I – INTRODUÇÃO
A ordem tributária brasileira encontra-se regida pelas normas constitucionais dispostas na Carta Magna no Título IV Capítulo I.
Como bem observa o tributarista de escol Sacha Calmon, no Brasil, a Constituição apresenta de forma detalhada os princípios e regras relativas ao Direito Tributário, discorrendo de forma minuciosa as normas aplicáveis [1].
Tais princípios existem para proteger o cidadão contra os abusos do poder do Estado. Dentre estes, encontra-se o Princípio da Capacidade Contributiva, ditame moral, preceito orientador do Direito Tributário Brasileiro moderno, que surgiu na Constituição de 1824, e permaneceu dada a sua importância para alcançar a igualdade entre os contribuintes. Neste sentido, vale citar a observação do tradicional doutrinador Ruy Barbosa Nogueira:
O princípio da capacidade contributiva é um conceito econômico e de justiça social, verdadeiro pressuposto da lei tributária. [2]
Trata-se de um desdobramento do Princípio da Igualdade, aplicado no âmbito da ordem jurídica tributária, na busca de uma sociedade mais igualitária, menos injusta, impondo uma tributação mais pesada sobre aqueles que têm mais riqueza.
Não obstante, existem ainda alguns impostos que, devido a técnica de arrecadação utilizada, dificultam a aplicação deste princípio. Os chamados pela melhor doutrina de impostos reais, que abrangem os impostos indiretos, constitucionalmente conceituados como aqueles tributos que comportam a transferência do ônus tributário, e acabam por tributar o consumidor final do produto, sem nenhuma observância à capacidade contributiva do mesmo. Em conseqüência, o contribuinte de jure não é aquele que efetivamente arca com o encargo do tributo, mas esse é assumido pelo chamado contribuinte de fato. Na tentativa diminuir as conseqüências desta transferência e, de certa forma, aplicar o Princípio da Capacidade Contributiva, o legislador criou o Princípio da Seletividade, que, em proporções bem menores, rege a instituição dos impostos indiretos impondo uma mínima observância à capacidade contributiva daqueles que, ao final, pagam o tributo embutido no preço dos produtos adquiridos.
Daí a necessidade de confrontar o Princípio da Capacidade Contributiva com o Princípio da Seletividade, demonstrando o âmbito de atuação de cada um.
O presente trabalho tem como escopo demonstrar a importância da atividade legislativa ao tipificar os fatos tributáveis conjugando o referido princípio na criação dos tributos, o que muitas vezes não vai satisfazer o apetite fiscal do Estado, mas pode ensejar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica. Cumpre frisar também a importância da atividade jurisdicional que, quando provocada, poderá afastar a incidência de leis que não estão compatíveis com os ditames da ordem tributária brasileira. Pretende demonstrar ainda como este Princípio se concretiza, através da progressividade de alíquotas, e da conjugação com Princípios como o da Pessoalidade e Seletividade.
Porque constitui receita ordinária, o tributo deve ser um ônus suportável, um encargo que o contribuinte deva pagar sem sacrifício do desfrute normal dos bens da vida.
Enfim, trata-se de um estudo que pretende analisar o aspecto social da arrecadação dos impostos no Brasil, diante de um sistema que excede a capacidade tributária dos contribuintes, fato este reconhecido pelo ilustre Hugo de Brito Machado, verbis:
É importante, porém, que a carga tributária não se torne pesada ao ponto de desestimular a iniciativa privada. No Brasil, infelizmente, isto vem acontecendo. Nossos tributos, além de serem muitos, são calculados mediante alíquotas elevadas.
Por outro lado, o Estado é perdulário. Gasta muito, e ao fazê-lo privilegia uns poucos, em detrimento da maioria, pois não investe nos serviços públicos essenciais dos quais esta carece, tais como educação, segurança e saúde. Assim, mesmo sem qualquer comparação com a carga tributária de outros países, é possível afirmar-se que a nossa é exageradamente elevada, posto que o Estado praticamente nada nos oferece em termos de serviços públicos." [3]
II - DESENVOLVIMENTO
II.1 – CONCEITO
A Carta Magna Federal prevê no texto do art. 145, §1º, o Princípio da Capacidade Contributiva, assim discorrendo:
Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultando à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
O Princípio da Capacidade Contributiva é o princípio jurídico que orienta a instituição de tributos impondo a observância da capacidade do contribuinte de recolher aos cofres públicos. Neste sentido, vale transcrever os ensinamentos de Ruy Barbosa:
Griziotti propôs como conceito da capacidade de pagar imposto a soma da riqueza disponível, depois de satisfeitas as necessidades elementares de existência que pode ser absorvida pelo Estado, sem reduzir o padrão de vida do contribuinte e sem prejudicar as suas atividades econômicas. [4]
Bernardo Ribeiro de Moraes assim conceitua o referido princípio:
O princípio da capacidade contributiva, pelo qual cada pessoa deve contribuir para as despesas da coletividade de acordo com a sua aptidão econômica, ou capacidade contributiva, origina-se do ideal de justiça distributiva. [5]
Com a aplicação deste princípio haverá tratamento justo, se o legislador considerar as diferenças dos cidadãos, tratando de forma desigual os desiguais impondo o recolhimento de impostos considerando a capacidade contributiva de cada cidadão em separado. O tributo é justo desde que adequado à capacidade econômica da pessoa que deve suportá-lo. Não basta que o imposto seja legal, mister se faz que o mesmo seja legítimo. O eminente doutrinador Sacha Calmon teceu as seguintes considerações:
Por que deve o legislador considerar as disparidades? Para nós, a juridicidade da capacidade contributiva resulta, como vimos, do lado positivo do princípio da igualdade: o dever imposto ao legislador de distinguir disparidades. [6]
A capacidade contributiva a ser aferida é a capacidade subjetiva do contribuinte, a real aptidão de determinada pessoa para recolher ao Fisco. Assim, observa o ilustre mestre Aliomar Baleeiro, na sua obra clássica Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, verbis:
Do ponto de vista subjetivo, a capacidade econômica somente se inicia após a dedução das despesas necessárias para a manutenção de uma existência digna para o contribuinte e sua família. Tais gastos pessoais obrigatórios ( com alimentação, vestuário, moradia, saúde, dependentes, tendo em vista as relações familiares e pessoais do contribuinte, etc.) devem ser cobertos com rendimentos em sentido econômico – mesmo no caso dos tributos incidentes sobre o patrimônio e heranças e doações – que não estão disponíveis para o pagamento de impostos. A capacidade econômica subjetiva corresponde a um conceito de renda ou patrimônio líquido pessoal, livremente disponível para o consumo, e assim, também para o pagamento de tributo. Desta forma, se realizam os princípios constitucionalmente exigidos da pessoalidade do imposto, proibição do confisco e igualdade, conforme dispõem os arts. 145, §1º, 150, II e IV, da Constituição. [7]
Toda pessoa que possui capacidade contributiva possui capacidade para ser sujeito passivo tributário. O tributo é um dever e tem como finalidade captar recursos para os cofres públicos, tem natureza econômica, patrimonial. Os cidadãos devem contribuir para a manutenção do Estado, para que este possa atingir os seus fins, devendo esta contribuição operar-se na medida do possível, na proporção de suas respectivas capacidades. A observância deste princípio resulta na equidade da tributação, ensinamentos já relevantes no final do século XVIII, tendo sua primeira manifestação sido percebida na Declaration des droits, a declaração francesa de direitos, de 1989, e profundamente difundido por Adam Smith.
Trata-se de uma verdadeira limitação ao poder do Estado de instituir tributos, já que é de aplicação imperativa a referida norma constitucional. Assim, sempre que for possível, os impostos deverão ser graduados de forma progressiva em nome da justiça e da igualdade, sob pena de ser instituído imposto juridicamente inválido. Configura-se, enfim, como uma proteção ao contribuinte.
Misabel Abreu Machado Derzi, brilhante atualizadora da clássica obra de Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, teceu a seguinte consideração:
É que a capacidade contributiva é princípio que serve de critério ou de instrumento à concretização dos direitos fundamentais individuais, quais sejam, a igualdade e o direito de propriedade ou vedação do confisco. [8]
Conclui-se, portanto, a grosso modo, que quem tem maior riqueza deve, em termos proporcionais, pagar mais impostos do que quem tem menor riqueza, ou seja, deve contribuir mais para a manutenção da coisa pública. [9]
Vale de transcrever um trecho da obra de Luciano Amaro, que importante colaboração deu à este estudo:
O princípio da capacidade contributiva inspira-se na ordem natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca de água. [10]
A capacidade contributiva é, de fato, a espinha dorsal da justiça tributária. É um critério de comparação que inspira o princípio constitucional da igualdade. [11]
II.2 – CAPACIDADE CONTRIBUTIVA X CAPACIDADE ECONÔMICA
Muitos autores fazem a distinção do conceito de capacidade contributiva e do conceito de capacidade econômica. As referidas expressões, muitas vezes, são usadas de forma geral como sendo equivalentes, todavia as mesmas não se confundem.
O texto constitucional do art. 145, §2º se utiliza da expressão "capacidade econômica", e para Yves Gandra, o constituinte incorreu em um equívoco:
À luz de tal distinção, percebe-se que o constituinte pretendeu, ao mencionar a capacidade do contribuinte, referir-se à sua capacidade contributiva e não à sua capacidade econômica, nada obstante o núcleo comum de ambas, que implica densidade econômica capaz de suportar a imposição. [12]
A diferença entre as duas expressões, para muitos, deve ser enfatizada. Embora ambas constituam a dimensão da capacidade de pagar tributos do contribuinte, as mesmas não se confundem.
A capacidade contributiva, conforme já analisada no item anterior deste estudo, é a capacidade do contribuinte relacionada com a imposição do ônus tributário. É a dimensão econômica particular da vinculação do contribuinte ao poder tributante, ao Estado, de forma geral. [13]
Pressupõe, portanto, uma relação jurídica entre o contribuinte o Fisco, em que este impõe ao primeiro o dever de arrecadar aos cofres públicos, nas medidas de suas possibilidades, ou seja, no limite de sua capacidade contributiva. Existe uma obrigação jurídica de prestação de natureza tributária.
Por sua vez, a capacidade econômica é a exteriorização da potencialidade econômica de uma pessoa em razão de seus rendimentos, independente de sua vinculação ao referido poder. É a aptidão dos indivíduos em obter riquezas, sendo que estas se expressarão através de sua renda, do consumo ou do seu patrimônio. Portanto, tem capacidade econômica todo aquele indivíduo que disponha de alguma riqueza ou de aptidão para obtê-la, de uma forma geral.
Desta feita, entende-se que a capacidade contributiva constitui uma capacidade econômica específica, referindo-se apenas a aptidão do contribuinte de arcar com determinada imposição tributária. Assim, admite-se a possibilidade de uma pessoa tenha capacidade econômica, não ter condições de contribuir com o Fisco.
Um bom exemplo, para elucidar esta distinção, seria daquele cidadão que aufere renda inferior ao mínimo tributável pelo Imposto de Renda, que tem condições de participar da economia, como consumidor, e, portanto, tem capacidade econômica, mas, para fins da tributação sobre a sua renda, especificamente, o mesmo não tem capacidade contributiva, não incidindo o ônus sobre os seus rendimentos.
Somente terá capacidade contributiva aquele indivíduo que tem legitimidade para figurar no pólo passivo da relação tributária firmada em decorrência da exigência de determinado tributo.
A Constituição, entretanto, não reconhece tal distinção, tendo o constituinte, no art. 145, §1º, utilizado a expressão capacidade econômica como sinônimo de capacidade contributiva.
II.3 – PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E PRINCÍPIO DA IGUALDADE
A maior parte da doutrina tipifica o Princípio da Capacidade Contributiva como a aplicação do Princípio Constitucional da Igualdade, previsto no art. 5º, caput da Carta Magna, dentro do âmbito do Direito Tributário.
O Princípio da Igualdade ultrapassa as fronteiras de um simples Princípio constitucional. (...) A idéia de igualdade está vinculada à justiça. A igualdade é o sistema nuclear de todo o nosso sistema constitucional. É princípio básico do regime democrático e do Estado de Direito. [14]
O eminente constitucionalista Alexandre de Moraes faz considerações importantes, que merecem ser transcritas, para auxiliar na ilustração deste estudo:
A Constituição Federal de 1988 adotou o Princípio da Igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito... [15]
Assim, os indivíduos são tratados de maneira que se vejam reconhecidas as suas diferenças, donde lhe será atribuído um tratamento adequado ‘a sua condição desigual.
O nosso sistema constitucional não pode tornar todos os indivíduos iguais, pois as pessoas são notoriamente desiguais. O Direito deve considerar estas desigualdades e atribuir um tratamento desigual entre os cidadãos, de modo a fazer com que os efeitos das desigualdades naturais entre estes sejam minimizados.
Neste sentido, José Maurício Conti analisou a relação entre os dois princípios constitucionais:
Conforme visto anteriormente, o princípio da igualdade visa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade.
Pelo princípio da capacidade contributiva, deve-se tratar cada contribuinte segundo a sua capacidade de arcar com o ônus tributário. Ou seja, é uma das maneiras pelas quais se vai tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais no campo do Direito Tributário.
Desta forma, podemos concluir que o princípio da capacidade contributiva nada mais é do que um desdobramento do princípio da igualdade no sistema constitucional tributário.
A capacidade contributiva vem a ser, portanto, o critério de discriminação adotado para estabelecer as diferenças entre as pessoas, seguindo o raciocínio anteriormente mencionado, desenvolvido por Bandeira de Mello. [16]
Desta forma, o critério que mensura a igualdade ou a desigualdade no campo do Direito Tributário é a capacidade contributiva, critério este legítimo para estabelecer as distinções na forma de tributação, tendo em vista que apresenta-se inteiramente em consonância com o paradigma constitucional.
Conforme já foi anteriormente observado, o princípio da capacidade contributiva é um critério de justiça, que determina a aplicação de alíquotas graduadas segundo a capacidade econômica do contribuinte, critério de discriminação adotado para atingir a finalidade maior de igualdade ou de justiça. Vale transcrever um trecho da obra de Bernardo Ribeiro de Moraes para esclarecer a matéria ora discutida:
Diante do direito tributário, o princípio da igualdade jurídica passa a denominar-se princípio da igualdade jurídica tributária, princípio da igualdade na tributação. Em matéria fiscal, a igualdade de todos perante a lei é entendida como igualdade perante a lei tributária. Gravames tributários iguais devem ser estabelecidos para uma mesma categoria de contribuintes, que se acham em condições ou situações iguais.
E mais adiante, o doutrinador continua:
Em decorrência, diante do princípio da igualdade jurídica tributária, podemos estabelecer as seguintes regras:
(...)
c) a existência de desigualdades naturais justifica a criação de categorias ou classes de contribuintes, desde que as distinções sejam razoáveis e não arbitrárias. A lei, sem perder o seu caráter de universalidade, pode estabelecer distinções dirigir-se a grupos de pessoas, contemplar situações excepcionais em que se pode colocar um número indeterminado de indivíduos. [17]
Para concluir, Marciano Seabra de Godoi analisou a igualdade no campo do Direito Tributário, considerando que o Princípio da Capacidade Contributiva é a concretização de um princípio maior (Princípio Geral da Igualdade), dentro do âmbito do referido ramo do direito, permitindo a distribuição do ônus tributário a partir de um critério justo de igualdade. [18]
II.4 – PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E PRINCÍPIO DA PROGRESSIVIDADE
A forma como o Princípio da Capacidade Contributiva se concretiza é através do Princípio da Progressividade.
Na tentativa de onerar o contribuinte na medida da aptidão do mesmo de recolher aos cofres públicos, as alíquotas aplicadas são graduadas, levando em consideração a percepção de riqueza do cidadão, na tentativa de aproximar ao máximo de sua capacidade contributiva.
Dentro desta análise, Luciano Amaro bem observou a relação entre estas diretrizes:
Outro preceito que se aproxima do princípio da capacidade contributiva é o da progressividade, previsto para certos impostos, como o de renda. A progressividade não é uma decorrência necessária da capacidade contributiva, mas sim um refinamento desse postulado. [19]
A progressividade faz com que as alíquotas dos impostos sejam cada vez mais altas, quanto maior for a riqueza, ou seja, quanto maior seja a capacidade contributiva. Trata-se de um instrumento para alcançar equidade na tributação, objetivo primordial do Princípio da Capacidade Contributiva.
Vale mais uma vez citar um trecho da obra de José Maurício Conti, que procedeu uma análise minuciosa do objeto do presente estudo:
Por meio da progressividade, o percentual do imposto cresce à medida que cresce a capacidade contributiva; haverá, assim, um aumento mais que proporcional do imposto com o aumento da capacidade contributiva. [20]
Alguns doutrinadores teceram críticas severas à este princípio alegando que, se adotados de forma desmedida, pode acabar por desestimular o desenvolvimento daqueles que já se encontram em um patamar mais elevado, tributando com alíquotas elevadas, inibindo o crescimento. Todavia, cumpre ressaltar que a tributação, mesmo que gradativa segundo a capacidade contributiva, deve respeitar o limite do princípio constitucional que veda o confisco, impedindo que o tributo seja imposto de forma tão elevada capaz de gerar um recuo no desenvolvimento.
Nesta linha, conclui o referido doutrinador:
Não obstante existirem veementes críticas, a progressividade há de ser reconhecida como instrumento eficiente e até mesmo inerente ao princípio da capacidade contributiva, e, por conseqüência, da igualdade." [21]
O fundamento da progressividade é o de procurar igualar o sacrifício do ônus fiscal de todos os contribuintes, realizando a capacidade contributiva, impondo uma tributação justa e eqüitativa.
Roque Antônio Carraza, ilustre tributarista, analisou a relação dos dois princípios ora estudados, observando:
É por isso que, em nosso sistema jurídico, todos os impostos, em princípio, devem ser progressivos. Por quê? Porque é graças à progressividade que eles conseguem atender ao princípio da capacidade contributiva.
Melhor esclarecendo, as leis que criam in abstracto os impostos devem estruturá-los de tal modo que suas alíquotas variem para mais à medida que forem aumentando suas bases de cálculo. Assim, quanto maior a base de cálculo do imposto, tanto maior deverá ser a sua alíquota." [22]
Enfim, trata-se de uma relação de interdependência. O princípio da Capacidade Contributiva é um ideal muito bonito, mas de difícil concretização no mundo real. Reside aí a importância da progressividade para a sua realização, atingindo a sua finalidade de tributação justa.
II.5 – PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E PRINCÍPIO DA PESSOALIDADE
O princípio objeto do presente estudo é um ideal de justiça social tributária e apresenta-se atrelado no texto constitucional ao Princípio da Pessoalidade.
O caráter pessoal que deve ser revestido o imposto refere-se à aptidão de poder relacionar-se à pessoa do sujeito passivo da obrigação tributária, considerando a sua condição econômica levando em conta indícios que possam sugerir a existência de riqueza tributável. É uma técnica adotada para aferir a capacidade econômica.
Luciano Amaro observa bem este ponto, ora estudado, discorrendo da seguinte forma:
A personalização do imposto pode ser vista como uma das faces capacidade contributiva, à qual, sem dúvida, o imposto pessoal deve ser adequado. [23]
Em função disso, os financistas costumam classificar os impostos em reais e pessoais. Os impostos pessoais são aqueles em cujas quantificações sejam consideradas as condições pessoais de cada contribuinte, seja na definição da base de cálculo ou da fixação da alíquota. Por sua vez, os impostos reais são aqueles em cujas quantificações levam-se em conta apenas a matéria tributável. [24]
Esta classificação advinda do Direito Romano é considerada por muitos tributaristas obsoleta, e sem aplicação, uma vez que, ao final, a tributação recairá sempre sobre um contribuinte, ou seja, sobre uma pessoa, não existindo, portanto, a referida distinção.
Todavia, em que pese a importância desta crítica, esta conceituação faz-se importante para analisar o alcance do Princípio da Capacidade Contributiva e do Princípio da Pessoalidade em face da ressalva do texto constitucional que dita que "sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte..."
A doutrina se divide acerca da interpretação da expressão "sempre que possível". Alguns entendem que não se trata de mera norma programática, destituído de juridicidade, mas de imposição constitucional, de natureza obrigatória, que vincula tanto o legislador quanto o juiz. Assim, os princípios apenas não serão observados quando realmente não for possível, como é o caso, por exemplo, dos impostos reais, que, para Hugo de Brito, inclui aqueles impostos que, por sua natureza, comportam a transferência do encargo financeiro.
Baleeiro, atualizado por Mizabeu Abreu Machado Derzi, orienta a interpretação do dispositivo, ensinando:
O art. 145, §1º, fala em pessoalidade sempre que possível. A cláusula sempre que possível não é permissiva, nem confere poder discricionário ao legislador. Ao contrário, o advérbio sempre acentua o grau da imperatividade e abrangência do dispositivo, deixando claro que, apenas sendo impossível, deixará o legislador de considerar a pessoalidade para graduar os impostos de acordo com a capacidade econômica subjetiva do contribuinte. E quando será impossível? A doutrina costuma apontar a hipótese dos impostos que são suportados pelo consumidor final, como exemplo de tributação não-pessoal. É que nos impostos incidentes sobre a importação, a produção ou a circulação, o sujeito passivo, que recolhe o tributo aos cofres públicos (o industrial ou o comerciante), transfere a um terceiro, o consumidor final, os encargos tributários incidentes. Torna-se-ia muito difícil, senão impossível, graduar o imposto sobre produtos industrializados ou sobre operação de circulação de mercadoria de acordo com a capacidade econômica da pessoa que adquire o produto ou a mercadoria para o consumo. [25]
Sendo os impostos de natureza pessoal, a aplicação do princípio da capacidade contributiva é simples. Basta que se analisem as condições do sujeito passivo da obrigação tributária para, em função destas qualidades, aferir-se sua capacidade de contribuir e graduar a imposição de acordo com esta capacidade.
Por sua vez, os impostos de natureza real podem causar dificuldades relativamente à aplicação do princípio em questão. Isso porque, conforme se verificou da própria conceituação desta espécie de tributo, a materialidade do fato gerador é indiferente ao sujeito passivo e suas qualidades.
Desta forma, no caso destes impostos, o legislador reconheceu que adequar os impostos à capacidade contributiva do consumidor é um pouco mais complicado, e sua aplicação não será tão concreta e não terá resultados tão justos.
Dado o fato de que alguns impostos não permitem adequadamente a avaliação das características do sujeito passivo, como os impostos de natureza real, que, quer incidindo diretamente, como nos casos dos impostos que atingem o patrimônio, que incidindo indiretamente, como os impostos sobre a produção e circulação de riquezas, dificultam o prévio conhecimento das condições pessoais do contribuinte, verifica-se que o legislador constituinte, pela redação do §1º do art. 145, privilegiou a criação de impostos com caráter pessoal, por reconhecer que estes tendem a atingir melhor a justiça fiscal. [26]
Para Carrazza, a ressalva do §1º do art. 145 é imperativa, não devendo ser encarada como mera diretriz programática, incapaz de produzir efeitos, ensejando a inconstitucionalidade das leis que as afrontem, vinculando, portanto, os legisladores e os juristas. É o que obriga o legislador a buscar soluções para os impostos reais no que tange a persecução do princípio da capacidade contributiva, em função disso, conclui:
Depois, podemos perceber a influência do princípio da capacidade contributiva em outras normas constitucionais tributárias. É o caso da que obriga o legislador a tornar o IPI seletivo em função da essencialidade do produto industrializado (art. 153, §3º, I, da CF), da que declara imunes à tributação por via do ITR os proprietários de glebas rurais (art. 153, §4º, da CF), da que protege da tributação por via de IR os rendimentos provenientes de aposentadorias e pensões recebidos por pessoas com idade superior a 65 anos (art. 153, §2º, II, da CF) etc. [27]
Desta forma, a melhor doutrina entende que a expressão "sempre que possível" está relacionada diretamente apenas à graduação pessoal da imposição tributária, fato este que deveria ter ficado mais explicitado no texto constitucional, uma vez que nem todos os impostos tem natureza pessoal. [28] Não obstante isso, os estudiosos defendem ainda a imperatividade do comando constitucional, da forma como for possível, nos impostos pessoais ou reais.
Conclui-se, portanto, que o elemento literal, não obstante ser indispensável, é absolutamente insuficiente para a interpretação da norma jurídica, deixando o entendimento do comando constitucional do art. 145, §1º um tanto quanto obscuro, permitindo que existam interpretações diversas, e até mesmo opostas deste dispositivo.
Na aplicação da norma constitucional, entende-se, portanto, que "sempre que possível", os impostos terão caráter pessoal, mas o princípio da capacidade contributiva deve ser aplicado "sempre", mesmo quando depara-se com situações mais complicadas como no caso dos impostos reais. Tanto é que o legislador criou uma forma subsidiária, e um pouco menos efetiva, de impor, na criação dos impostos reais que oneram o consumo, uma graduação do valor dos produtos segundo a natureza do bem, criando a seletividade, que impõe que o gravame seja inversamente proporcional à essencialidade do bem.
O que ocorre, na realidade, é que, ao final, o produto será adquirido por todos, pelo mesmo preço, o que torna a seletividade uma forma incompleta ou precária de justiça social.
II.6 – DO ALCANCE DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
No Direito Tributário Brasileiro, a primeira menção ao princípio da capacidade contributiva foi feita no texto constitucional da Carta Magna de 1824, art. 179, §15, verbis:
Art. 179 – (...)
§15 – Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção a seus haveres.
Porém, apenas na Constituição de 1946 é que o mesmo encontrou-se expresso integralmente no texto normativo, no seu art. 202. Todavia, o referido dispositivo foi suprimido na Constituição de 1967. Mesmo assim, alguns ainda defendiam a existência implícita deste princípio, numa interpretação sistemática das normas constitucionais.
Com o fim da ditadura, e a criação da Comissão Constituinte que seria responsável pela elaboração do texto constitucional da Carta Magna Federal que viria a ser promulgada em 05 de Outubro de 1988, a chamada comissão Afonso Arinos, fez constar no anteprojeto o Princípio da Capacidade Contributiva, referindo-se a todos os tributos em geral:
Art. 149 – Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados pela capacidade econômica do contribuinte segundo os critérios fixados em lei complementar.
Com as devidas alterações, o texto constitucional promulgado restringiu aplicação do princípio em questão, impondo a sua observância apenas com relação aos impostos, não mais com relação ‘a todas as espécies de tributos, como no texto original.
Todavia, é importante examinar a possibilidade de aplicação deste princípio com relação aos tributos vinculados, em que o montante arrecadado é aplicado diretamente na atividade prestada pelo Estado como contraprestação ao recolhimento.
Em análise mais concreta, podemos analisar a aplicabilidade desta orientação constitucional com relação às taxas, sejam elas instituídas com fundamento em serviços públicos específicos e divisíveis ou no exercício do poder de polícia, e com relação às contribuições de melhoria.
Hugo de Brito Machado, observando a restrição imposta pelo constituinte, observou:
Em relação às taxas o princípio da capacidade contributiva há de Ter um tratamento específico, distinto do que há de Ter no que pertine aos impostos. Já no que se refere à contribuição de melhoria nos parece evidente que se aplica, pela própria natureza desse tributo, o princípio em estudo. [29]
O fato gerador das taxas, como tributos vinculados que são, decorrem de uma atuação estatal específica e direcionada ao contribuinte, seja através da prestação de serviços ou do exercício do poder de polícia, sendo coerente que a dimensão do fato imponível seja a o valor gasto.
Daí porque não se deve dimensionar a taxa conforme a capacidade contributiva de quem deve pagar. Isso não quer dizer que rigorosamente não observará esta norma constitucional. Todavia, a aplicação do princípio ficou à mercê do bom senso do Ente Tributante competente para cobrar a referida exação.
Por sua vez, no caso da contribuição de melhoria, não vislumbro a possibilidade de aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva uma vez que o valor que será recolhido, nada mais é do que a restituição aos cofres públicos da importância que foi incorporada à sua propriedade, em decorrência de um investimento público.
É cediço que o referido tributo não tem como objetivo custear a obra promovida pelo poder público, mas impedir que o proprietário do imóvel tenha vantagens e valorização do seu bem às custas do dinheiro público. Nada mais justo, portanto, que o contribuinte seja devedor da importância que efetivamente valorizou o seu bem. Se o contribuinte for proprietário de uma pequena casa que tiver uma valorização de 50% (cinquenta por cento) do valor imobiliário originário, o mesmo deve contribuir com este valor. Da mesma forma que o proprietário de uma mansão que sofrer a mesma valorização.
O investimento foi realizado com o dinheiro público, e as obras públicas devem ser destinadas a atender aos interesses sociais. Mas não é justo que um ou outro particular se beneficie, ou que pague menos do que o ganho que obteve, em detrimento de todos os outros cidadãos que contribuíram para arrecadar o valor empregado na obra.
Baleeiro, atualizado por Mizabeu Abreu M. Derzi bem observa a imperatividade do princípio objeto deste estudo quanto aos impostos, fazendo relevantes considerações sobre os tributos vinculados:
A Constituição brasileira, não obstante, adotando a melhor técnica, como alerta F. Moschetti, restringe a obrigatoriedade do princípio aos impostos, conforme dispõe o art. 145, §1º. É que, enquanto a base de cálculo dos impostos deve mensurar um fato-signo, indício de capacidade econômica do próprio contribuinte, nos chamados tributos vinculados – relativos às taxas e contribuições – ela dimensiona o custo da atuação estatal ou a vantagem imobiliária auferida pelo contribuinte, advinda da obra pública. [30]
Desta feita, independentemente de previsão constitucional explícita, o Princípio da Capacidade Contributiva pode ser admitido também com relação à estes tributos vinculados. Embora não seja uma imposição, o mesmo pode ser aplicado como uma orientação, funcionando simplesmente como um princípio de justiça fiscal. Neste sentido, bem observou José Maurício Conti:
"O princípio da capacidade contributiva é aplicável a todas as espécies tributárias. No tocante aos impostos, o princípio é aplicável em toda a sua extensão e efetividade. Já no caso dos tributos vinculados, é aplicável restritivamente, devendo ser respeitados apenas os limites que lhe dão os contornos inferior e superior, vedando a tributação do mínimo vital e a imposição tributária que tenha efeitos confiscatórios. [31]
II.7 – PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E IMPOSTOS REAIS QUE ONERAM O PATRIMÔNIO – IPTU
Conforme já observado, a imposição do Princípio da Capacidade Contributiva com relação aos impostos, nem sempre, é tão simples.
Tal assertiva faz sentido quando levamos em consideração os impostos classificados como reais, classificação esta que abrange os impostos que incidem sobre o patrimônio, e os impostos que comportam uma transferência do encargo tributário, chamados impostos indiretos.
No caso dos impostos que oneram o patrimônio, como por exemplo, o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana - IPTU, Imposto Territorial Rural - ITR, Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis- ITBI, muito se questiona acerca da possibilidade de aplicação da progressividade como forma de alcançar a capacidade contributiva do contribuinte, proprietário do bem.
No caso específico do Imposto Predial Territorial Urbano, muito discutido e ainda controverso nos Tribunais pátrios, a questão tornou-se ainda mais controversa, com a promulgação da Emenda Constitucional n.º29/2000.
Antes das modificações promovidas pela Emenda, o Supremo Tribunal Federal, guardião e interprete maior da Constituição Federal, em decisão proferida no Recurso Extraordinário n.º 153.771-0/MG, interposto pelo hoje Desembargador mineiro José Tarcísio de Almeida Melo, com relação à legislação do Município de Belo Horizonte, Lei Municipal n.º 5.641/89, que instituiu, dentro da sua competência, o IPTU, manifestou-se no sentido de que trata-se de imposto de natureza real, insuscetível de ser graduado conforme a capacidade contributiva do contribuinte, devendo aplicar alíquota única, permitindo a variação apenas no que tange a base de cálculo. Restou, portanto, reconhecida, por maioria avassaladora de votos, a inconstitucionalidade da aplicação de alíquotas progressivas para o IPTU, como revela a ementa de seu acórdão adiante transcrita:
IPTU. PROGRESSIVIDADE.
No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocadamente um imposto real. Sob o império da atual Constituição, não é permitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu art. 145, §1º, porque este imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte que com arrimo na conjugação deste dispositivo constitucional (genérico) com o art. 156, I, §1º (específico).
A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocadamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extra fiscal a que alude o inciso II do §4º do art. 182 é a explicação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no art. 156, I, §1º.
Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no art. 156, §1º aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§2º e 4º do art. 182, ambos da Constituição Federal.
Recurso Extraordinário conhecido e provido, declarando-se constitucional o sub-item 2.2.3 do setor II da Tabela III da Lei 5.641/89, no Município de Belo Horizonte.(STF, RE 153.771, Rel. Min. Moreira Alves, julg. em 20/11/1996)
Apura-se, portanto, que no entendimento do Excelso Pretório, o referido imposto de natureza notoriamente real não seria possível graduar suas alíquotas no sentido de alcançar a capacidade econômica do contribuinte, o que restringia, portanto, a aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva.
Há que se destacar que a progressividade permitida era tão somente aquela que visava o cumprimento da função social da propriedade, como forma de compelir o contribuinte, através de aplicação de alíquotas que aumentariam com o tempo, a dar uma destinação social ao seu bem.
Ainda com base no referido voto do I. Min. Moreira Alves, vale destacar:
Ora, no sistema tributário nacional, é o IPTU inequivocadamente um imposto real, porquanto ele tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado na zona urbana do Município, sem levar em consideração a pessoa do proprietário, do titular do domínio útil ou do possuidor, tanto assim que o Código Tributário Nacional ao definir seu fato gerador e sua base de cálculo não leva em conta as condições da pessoa do sujeito passivo. E mais, no art. 130 estabelece que ‘os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis,..., subrogam-se nas pessoas dos seus respectivos adquirentes, salvo quando conste do título de transmissão a prova de sua quitação’, o que implica dizer que, se não constar do título de transmissão a prova da quitação desses impostos (inclusive, portanto, o IPTU), o sujeito passivo do imposto devido anteriormente à transmissão do imóvel passa a ser o adquirente, o que importa concluir que essa obrigação tributária, nesse caso, se aproxima da obrigação ob ou propter rem, também denominada obrigação ambulatória, porque o devedor não é necessariamente o proprietário titular do domínio útil ou possuidor ao tempo em que ocorreu o fato gerador e nasceu a obrigação tributária, mas pode ser o que estiver numa dessas posições quando da exigibilidade do crédito tributário, circunstância esta que mostra, claramente, que nesses impostos não se leva em consideração a capacidade contributiva do sujeito passivo, até porque, no momento da ocorrência do fato gerador anterior à transmissão, o futuro adquirente não era titular de direito real ou tinha posse para daí se inferir, por presunção, que ele tivesse capacidade contributiva, que obviamente tem de ser aferida quando o fato gerador anterior à transmissão não posteriormente à ele.(RE 153.771-0/MG - grifei)
Não obstante o entendimento firmado acerca da natureza jurídica do imposto em questão, alguns doutrinadores ainda discordavam desta posição, asseverando que o imposto sempre irá incidir sobre a pessoa, o que torna esta classificação obsoleta, e fora da realidade jurídica.
Todavia, com o advento da Emenda Constitucional n.º 29/2000, a questão tornou-se ainda mais controversa. As alterações promovidas no art. 156 da Constituição Federal, trouxeram mais uma vez a baila, um tema que já se encontrava pacificado pelo Colendo STF, tendo em vista que as modificações passaram a permitir, a princípio, que legislador municipal aplicasse alíquotas progressivas para a cobrança do IPTU, levando em conta o valor do imóvel gerador do débito e de sua localização.
As alterações constitucionais promovidas criaram uma série de posições contraditórias dentro da doutrina.
Para Sacha Calmon, pode-se dizer que o IPTU admite a progressividade estribado em duas matrizes, quais sejam, a matriz da política urbana, cujo fundamento constitucional é assegurar a função social da propriedade e a capacidade contributiva do contribuinte que exsurge do art. 145, §1º da Constituição Federal. [32]
O tributarista Hugo de Brito Machado, também compartilha desta opinião, e enxerga na Emenda Constitucional n.º 29/2000 como uma solução para as intermináveis discussões, tendo em vista que agora existe permissão constitucional no sentido de que é possível aplicar alíquotas progressivas de acordo com a localização e o uso do imóvel. [33]
Em contra partida, o Professor Aires Barreto, no que tange as referidas alterações, posiciona-se no sentido de que a Emenda Constitucional n.º29/2000 é inconstitucional uma vez que estaria completamente descompassada com as cláusulas pétreas, mais precisamente no que diz respeito ao Princípio da Capacidade Contributiva. Sustentou o Douto Professor que o Congresso Nacional poderia, no exercício de seu poder constituinte derivado, introduzir emendas à Constituição Federal, entretanto, não poderia alterar substancialmente a área constituída por cláusulas pétreas, e dentre estas estaria aquela que garante aos contribuintes o direito de somente serem submetidos à progressividade de alíquotas em face dos impostos pessoais, disposta no art. 145, §1º, da Carta Magna. [34]
Neste sentido, destaca-se o recente entendimento do Douto Juízo da 1ª Vara da Fazenda Municipal da Comarca de São Paulo, Capital, ao deferir a medida liminar em Mandado de Segurança, nos autos do processo n.º 053.02.002.562-1, decisão proferida pelo MM. Juiz de direito Marco Aurélio Paioletti Martins Costa:
O poder constituinte originário facultou a progressividade do IPTU mas para ‘assegurar o cumprimento da função social da propriedade’ estando implícito em nosso sistema constitucional tributário que impostos reais não podem ser graduados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, conforme tem reiteradamente proclamado o Supremo Tribunal Federal. (...)
Sendo, pois, conflitante com os princípios adotados na Carta Magna o dispositivo da EC 29/2000 na parte que alterou o §1º do art. 156 da Constituição Federal, na qual se baseou o legislador municipal para instituir a progressividade em função do valor venal do imóvel, defiro a liminar, (...).
Esta corrente de doutrinadores, notoriamente, não admite que uma Emenda Constitucional possa alterar a natureza jurídica de um imposto. O IPTU não pode deixar de ser um imposto de natureza real apenas em função das alterações trazidas pela Emenda n.º 29/2000. Consequentemente, estes tributarista entendem que mesmo após a alteração da Constituição Federal pela aludida emenda, é de se impor uma interpretação sistemática, conjugando o art. 156, §1º com o art. 182, §4º, todos da Carta Magna, a fim de que seja levado a efeito, o cumprimento da função social da propriedade, daí porque as alíquotas progressivas do IPTU apenas poderão ser adotadas em caráter extrafiscal, servindo, tão somente como instrumento de política urbana.
Em que pese ter a referida Emenda Constitucional ter sido editada e promulgada sob a pressão dos Municípios Brasileiro, que viam na progressividade fiscal uma possibilidade de aumentar ainda mais a arrecadação dos cofres municipais, entendo que as alterações promovidas constituem um instrumento de redistribuição de riquezas, de justiça fiscal, tendo em vista que as alíquotas progressivas do IPTU permitirão atingir, de uma forma um pouco mais real, a capacidade contributiva do contribuinte.
A progressividade das alíquotas, aliada à variação na base de cálculo permite a justiça social, ou pelo menos, constituem uma boa orientação para chegarmos lá.
II.8 – PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E OS IMPOSTOS REAIS QUE ONERAM O CONSUMO – IMPOSTOS INDIRETOS – IPI E ICMS – PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE
Existe uma categoria de impostos dentro daqueles previstos na Constituição Federal, que são chamados pela melhor doutrina de impostos indiretos. Esta categoria de tributos comportam, por sua natureza, a transferência do respectivo encargo financeiro, conforme definição dada pelo próprio Código Tributário Nacional, no art. 166.
No Direito Tributário Brasileiro, os impostos que comportam esta transferência são, especificamente, o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, de competência privativa da União Federal, nos termos do art. 153, inciso IV da Constituição Federal, e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de competência privativa dos Estados, nos termos do art. 155, inciso II, do mesmo diploma legal.
O que ocorre, na realidade, é que existe um ciclo de industrialização e de circulação dos produtos, concretizando-se vários fatos geradores, criando, consequentemente, várias obrigações tributárias com os respectivos Entes Federados constitucionalmente competentes para exigir o tributo. Somente a título de ilustração, cumpre esclarecer que, para evitar a cobrança de imposto sobre imposto, aplicou-se a técnica de arrecadação do Princípio da Não cumulatividade, e por motivos de praticidade, aplica-se a substituição tributária como forma de arrecadação.
Nesta seguidas etapas, o produtor ou vendedor da mercadoria, que efetivamente realiza o fato gerador, chamado contribuinte legal, embute no valor da mercadoria o imposto que seria devido por ele, e assim, sucessivamente. Desta forma, todos os participantes da cadeia de industrialização ou circulação da mercadoria, impõem ao próximo, a compra da mercadoria no valor de mercado, mais o valor correspondente ao imposto devido, valor este que vai sendo acrescido até a chegada da mercadoria ao consumidor final, chamado de contribuinte de fato, uma vez que ao adquirir a mercadoria ou o serviço paga o valor do bem ou do serviço, mais todos os impostos que seriam devidos pelos produtores, ou vendedores nas etapas de industrialização ou circulação.
Nota-se, portanto, que no caso destes impostos plurifásicos e não cumulativos que oneram o consumo, não existe forma de mensurar a capacidade econômica do contribuinte uma vez que não se sabe quem será o destinatário final do produto ou do serviço.
Como forma de minimizar os efeitos desta transferência do ônus tributário, sem qualquer observância ao Princípio Constitucional da Capacidade Contributiva, o legislador constituinte impôs, somente no que tange a tributação do IPI, a observância do Princípio da Seletividade, que determina que a tributação seja inversamente proporcional à essencialidade do produto que onera.
Assim, quanto mais essencial o produto para a sociedade, menos deverá ser a sua alíquota, e vice-versa.
Cumpre ressaltar que o referido princípio é imperativo somente no que se refere à tributação do IPI, o que não obsta, todavia, que o mesmo seja aplicado quanto ao ICMS, como uma orientação.
Trata-se de uma forma, ainda que precária ou imperfeita, de se aplicar o Princípio da Capacidade Contributiva quanto aos impostos indiretos. Nada mais certo do que impor uma alíquota menor aos produtos que compõem a cesta básica, e uma alíquota bem maior a produtos supérfluos, de segunda necessidade, como perfumes, cosméticos, cigarros, bebidas, etc.
Não se sabe, de fato, que será o verdadeiro contribuinte, mas presume-se que aquele que compra produtos da cesta básica tem menor condições de contribuir com o Fisco do que aquele que compra diversos perfumes e cosméticos variados. O que é aferido é a capacidade para o consumo.
Entretanto, conforme já observado neste estudo, na prática, a capacidade contributiva do contribuinte de fato não poderá ser atingida, pois no momento da aquisição do produto, todos suportam o mesmo imposto, pois o preço é o mesmo. É uma maneira de se amenizar os efeitos de uma tributação arbitrária.
A conhecida obra do saudoso mestre Aliomar Baleeiro, brilhantemente atualizada pela Professora Misabel M. Derzi, traz um techo digno de ser relembrado:
O fenômeno, que estamos referindo, da translação ou da repercussão ocorrente nos impostos ditos ‘indiretos’, exigirá um tratamento especial frente aos dois princípios que estamos pondo em contato e resolver-se-á, exclusivamente, na seletividade de alíquotas ou na isenção dos gêneros de primeira necessidade. É que a capacidade econômica demonstrada por quem tem aptidão para o consumo, somente está disponível para o pagamento de tributos, em se tratamento de consumo de gêneros e produtos de necessidade média, de luxo ou supérfluos. [35]
Ainda sob a análise desta questão, merecem destaque os ensinamentos do Professor Paulo Roberto Coimbra, constantes de sua recente obra:
Quanto à capacidade contributiva, abra-se neste ponto necessário parêntesis para frisar, desde logo, que nos impostos plurifásicos incidentes sobre o consumo, busca-se tributar a renda gasta no consumo. Nestes casos, a capacidade contributiva a ser atingida é a do consumidor final, não se podendo onerar o agente intermediário obrigado a recolher o tributo, seja ele contribuinte de jure ou responsável. O industrial, o comerciante e o prestador de serviços, juridicamente obrigados a recolhê-los, não suportam o seu ônus econômico, mas se esquivam de seu encargo financeiro, repassando-o ao consumidor – contribuinte de facto. [36]
A tributação sob a renda consumida é um alvo da incidência da tributação e a forma de atingir-se a capacidade contributiva do consumidor final é a aplicação da essencialidade, onde tributa-se mais gravosamente bens e serviços mais comumente consumidos por contribuintes de mais alta capacidade contributiva.
Desta forma, não existe razão para desconsiderar-se, no caso dos impostos indiretos, como o IPI e o ICMS, os valores que os princípios constitucionais buscam preservar, a pretexto de que a capacidade contributiva deva ser a do contribuinte legal, ignorando-se o contribuinte de fato. Como forma subsidiária, aplica-se a técnica da seletividade, já que impossível a aplicação direta do Princípio da Capacidade Contributiva.