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Direito de petição e as ações constitucionais

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28/09/2003 às 00:00
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VII – A PETIÇÃO NAS CONSTITIUÇÕES BRASILEIRAS

            Para melhor observarmos o instituto, lançaremos um olhar histórico sobre a petição no Brasil. Analisaremos, superficialmente, em cada Constituição brasileira, o modo como se dispunha a propósito da petição. Cada conteúdo depende das circunstâncias históricas e normativas da época. Não aprofundaremos a particularidade de cada disposição, pois ao nosso trabalho interessa principalmente a relação existente entre as disposições no Brasil e no mundo. Buscaremos tratar agora da linha normativa seguida pelos constituintes no Brasil. Utilizaremos as disposições constitucionais para embasarmos aquela que acreditamos ser a linha seguida.

            VII.1 – Na Constituição Imperial

            Em nossa primeira Constituição, outorgada em 1824, o artigo 179, nº XXX, assim dispunha:

            "Todos cidadãos poderão apresentar por escrito ao Poder Legislativo, e ao Executivo reclamações, queixas ou petições e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo perante a competente autoridade a efetiva responsabilidade dos infratores." (22)

            É possível notar o destino da petição limitado aos Poderes Legislativo e Executivo. Faz-se necessário observar que à época da outorga da nossa primeira Constituição, já havia surgido a teoria de Montesquieu, mas o legislador brasileiro - para atender seus anseios absolutistas – optou pela adaptação de um elemento da obra do pensador franco-suíço Benjamin Constant e acrescentou o Poder Moderador aos outros três. (23)

            Como os Poderes já estavam divididos, já existia Judiciário e, conseqüentemente, a ação. O conteúdo deste dispositivo, numa interpretação irrefletida, põe em risco a nossa idéia de petição como gênero. Mas, a essa altura, a interpretação do significado da petição já estava viciada pelo nascimento das espécies, dentre as quais a ação. A petição já não era o único meio de se dirigir ao Estado. Como se pode entender do dispositivo, não era aquele instrumento que se utilizaria para provocar o Judiciário, maior alvo das demandas.

            Acreditamos haver-se estabelecido esse conteúdo em resultado a uma descriteriosa inspiração nas interpretações constitucionais, não nos textos constitucionais, então dominantes na Europa. Dizemos interpretações porque os textos constitucionais europeus foram várias vezes imitados, mas, como veremos adiante, em nenhum outro dispositivo brasileiro ficou excluída do Poder Judiciário a apreciação da petição. A doutrina é que normalmente e, em nossa opinião, artificialmente faz essa exclusão quando interpreta o sentido das constituições.

            Ao nosso ver, essa disparidade entre a concepção doutrinária e o conteúdo constitucional da petição se deve ao anseio didático doutrinário por delimitar a esfera na qual exerce-se exclusivamente o direito de petição. Obra difícil de ser realizada tendo em vista o caráter geral e, por isso, subsidiário do instituto. Sempre que se provocar o poder público de uma forma não adequada aos padrões existentes, dir-se-á que se estar a exercer o direito de petição. Quando essa forma se tornar comum e receber procedimentos, tramitação e denominação próprios, continuar-se-á a exercê-lo, porém a forma não mais será conhecida por petição e sim pela sua nomenclatura particular.

            Em verdade o que procuramos descrever aqui é o que entendemos ser o processo de descaracterização da petição, isto é, a mudança de nome e o surgimento de novas propriedades que individualizam as espécies da petição, sem, no entanto, extrapolarem o domínio do instituto originário, sem deixarem de ser petição.

            VII.2 – Nas Constituições Republicanas de 1891 e 1934

            Na primeira e na segunda Constituição republicana o conteúdo do instituto petição quase se repete. Em 1891, o artigo 72, parágrafo 9º assim dispõe:

            "É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados." (24)

            Já a Constituição de 1934, em seu artigo 113, nº 10 pronuncia:

            "É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover-lhes a responsabilidade." (25)

            As constituições se expressam através dos termos "representar, mediante petição" para descreverem a provocação do Poder Público. Não mais cometem o erro da Constituição Imperial a respeito dos Poderes aos quais pode ser destinada; dizem "aos Poderes Públicos" em lugar de Poderes Legislativo e Executivo, como havia feito antes. Por certo o conteúdo constitucional continua subjetivo nestas duas constituições. Não se pode dizer, todavia – com base na letra constitucional – que o Poder Judiciário não pode ser destino da petição. O atributo da subjetividade só reforça a generalidade do instrumento petição.

            VII.3 – Na Constituição do Estado Novo

            Paradoxalmente, é na Constituição do Estado Novo, em 1937, que o dispositivo constitucional da petição fala pela primeira vez "em defesa de direitos", até aquele momento função essa implícita no dispositivo. Em seu artigo 122, nº 7 assim prescreve:

            "O direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral." (26)

            Dirigir-se à autoridade para defender interesse geral é também uma novidade trazida à petição pela Constituição de 1937. A partir daí o instituto começa a tomar a forma que atingirá em 1988. Já se percebe a flexibilidade característica do direito de petição: "perante as autoridades", não algumas, pois o dispositivo não restringe, a qualquer delas; "em defesa de direitos", qualquer direito, de interesse particular ou geral.

            VIII.4 – Na Constituição de 1946

            Na Constituição de 1946, em seu artigo 141, parágrafo 37 está assim estabelecido:

            "É assegurado a quem quer que seja o direito de representar mediante petição, dirigida aos Poderes Públicos, contra abusos de autoridades e promover a responsabilidade delas." (27)

            Substitui "as autoridades" por "aos Poderes Públicos" e parece restringir o uso "contra abuso de autoridades". É mais um dispositivo infeliz em sua escrita. Seguindo a literalidade deste dispositivo o direito de petição seria apenas um modo de reclamar ao superior um abuso cometido pela autoridade hierarquicamente inferior. Como quase sempre existe uma denominação específica para este procedimento em cada órgão público – normalmente este procedimento é denominado "representação" – a petição, com esta nomenclatura, entraria em desuso.

            VII.5 – Na Constituição de 1967

            O texto constitucional de 1967 é quase igual ao atual. Diferencia-se por dizer "a qualquer pessoa" em lugar de "a todos", e por não expressar "contra ilegalidade" como fez o texto de 88. Em seu artigo 153, parágrafo 30 está assim escrito:

            "É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direito ou contra abusos de autoridade." (28)

            Apesar de constituído em era de ditadura militar o dispositivo exala liberdade. Por certo seu valor simbólico é extremamente maior do que seu valor jurídico, visto que era praticamente impossível efetivá-lo da maneira como estava prescrito em anos tão conturbados como foram os de chumbo.

            VII.6 – A Constituição Cidadã de 1988

            Essa evolução legislativa permite-nos enxergar o sentido apontado pela legislação Constitucional referente ao direito de petição. O caminho trilhado parte de um dispositivo restritivo, o da Constituição Imperial, para chegar ao mais amplo de todos, o da Constituição de 1988:

            "XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

            a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;" (29)

            Essa visão panorâmica do caminho trilhado pelas constituições nos permite dizer que o constituinte originário retomou, no atual texto constitucional, o melhor conceito do direito de petição, o conceito original, amplo e geral, apto a englobar qualquer provocação aos Poderes Públicos.


VIII – A PETIÇÃO E AS AÇÕES CONSTITUCIONAIS NA CFB DE 88

            Neste capítulo pretendemos fazer um comparativo entre as ações constitucionais e o direito de petição. Buscaremos esposar algumas características comuns aos vários institutos e explicitar alguns indícios da generalidade do direito de petição.

            VIII.1 – Estrutura da Positivação na Carta de 88

            Tanto na previsão constitucional do direito de petição quanto nas das outras ações, o constituinte originário seguiu uma certa "regra" no modo de positivar os institutos. Em primeiro lugar define a legitimidade ativa de cada instituto. Posteriormente, quais os direitos devem ser defendidos através do instrumento sob comento. Por último, estabelece quem pode haver cometido a ofensa a direito, a ser atacada através do instituto constitucional. Buscaremos traçar um paralelo normativo que traga a lume o caráter generalista do direto de petição através da análise de cada uma dessas características.

            VIII.1.1 – A Legitimidade Ativa para os Instrumentos Constitucionais

            Todas as disposições são iniciadas com a delimitação da legitimidade ativa. A lei Maior dispõe "são a todos assegurados" ao se referir ao direito de petição, "qualquer cidadão é parte legítima" ao se referir à ação popular. Quanto ao hábeas corpus, ao habeas data, ao mandado de segurança e ao mandado de injunção, o constituinte originário dispôs, de maneira indireta, sobre a legitimidade ativa. Determinou que direito deve ser assegurado pela ação tratada no dispositivo, por conseguinte, quem possuir o direito, referido pelo texto legal, pode ser sujeito ativo da respectiva ação. Não estamos a esquecer das situações em que não só o sujeito do direito ofendido pode se utilizar da ação – é o caso do mandado de segurança coletivo –, porém também nesses casos o sucesso da ação constitucional beneficiará diretamente a vítima da ofensa a direito. Tal acréscimo no âmbito da legitimidade busca garantir a proteção ao direito de um sujeito que, por qualquer motivo, não possa integrar o pólo ativo da ação constitucional, a exemplo de um doente que não possa redigir um hábeas corpus a ser impetrado contra o hospital que o ofenda em sua liberdade de locomoção.

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            Não por acaso, o âmbito da legitimidade ativa do direito de petição é maior do que todos os outros. A petição, instrumento primário, deveria poder servir a todos, inclusive aos estrangeiros, não só aos cidadãos (caso da ação popular). Desse modo, a lei não poderia fazer restrição aos que desejassem comunicar ao rei algum fato. No que tange à legitimidade ativa, o texto da atual Constituição guarda em seus dizeres esse caráter geral, mais amplo e impreciso, do direito de petição quando prescreve ser ele garantido "a todos".

            VIII.1.2 – Função dos Instrumentos – Direitos Protegidos

            Em geral cada instrumento constitucional visa a proteger uma espécie de direito. No que dispõe a respeito do direito de petição, a Lei Maior estabelece "em defesa de direitos". O habeas corpus serve à proteção de liberdade de locomoção, o habeas data à proteção da auto-informação, o mandado de segurança serve a qualquer direito não atendido pelos dois hábeas, desde que seja líquido e certo. O mandado de injunção protege o exercício não regulamentado dos direitos do artigo 5º (e do restante da constituição) e a ação popular garante a capacidade de atuar como fiscal particular da gestão pública.

            Não há, na literalidade do texto constitucional, nenhuma restrição do foco do direito de petição. Pelo contrário, além de qualquer ofensa a direito, também motiva a petição qualquer ilegalidade ou abuso de poder. Não só as cometidas pelo Poder público, como se poderia pensar, mas qualquer espécie de ilegalidade ou abuso de Poder. Visto que o dispositivo constitucional do mandado de segurança (art. 5º, inciso LXIX), cujo conteúdo faz referência direta: "quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público", nos mostra como se haveria expressado o constituinte originário, referindo-se á petição, se desejasse restringir as autoridades ofensoras.

            Todo esse conteúdo literal, guiado pela vontade de partir do geral para o específico, situado imediatamente antes do que se considera a previsão constitucional da ação (30), qual seja o inciso XXXV do artigo 5º:

            "XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."

            Depois de dizer que a petição é instrumento a ser usado – também – em defesa de direitos, o constituinte originário fixa o Poder Judiciário como apreciador oficial das lesões ou ameaças a direito. Em nossa visão, o dispositivo inicia a especialização da petição. É certo que a petição pode ser direcionada aos outros Poderes Públicos. Não se pode – entretanto – dizer que a petição não poderá ser direcionada ao Judiciário se é instrumento constitucional apto a trabalhar objeto (ofensa a direito) cuja avaliação não pode ser furtada ao este Poder, isto legislado em incisos seguidos, de maneira a facilitar a associação.

            Todos os outros instrumentos limitam-se a movimentar o Judiciário. A petição pode movimentar qualquer dos poderes. Em seu uso atual, o direito de petição possui função subsidiária, ou seja, denomina requerimentos não enquadrados em nenhuma das outras espécies constitucionais, nem mesmo na ação. Como a ação é o instrumento geral para a defesa de direitos no Poder Judiciário, sempre que se for defender direito no âmbito desse Poder, denominar-se-á ação o seu instrumento.

            Isso não significa a inexistência da petição no poder judiciário, pois a defesa de direito é função constitucional deste instrumento, seja perante o Judiciário ou qualquer outro Poder. Nos parece mais acertada a interpretação de que o nome é dado ao instrumento em consonância com a especificidade da demanda. Em todos os casos ocorre petição, mas petição é a denominação geral, e só permanecerá denominando o instrumento – apto a levar a questão ao conhecimento do Poder Público – em caso de não enquadramento do pleito em domínio de outro instrumento mais específico.

            Um litígio referente a um direito de auto-informação retida por um órgão público, por exemplo, é – antes de tudo – uma petição já que é um requerimento ao Poder Público; é também uma ação por ser o Judiciário – dentre os Poderes Públicos – apto a apreciar a demanda; e enseja habeas data por se tratar de direito à auto-informação particular retida em banco de dados público.

            Daí exclui-se de toda defesa de direito perante o Judiciário a denominação originária (petição), apesar de ser – sob o aspecto hereditário – também petição, o instrumento será nomeado genericamente de "ação" por ser esta uma denominação mais específica na medida em que possui destino restrito apenas ao Poder Judiciário.

            VIII.1.3 – Sujeito Ativo da Ofensa a Direito, Ilegalidade ou Abuso de Poder

            No que concerne aos sujeitos ativos da ofensa a direito, ilegalidade ou do abuso de poder, a disposição constitucional referente ao direito de petição merece observação em dois pontos. Num primeiro plano, não restringe o cometimento da ilegalidade ou do abuso de Poder – para poder ser atacado por petição – à autoridade pública, como faz o inciso LXIX referente ao mandado de segurança. Em um segundo observar, nota-se a influência do conectivo "ou" separando as expressões "em defesa de direitos" e "contra ilegalidade ou abuso de poder".

            Para dar motivo ao exercício do direito de petição, o agente não precisa ser autoridade pública ou quem lhe faça as vezes. Se assim o fosse a Lei Maior haveria mencionado, como fez ao tratar do mandado de segurança. Por óbvio a autoridade a quem vai ser direcionada a petição deve ser pública. A petição não precisa ser necessariamente uma ação, se um consumidor indignado com o alto preço do sabonete da única loja de sua cidade encaminha uma petição ao PROCON, este órgão pode tratar e resolver o problema sem chegar à via judicial.

            O hábeas corpus é uma ação judicial, cuja disposição constitucional desta parte é igual à da petição – "ilegalidade ou abuso de poder" –, direcionada à autoridade pública, e pode ter como agente motivador do seu uso (ofensor de direito) um particular, por exemplo, um hospital.

            A ilegalidade ou o abuso de poder, cometidos de maneira isolada, sem que – necessariamente – algum direito seja ofendido, já são motivos suficientes para justificar o uso da petição. Daí a importância do conectivo "ou", estabelecendo um patamar em que se colocam a "defesa de direitos" e a "ilegalidade ou o abuso de poder" como motivos de mesma força para provocar o exercício do direito de petição. Ao contrário do padrão das ações constitucionais, no qual a ilegalidade ou o abuso de poder é sempre o meio pelo qual se perpetra o insulto a direito, objeto a ser defendido pelas respectivas ações, no dispositivo constitucional referente à petição, a ilegalidade ou o abuso de poder não precisa gerar efeitos, ou seja, ultrajar direitos. Sua simples ocorrência é estímulo suficiente para provocar o espírito cidadão de qualquer pessoa a peticionar ao Poder Público responsável. Este aspecto diferencia a petição de quase todos ou outros instrumentos, menos da ação popular, cuja função é levar parte destas ilegalidades ou abusos de poder ao conhecimento do Judiciário.

            A ação popular é, entre as ações constitucionais, o instrumento apto ao exercício judicial da cidadania. Para motivá-la, o direito afrontado não precisa estar diretamente ligado a um particular, pode ser difuso, coletivo ou público. Em muito se aproxima a função da ação popular do que atualmente a doutrina entende por função do direito de petição (31). Diferenciam-se, porém, quanto ao Poder a que se destinam, a ação popular ao Judiciário e a petição – da forma como entendida pela doutrina – aos outros dois Poderes.

            Ao nosso ver é uma pura e simples substituição evolutiva. Enquanto não há designação específica para o instrumento, denominam-no "petição". Aumentando a freqüência do seu uso, dar-se-lhe nomenclatura específica, a exemplo de: ação popular, mandado de segurança, mandado de injunção, etc..., sem, contudo, perder a natureza de petição, qual seja, a de levar ao conhecimento do Poder Público um fato relevante.

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Sobre o autor
Aroldo Max Andrade Vieira

acadêmico de Direito na Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Aroldo Max Andrade. Direito de petição e as ações constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 87, 28 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4257. Acesso em: 25 abr. 2024.

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