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Fraternidade:

um caminho jurídico para uma mudança social

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Estuda-se o princípio da fraternidade enquanto categoria jurídica, demonstrando a sua presença nos ordenamentos jurídicos e nas práticas dos operadores do Direito.

INTRODUÇÃO

Refletir sobre a sociedade atual, por vezes, é cair numa discussão acalorada e sem fim. Citam-se filósofos, sociólogos, teólogos, economistas, juristas, enfim, todos que defendem ou sustentam o seu ponto de vista.

Quando a palavra FRATERNIDADE é proferida, remete-se, quase que instantaneamente, ao lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, essa ideia é bem mais antiga e evidencia que o homem, ao escolher viver em sociedade, estabelece com os seus pares uma relação de igualdade. Munir Cury[1] revela que, “Para os romanos, a fraternidade era o relacionamento entre irmãos da mesma família e sobre essa base se modelou o conceito de sociedade particular na qual se colocavam os bens em comum”. Nestes termos, o professor Carlos Augusto Alcântara Machado[2] ensina que a fraternidade remete à ideia de consanguinidade, desde os documentos bíblicos do Antigo Testamento que indicam como irmãos os membros de uma mesma família ou de uma mesma fé, até o Novo Testamento, onde todos são irmãos, pois são filhos do mesmo Pai que está no Céu.

Porém, para o mundo moderno concebido como Estados independentes, é a Revolução Francesa o marco inicial do “surgimento” do princípio da fraternidade. Vale destacar que o célebre lema da Revolução de 1789 somente se tornaria oficial na República revolucionária de 1848. Contudo, foi na Revolução de 1789 que a ideia de fraternidade foi entendida e praticada politicamente, isto é, iniciou-se uma aproximação com os outros dois princípios: liberdade e igualdade.

Dessa forma, enquanto a liberdade e a igualdade tornaram-se categorias políticas e princípios expressos em grande parte das Constituições do mundo ocidental, o pensamento a respeito da fraternidade manteve-se estagnado. Isso porque a fraternidade nunca foi vista como ela realmente é: ora extrapolam e sustentam a fraternidade como um entrelaçamento do homem com os animais e os vegetais, o que se revela politicamente ineficaz; ora restringem seu conceito por conta das suas fortes raízes cristãs, o que afronta o caráter republicano da Revolução de 1848. Esta revolução, inclusive, foi a primeira tentativa de se construir uma universalidade em torno das várias interpretações descristianizadas do conceito de fraternidade.

Entende-se que, por mais que os ordenamentos jurídicos proclamem a defesa da liberdade e da igualdade, percebe-se que a sua plena realização ainda está longe de ser alcançada. Parecem bastante atuais as palavras de Jean-Jacques Rousseau[3]: rigorosamente nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. Talvez porque estejam desprovidas da fraternidade. Isso gera uma dúvida não só sobre o que realmente seja a liberdade, a igualdade e a fraternidade como também dificulta a garantia dos direitos fundamentais para todos os cidadãos, independentemente de grupo, classe ou raça. Pois, segundo Ana Maria de Barros[4], a relação dinâmica entre os três princípios dá o verdadeiro embasamento às políticas relacionadas aos direitos humanos.

Até John Rawls[5], sob a perspectiva do princípio da diferença, ressalta a importância da fraternidade, mesmo adotando outra linguagem, o pensador acredita ser a fraternidade elemento imprescindível do novo contratualismo, e a adota sob o “codinome” princípio da diferença[6].

Vê-se a conservação dos valores democráticos fincados no princípio da fraternidade. Ela é capaz de elevar a estima social, superar as relações servis, introduzir o senso de fraternidade cívica e de solidariedade social. Sob esta ótica, é a fraternidade o elemento capaz de mudar a sociedade. Ronald Dworkin[7] talvez vislumbrasse uma saída para o conflito entre liberdade e igualdade nas sociedades globais se considerasse a fraternidade o elemento que proporciona o diálogo entre os outros dois princípios:

Se utilizado para o bem comum, o princípio da fraternidade pode ajudar na compreensão da liberdade segundo John Locke[8], isto é, formadora de uma comunidade, uma sociedade de homens conscientes politicamente e que, de fato, detenha o poder.

O objetivo da fraternidade é o mesmo do direito, a saber: a paz. E é exatamente por ser desafiador alcançar este objetivo que se exige do cidadão e dos operadores do Direito uma luta incansável. Como ressalta Rudolf Von Ihering[9], “Enquanto o direito tiver de rechaçar o ataque causado pela injustiça – e isso durará enquanto o mundo estiver de pé – ele não será poupado [...] O direito não é mero pensamento, mas sim força viva”.

Na busca por essa mudança social, o professor Dimas Salustiano[10] defende o princípio da fraternidade como garantidor de um futuro melhor, e o Direito é um caminho que necessita de uma reflexão a esse respeito, pois o princípio da fraternidade exige uma discussão, um debate, exige uma segunda pessoa com quem confrontar a ideia de uma justiça mais humana, exige uma reflexão moral, como bem assinala Michael Sandel[11]:

O mundo contemporâneo associa o tema fraternidade a um discurso religioso ou político, extrajurídico ou meta jurídico. Todavia, entende-se a fraternidade como um caminho também jurídico e capaz de transformar as relações interpessoais. Aliás, o mundo jurídico é o meio social mais necessitado de fraternidade, pois a falta de sensibilidade dos membros do Poder Judiciário é notória. Este Poder esconde-se atrás do princípio da legalidade para por fim aos processos e não buscar soluções para os conflitos que envolvem a sociedade. Conseguir enxergar o outro como seu semelhante, independentemente do cargo que ocupa ou da posição social, é o grande desafio que se apresenta no mundo das leis. Julgar, acusar e defender em nome da paz social é algo desafiador num mundo que exige de seus habitantes sempre um diferencial, em muitos casos sem levar em consideração a questão moral de suas atitudes. E é este o desafio principal: investigar, à luz do princípio da fraternidade, de que maneira o Direito pode ajudar na melhoria das relações sociais.


1. FRATERNIDADE: CONTEXTO HISTÓRICO

1.1. A fraternidade francesa

Temos a visão romântica da Revolução Francesa, resumida em seus três célebres pilares, a saber: liberdade, igualdade e fraternidade.

A revolução em questão, datada de 1789, não é o primeiro momento histórico no qual a fraternidade é citada. Houve ascensões e declínios até se constituir de maneira definitiva no art 2° da Constituição de 27 de outubro de 1946. Podemos buscar nos primórdios do cristianismo exemplos de exercício deste princípio, contudo, é na Revolução Francesa que surge o tema “fraternidade” com um viés político, aliado da liberdade e da igualdade. Como analisa Antonio Maria Baggio[12]: “O que é novo na trilogia de 1789 é a fraternidade adquirir uma dimensão política, pela sua aproximação e sua interação com os outros dois princípios que caracterizam as democracias atuais: a liberdade e a igualdade. Porque, de fato, até antes de 1789 fala-se de fraternidade sem a liberdade e a igualdade civis, políticas e sociais; ou fala-se de fraternidade em lugar delas. A trilogia revolucionária arranca a fraternidade do âmbito das interpretações – ainda bem que matizadas – da tradição e insere-a num contexto totalmente novo, ao lado da liberdade e da igualdade, compondo três princípios e ideais constitutivos de uma perspectiva política inédita. Por isso, a trilogia introduz – ou, ao menos, insinua – um mundo novo; um novum que questiona inclusive o modo como o cristianismo entendera até então a fraternidade; um novumque é anunciado e logo em seguida decai, pelo desaparecimento, quase que imediato, da fraternidade da cena pública. Permanecem em primeiro plano a liberdade e a igualdade – geralmente mais antagônicas do que aliadas (antagonistas justamente por serem desprovidas da fraternidade) -, que, de algum modo, estão integradas entre si no seio dos sistemas democráticos; mas que se tornam também, em alguns lugares, sínteses extremas de duas visões de mundo, de dois sistemas econômicos e políticos que disputarão o poder nos dois séculos seguintes.

Liberdade e igualdade conheceram, assim, uma evolução que as levou a se tornarem autênticas categorias políticas, capazes de se manifestarem tanto como princípios constitucionais quanto como ideias-força de movimentos políticos. A ideia de fraternidade não teve a mesma sorte. Com exceção do caso francês, como princípio político, ela viveu uma aventura marginal, o percurso de um rio subterrâneo, cujos raros afloramentos não conseguiam irrigar sozinhos, a não ser esporadicamente, o terrenos político. Enfim, o pensamento democrático a respeito da fraternidade manteve-se em silêncio”.

A ideia de fraternidade que circulava em 1790 tinha a intenção de estabelecer um relacionamento mais estreito entre os cidadãos franceses, haja vista a existência dos feudos da velha França que não se constituía em um território comum a todos. Camille Desmoulins cita a Festa da Federação de 14 de julho de 1790 como o primeiro momento no qual os três pilares da Revolução aparecem juntos, numa possibilidade de vivência e convivência harmoniosa entre diferentes. “Chega um jovem, tira o paletó, coloca sobre ele os seus dois relógios, toma uma enxada e vai trabalhar num lugar distante. Mas e os seus dois relógios? – Ah! Não existe desconfiança entre os próprios irmãos. – E seus pertences, deixados sobre a areia e as pedras, são tão invioláveis quanto um deputado da assembleia nacional”. (DESMOULINS, 1989 apud BAGGIO, 2008, p. 27-28).

Juntos oficialmente, a liberdade, a igualdade e a fraternidade apareceram no decreto de organização das Guardas Nacionais, de 5 de dezembro de 1790, em seu artigo 16: “[...] Eles carregarão no peito estas palavras bordadas: ‘O povo francês’, e acima: ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’. Essas mesmas palavras serão inscritas em suas bandeiras, que trarão as três cores da Nação”. (ROBESPIERRE, 1989 apud BAGGIO, 2008, p. 28).

Finalmente completado o período de formação da trilogia, esperava-se que o povo francês desfrutasse de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna. Entretanto, a fraternidade ganhou interpretações diversas e dificultou o caminho da Revolução. Em um primeiro momento, a fraternidade serviu para unir, vide Festas da Federação; já em um segundo momento serviu para separar, quando da morte do rei e a tomada do poder pelos jacobinos. É o que nos ensina Baggio[13]: “É evidente que, na época do Terror, a fraternidade se distanciava totalmente do seu verdadeiro significado. Só assim se explicam as palavras de Chamfort, segundo o qual a trilogia seguida da expressão “ou a Morte” nada mais significava do que: “Seja meu irmão, ou então eu o mato”. Comenta o historiador Alphonse Aulard que, certamente, não era esse seu significado original, que, na verdade, pretendia declarar a disposição de morrer para defender a liberdade: “Mas não há duvidas de que, sob o Terror, as palavras ‘ou a Morte’ foram tomadas também, e especialmente, em outro sentido, no sentido de uma ameaça de morte aos aristocratas” (Aulard, op. Cit., p. 23). De fato, com o fim do Terror, tomou corpo um movimento de opinião que obrigou cancelar, nos monumentos, a maioria dos dizeres que associavam a fraternidade à morte. A fraternidade, no seio da “Grande Revolução”, havia cumprido seu ciclo”.

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1.2. A fraternidade no pós-guerra

Documentalmente, a fraternidade voltou ao cenário internacional com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Influenciados pelos acontecimentos que envolviam as ideologias nazista e fascista, era necessário redigir um documento capaz de por em evidência a dignidade da pessoa humana; revelar a importância do ser humano perante o Estado.

A Carta da ONU, aprovada em junho de 1945, estabelecia já em seu artigo 1° a finalidade de “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Entretanto, não havia uma declaração sobre os direitos humanos. Prometeu-se então a redação de um International Bill ofHumanRights.

Passou-se a discutir o formato dessa Declaração. Em um primeiro momento, pensou-se em um ato legislativo da Assembleia Geral. Mas essa ideia logo foi refutada por conta da limitação dos poderes da Assembleia; em seguida, buscou-se complementar a Carta da ONU com a Declaração, se utilizando do comando que previa emendas à Carta, desde que aprovadas e ratificadas pelo voto de dois terços dos membros da ONU. Essa medida também não obteve sucesso pelo repúdio ao caráter vinculativo que os direitos humanos poderiam ter e levar a ONU a interferir em questões internas de um Estado. Por fim, decidiu-se por uma declaração-manifesto de princípios que definiriam a natureza e o conteúdo dos direitos e das liberdades fundamentais, bem como a natureza e o alcance das garantias internacionais que deveriam ser postas em prática.

O processo de redação da Declaração teve início com o Conselho Econômico e Social da ONU em 16 de fevereiro de 1946. Em junho de 1947 foi proposto o Artigo 1° com a seguinte redação: “Todos os homens são irmãos. Dotados de razão e consciência, são membros de uma única família. São livres e têm a mesma dignidade e os mesmos direitos”.

Vê-se a necessidade de incutir desde o início da Declaração um espírito fraterno entre os seres humanos. Mas este artigo não era ponto pacífico, principalmente pelo desejo de inserir no Preâmbulo da Declaração um texto semelhante. Depois de vários debates, em dezembro de 1947, foi aceito pela maioria o seguinte texto: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados pela natureza de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros como irmãos”.

Esse texto passou pela Comissão e pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral com pequenas alterações: substituiu-se “homens” por “seres humanos” e “como irmãos” por “em espírito de fraternidade”.

Para aprovação do Artigo 1° no Terceiro Comitê da Assembleia Geral, vale destacar as palavras de R. Cassin, membro do Comitê de Redação da Declaração. “Nos últimos dez anos, milhões de homens perderam a vida justamente porque esses princípios foram cruelmente desprezados. A barbárie, que o homem considerava ter com toda certeza sepultado, conseguiu voltar a se espalhar enormemente pelo mundo. Era essencial que as Nações Unidas proclamassem novamente à humanidade os princípios que chegaram tão perto da extinção e rejeitassem explicitamente a abominável doutrina do fascismo”. (Officials Records of the Third Session of the General Assembly apud AQUINI. In BAGGIO, 2008, p. 132).

Tendo sido aprovada no Terceiro Comitê com vinte e seis votos a favor, seis contra e dez abstenções, o Artigo 1° bem como toda a Declaração seguiram todos os trâmites legais até a aprovação definitiva em Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1948.

Estavam assim, lançadas as bases para entender e colocar em prática a fraternidade como categoria jurídica.


2. A FRATERNIDADE COMO CATEGORIA JURÍDICA

A Magna Carta brasileira de 1988, “apelidada” de Constituição Cidadã, desde o seu preâmbulo vislumbra uma sociedade fraterna. “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.

Essa Constituição mostra toda a sua força neste Preâmbulo, que se apresenta como um grande princípio, uma identidade. Segundo o Doutor Paulo Ferreira da Cunha[14]: “Este preâmbulo da Constituição brasileira afigura-se-nos a grande cláusula pétrea por detrás das cláusulas pétreas elencadas expressamente. E não esqueçamos que estas cláusulas têm de existir, sob pena de banalização e rebaixamento constitucionais: são as muralhas que defendem a cidadela constitucional contra as investidas dos poderes fugazes e o turbilhão do momento, de cada momento”.

Nota-se que no preâmbulo da Constituição brasileira em vigor os direitos individuais interagem com os sociais, em busca do bem-estar, segurança e desenvolvimento, tendo por base a liberdade, a igualdade e a justiça, capazes de construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

O artigo 3°, inciso I, corrobora essa linha de pensamento:

“Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;”

[...]

Em sua tese de Mestrado, Marieta Izabel Martins Maia[15] observa uma caminho sendo trilhado até o Direito Fraterno: “Nossa acuidade bibliográfica levou-nos a observar que no momento do Estado Liberal vivenciamos a fase declaratória dos Direitos individuais, no Estado Social, a fase garantista dos Direitos sociais, e provavelmente, estamos propensos, com o Estado Democrático de Direito e de Cultura, à concretização do Direito Fraterno, coroado com a premissa de ser o Direito das relações interpessoais, por meio da qual se busca, efetivamente, formar uma sociedade plural, onde se respeitam as diferenças de credo, sexo, cor e religião”.

Portanto, é a dignidade da pessoa humana o valor requisitado por toda a sociedade, pois se houver uma aproximação entre o Estado e a sociedade, o indivíduo terá condições adequadas para o seu desenvolvimento enquanto cidadão, e este, engajado com a mudança social, atuará de modo que o Direito se adeque aos interesses coletivos e individuais, resultando em um processo cristalino de surgimento do Direito Fraterno.

O grande jurista Carlos Ayres Britto[16] nos ensina que a fraternidade “(...) é o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro da Igualdade. A comprovação de que, também nos domínios do Direito e da Política, a virtude está sempre no meio (medius in virtus). Com a plena compreensão, todavia, de que não se chega à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este, o fascínio, o mistério, o milagre da vida”.

A consagração da fraternidade pode proporcionar uma sociedade mais feliz, menos extremista, em busca daquilo que une a todos os seres humanos e não daquilo que os distancia, pois a primordial função do direito é a tutela da dignidade da pessoa humana, haja vista que o homem é anterior ao Direito e ao Estado e, por isso, tem o direito de ser reconhecido como pessoa humana.

Toda pessoa só pode ser considerada ser humano se detentor de dignidade. E é essa pequena-grande parte, o ser humano, que forma algo gigantesco: a humanidade. Portanto, pode-se dizer que em cada ser humano está presente a humanidade inteira. Gandhi, em sua luta pacífica pela independência da Índia, dizia que “eu não posso ferir o outro sem me ferir”. Essa é a ideia do “um” que é o “todo”; o “singular” que é “plural”.

Entretanto, essa unidade não pode ser considerada em um plano estático da sociedade. Ao contrário, essa unidade necessita de uma dinamicidade capaz de realizar a pessoa humana dentro de uma comunidade, onde todos possuem igualdade de dignidade.

Independentemente da posição ideológica, o homem, e porque não, a dignidade humana são os responsáveis pela sua realização enquanto humanidade. O ateu Jean-Paul Sartre escreveu que “o homem está constantemente fora de si mesmo, e é projetanto-se fora de si e perdendo-se para além de si mesmo que ele se realiza; por outro lado, é perseguindo fins transcendentes que ele pode existir. Assim, ele se revela como transcendência e é, em si mesmo, o núcleo e o centro dessa transcendência. Só existe o universo do homem – o universo da subjetividade humana. Esse vínculo entre transcendência, constitutiva do homem (transcendência não no sentido de que o homem vai para além de si mesmo, não no sentido de que Deus é transcendente), e subjetividade (no sentido de que o homem não se encerra em si mesmo, mas está sempre presente no universo humano) é o que se chama ‘humanismo existencialista’. É humanismo porque o homem, como único legislador, faz sua própria escolha e porque, na busca constante de fins fora de si mesmo na forma de libertação, é que ele se realizará como verdadeiramente humano”. (SARTRE, 2007 apud SILVA, 2010. In SOUZA; CAVALVANTI (coordenadores), 2010, p. 8)

Por outro lado, o católico Jacques Maritain diz: “Para deixar as discussões abertas, digamos que o humanismo (e uma tal definição pode ser desenvolvida segundo linhas muito divergentes) tende essencialmente a tornar o homem mais verdadeiramente humano, e a manifestar sua grandeza original fazendo-o participar de tudo o que pode enriquecer na Natureza e na história (‘concentrando o mundo no homem’, como dizia mais ou mesmo Scheler, e ‘dilatando o homem no mundo’); ele exige ao mesmo tempo que o homem desenvolva as virtualidades nele contidas, suas forças criadoras e a vida da razão, e trabalhe por fazer das forças do mundo físico instrumento de sua liberdade”. (MARITAIN, 1945 apud SILVA, 2010. In SOUZA; CAVALVANTI (coordenadores), 2010, p. 9)

Nessa dimensão, a relação entre os sujeitos são analisadas sob um outro ângulo e, sob esta nova ótica, o Direito é um instrumento fundamental para propiciar relações mais adequadas entre os seres humanos, pois já não se pode conceber uma relação jurídica que estabelece a defesa dos interesses do indivíduo e menospreza as exigências da relação entre eles.

Segundo Marieta Maia[17], “Os Estados, o Direito e a sociedade, quando consagraram os princípios da liberdade e da igualdade, reforçaram somente os direitos individuais. E isto não é suficiente, não estabelece posições e não fornece respostas satisfatórias e adequadas para assegurar uma vida de relações na comunidade, pois se prescinde de outro princípio fundante: a fraternidade.

Esses três princípios são solidários uns com os outros, mutuamente, apoiam-se. Caso contrário é difícil a edificação total da sociedade, ficaria incompleto o prédio social, na medida em que se a fraternidade for praticada por si só, sem a igualdade e a liberdade, não há verdadeira fraternidade, tornar-se-ia falsamente prestativa aos seus fins; por sua vez, a liberdade sem a fraternidade, seria libertinagem, pois é com o princípio da fraternidade que se concretiza a dignidade da pessoa humana e, por conseguinte o mutuo respeito das liberdades individuais e coletivas, cerceando-se em limites fraternos; e, por fim, a igualdade sem a fraternidade provavelmente, pode conduzir à tirania, pois se a igualdade busca a liberdade, ensejará uma espécie de despotismo, onde os mais fracos quererão aniquilar os mais poderosos para assumirem o seu lugar e poder”.

A construção de uma sociedade conforme objetiva a Constituição brasileira (livre, justa e solidária), passa pela atuação do Direito também em sua dimensão humanista e interpessoal, afinal, todos têm o direito e o dever de contribuir para o bem do próximo, através da integração cívica e comunitária.

A fraternidade está expressa em outros ordenamentos jurídicos que não só o brasileiro. Carlos Augusto Alcântara Machado[18] registra em seus escritos sobre a fraternidade como categoria constitucional: “Na vigente Constituição lusitana, logo no preâmbulo, o constituinte português registrou um relevante compromisso: fazer de Portugal um país mais fraterno (grifo do autor). No art. 1°, um importante empenho: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

No decorrer do seu texto, por diversas vezes (arts. 63°, 66°, 71° e 73°) o substantivo solidariedade foi empregado no trato de temas como deficientes, meio ambiente, educação, e economia. Utilizou o texto magno português expressões como solidariedade entre gerações; solidariedade social, espírito de tolerância e compreensão mutua.

É possível encontrar a presença efetiva da fraternidade ou da solidariedade, expressa ou implicitamente, também na Constituição Italiana.

Eis alguns dispositivos que indicam, no particular, o compromisso da Carta Constitucional italiana (sem os destaques no original):

Art. 2. A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, quer como ser individual quer nas formações sociais onde se desenvolve a sua personalidade, e requer o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social.

Art. 4. A República reconhece todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que tornem efetivo esse direito. Todo cidadão tem o dever de exercer, segundo as próprias possibilidades e a própria opção, uma atividade ou uma função que contribua para o progresso material ou espiritual da sociedade.

Art. 41. A iniciativa econômica privada é livre. A mesma não pode se desenvolver em contraste com a utilidade social ou de uma forma que possa trazer dano à segurança, à liberdade, à dignidade humana. A lei determina os programas e os adequados controles, a fim de que a atividade econômica pública e privada possa ser dirigida e coordenada para fins sociais”.

Constata-se que ao Direito já não cabe mais o papel de ciência tecnicista, positiva e dogmática. O século XXI exige uma busca incessante pela paz social.

Em se tratando do ordenamento jurídico italiano, ele não traz explicitamente o princípio da fraternidade, mas possui subsídios para enxerga-lo realmente vivo na Constituição daquele país. Para tanto, a Itália se serve do princípio personalista, matriz reconhecida do princípio da solidariedade, que se expressa principalmente nos artigos 2° e 3°.

No personalismo constitucional, coloca-se em evidência o caráter naturalmente social e político da pessoa, onde a identidade se constrói somente na relação social com o diferente de si. O homem não serve ao Estado, mas o Estado deve ser para o homem. Portanto, não é a autonomia e a independência que caracterizam o homem, mas a interdependência estrutural.

FilippoPizzolato[19] demonstra que “[...] o processo de constituição da personalidade desenvolve-se e aperfeiçoa-se por intermédio das estruturas da sociedade. Coerentemente com essa convicção, o Artigo 2° da Constituição reconhece e promove amplamente as “formações sociais”, em que a personalidade humana se desenvolve. Pertencer a uma comunidade é constitutivo e estrutural da identidade humana, não um dado acessório ou opção eventual, voluntarista”.

Dessas linhas gerais sobre o personalismo constitucional, encontra-se no ordenamento jurídico italiano o princípio da fraternidade. Afirma Pizzolato[20]: “[...] Justamente por ser a fraqueza aquilo que identifica os homens entre si, não existe para a solidariedade o caminho do paternalismo, mas tão somente o da fraternidade. O personalismo não corre o risco, ao menos no campo teórico, de cair no assistencialismo, pois não há nele uma separação entre uma categoria de “fortes” que, de maneira paternalista, deve prestar socorro, e uma categoria de “fracos”, destinatária do socorro. O que há é uma interdependência e uma fraternidade, na qual “todo cidadão tem o dever de desenvolver [...] uma atividade ou uma função que concorra para o progresso material ou espiritual da sociedade” (Artigo 4° da Constituição); em outras palavras, num quadro de indispensável solidariedade. A recusa de qualquer distinção definitiva e definidora entre fortes e fracos requer, portanto, da sociedade e de seus membros um esforço de promoção do fraco, e requer do fraco que participe dos processos de construção social. O Artigo 3°, alínea 2, da Constituição compromete a República, composta de administração pública e sociedade civil, com a tarefa de “remover os obstáculos de ordem econômica e social” que “impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país”.

A responsabilidade social configura-se como dimensão constitutiva da liberdade, e direitos e deveres são fundidos até se tornarem indistintos (Artigo 2° da Constituição). De fato, o indivíduo deve incluir novamente entre suas opções de vida não apenas seu próprio bem, mas o bem comum; pois, causando dano à comunidade, na realidade danifica o tecido de solidariedade do qual ele mesmo extrai a seiva vital”.

A fraternidade se exprime na correlação, já mencionada, entre direitos e deveres. Essa interdependência estrutural estabelece a Regra de Ouro[21]: fazer aos outros aquilo que gostaria que fosse feito a você e não fazer aos outros aquilo que não gostaria que fosse feito a você.

Pizzolato[22]aponta na Constituição de seu país esse “espírito fraterno”: “[...] Na esfera constitucional, já não se impõe à liberdade apenas a obrigação de não causar prejuízo à liberdade alheia, mas o dever (in primis mediante o trabalho) de concorrer “para o progresso material ou espiritual da sociedade” (Artigo 4°); já não se exige apenas da liberdade econômica que não seja exercida “de modo a causar dano à segurança, à liberdade, à dignidade humana”, mas também que “possa ser orientada e coordenada para fins sociais” (Artigo 41 da Constituição); já não se reconhece à propriedade apenas o título de direito inviolável (jus utendiac abutendi), mas é preciso garantir-lhe sua “função social”, e isso não somente mediante expropriação, mas também por meio da regulamentação do que é facultado ao direito de propriedade (Artigo 42 da Constituição). Não podemos, porém, afirmar que esses elementos do sistema constitucional já tenham sido acolhidos e plenamente aplicados”.

Assim, está demonstrada a presença e a importância do princípio da fraternidade em vários ordenamentos jurídicos ocidentais e a necessária aplicação deste princípio para a concretização da justiça social.

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Sobre o autor
Jonathan Jefferson Miranda Messias

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESSIAS, Jonathan Jefferson Miranda. Fraternidade:: um caminho jurídico para uma mudança social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4415, 3 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41274. Acesso em: 28 mar. 2024.

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