidade de esgotar previamente a via administrativa.

(TRF4, REO 94.04.39311-8, Terceira Turma, Relatora Luiza Dias Cassales, DJ 30/09/1998)”.

Também o Tribunal Regional da 5ª Região confirma idêntica tese:

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MILITAR. PRISÃO DISCIPLINAR. ART. 51, PARÁGRAFO 3º, DA LEI Nº 6880/80. ART. 5º, XXXI, DA CF. INCOMPATIBILIDADE COM A ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE. NULIDADE DO ATO PUNITIVO.

- Para recorrer ao Poder Judiciário, a legislação castrense exige - art. 51 - que tenham se esgotado todos os recursos administrativos e que o interessado informe a sua intenção ao superior hierárquico.

- Incompatibilidade do parágrafo 3º, do art. 51, da Lei nº 6880/80 com a nova ordem constitucional, por força do disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, o qual disciplina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.  Assim, não há como justificar uma atitude da administração castrense de punir militar que busca proteção no Judiciário, em face de ato abusivo e ilegal praticado no exercício da profissão.

- Mesmo que se considerassem válidas as exigências impostas pelo art. 51, parágrafo 3º, da Lei nº 6880/80, a motivação da prisão do autor não encontraria guarida, por ter ele procurado exaurir os recursos cabíveis na esfera administrativa antes de enveredar pela seara judicial, assim como também ter comunicado ao superior hierárquico a sua intenção de recorrer ao Poder Judiciário para ver reconhecido o seu direito ao reajuste implementado pela URP.

Apelação e remessa obrigatória improvidas.

(PROCESSO: 9505303769, AC89021/PE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ MARIA LUCENA, Primeira Turma, JULGAMENTO: 01/12/2005, PUBLICAÇÃO: DJ 25/01/2006 - Página 448)”.

Conclui-se, em razão de todo o exposto, que é nula de pleno direito e deve ser tida como revogada qualquer sanção aplicada na vida castrense sob a alegação de que não foram esgotadas as vias administrativas e de comunicação prévia da intenção de recorrer ao Judiciário, por força do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

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Sobre o autor
Braulio Aragão Coimbra

Advogado inscrito na OAB/MG sob nº 130.398. Coordenador da Carteira de Direito Securitário do escritório Januário Advocacia Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COIMBRA, Braulio Aragão. Óbices ao acesso do militar à Justiça pela Lei nº 6880/80. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5313, 17 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38231. Acesso em: 19 abr. 2024.

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