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Guarda-Sorriso

04/07/2015 às 08:44
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Trata-se de um caso prático que, além de nos remeter à análise jurídica, leva-nos a refletir sobre a compaixão.

Vitória não é uma grande metrópole mas, mesmo assim, as pessoas desaparecem. Onde estará um guarda de trânsito que, por tratar os motoristas e cidadãos em geral com extrema delicadeza, era chamado Guarda-Sorriso?

Eu o vi numa audiência, há quatro décadas, quando ainda exercia a função de Juiz de Direito, e nunca mais voltei a encontrá-lo.

 Nessa audiência o Guarda-Sorriso compareceu como vítima, pois fora desacatado por uma moça que o chamou de "guardinha". Essa moça, no horário do rush, sendo péssima motorista, foi sucessivamente multada pelo guarda, porque, sucessivamente, cometeu infrações. O veículo sofreu um problema mecânico. Tentando safar-se da situação embaraçosa, parou o carro onde não podia parar; deu marcha a ré indevidamente; avançou quando não podia avançar; provocou uma balbúrdia no trânsito. Ao receber as multas, corretamente aplicadas, a infratora chamou o Guarda-Sorriso de "guardinha", um procedimento desrespeitoso e injusto.

À face da lei, a moça deveria ser condenada nas sanções do artigo 331 do Código Penal, assim redigido:

“Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

A acusada, arrimo de família, tinha feito um concurso público, foi aprovada e estava para ser nomeada. A condenação, ainda que na pena mínima (multa), impediria a nomeação. A multa administrativa não gera este efeito, mas a multa criminal sim.

O Guarda-Sorriso, demonstrando a altitude de sua nobreza, pediu que a acusada fosse absolvida, porque, além de tudo que já constara dos autos, a mãe de sua agressora era idosa e estava enferma.

Como agir à face do caso concreto:

a) condenar a acusada e lhe fechar o futuro?

b) absolvê-la e atender o pedido de clemência do Guarda-Sorriso?

c) a piedade da vítima demonstrou grandeza espiritual, mas não era juridicamente procedente, pois se tratava de uma ação pública; a injúria não alcançava apenas a pessoa do guarda, mas também a função que desempenhava como agente do Estado; desprezar, então, a lei naquele caso concreto?

Pareceu-me que não seria justo destruir o futuro da moça e alcançar com a sentença as pessoas que dela dependiam financeiramente. De fato, o perdão do ofendido não extinguia o delito, mas seria ilógico desprezá-lo. Lavrei decisão absolutória.

Tantos anos depois, fico a meditar.

Era preciso que houvesse muitos guardas-sorriso, muitos homens-sorriso, muitas crianças-sorriso, para tornar menos agreste este mundo tão tenso, tão competitivo, tão cruel.

Esteja você onde estiver, receba Guarda-Sorriso, José Geraldo Morais, minha palavra de admiração.

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Sobre o autor
João Baptista Herkenhoff

Magistrado aposentado (ES), professor, escritor, palestrante. Autor, dentre outros livros, de: Direito e Utopia (Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HERKENHOFF, João Baptista. Guarda-Sorriso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4385, 4 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40612. Acesso em: 16 abr. 2024.

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