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Direito de petição e as ações constitucionais

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28/09/2003 às 00:00
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XIX – ANÁLISE SITEMÁTICA DA FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA PETIÇÃO EM 88

            Neste capítulo pretendemos encontrar a melhor função da petição na constituição de 88, isto é, conceituar o instituto pela descrição do seu papel no ordenamento jurídico constitucional ao qual pertence. Tomaremos por base o conteúdo de outras disposições constitucionais inter-relacionadas. Não pretendemos, todavia, repetir o – em nossa opinião – equívoco de outros autores, qual seja, o de buscar a compreensão das disposições constitucionais limítrofes, para traçar uma fronteira que demarcasse – por exclusão – o âmbito da petição. Pensamos haverem partido da falsa premissa de que há distinção entre a petição e outros institutos de provocação do poder estatal. Ante essa razão, buscaremos demonstrar porque, através da análise das expressões constitucionais, os outros institutos estão inseridos no domínio da petição.

            XIX.1 – Destino da Petição – Significado Constitucional de "aos Poderes Públicos"

            Ao assegurar o direito de pedir para qualquer dos Poderes Públicos, o constituinte originário deixa transparecer o caráter generalista da matéria tratada. O destino constitucional da petição não discrimina nenhum dos poderes, pois em acordo com a origem deste instrumento, o Estado, não como uma parte, mas como um todo ( entenda-se: como toda forma de manifestar poder), é sempre o alvo da petição. Assim melhor se explica a expressão "aos Poderes Públicos", querendo dizer, indistintamente, a qualquer forma de atuação estatal, seja: legislando, julgando ou executando, ainda que indiretamente, pois não há dúvida quanto à administração indireta também emanar poder público em seu desempenho.

            Por um ângulo sistemático, observa-se na constituição mais duas vezes em que a expressão "Poderes Públicos" é utilizada. No inciso II do art. 129, dentre as funções institucionais do Ministério Público, dispõe-se:

            " Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

            II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;"(grifo nosso)

            A disposição contém um termo de difícil delimitação, "respeito", ainda agravado por ser este uma atitude referida a entes abstratos: "Poderes Públicos" e "serviços de natureza pública". Envolve uma postura – de cunho subjetivo – a ser assumida por qualquer dos agentes, Poder público ou particular realizando serviço de natureza pública – frente aos direitos constitucionalmente assegurados. Ao Ministério Público é necessário analisar, de maneira razoável e proporcional, o exercício de qualquer dos agentes citados acima para compreender se daí resulta ou não num desrespeito aos direito constitucionais, ou seja, neste dispositivo há discricionariedade para a atuação do Ministério Público.

            Não obstante o julgamento da conveniência e da oportunidade fique a cabo do parquet, o significado da expressão "Poderes Públicos" não dá margem a imprecisões. Por vezes chamado de quarto poder pela doutrina, o Ministério Público é – em sua natureza – fiscal da atuação, não apenas do executivo, mas de todos os Poderes Estatais. É tanto que, para bem cumprir esse dever, um dos principais motivos da sua existência, recebeu da Constituição alguns poderes ou prerrogativas especiais como as autonomias funcional, administrativa e financeira.

            Quanto ao Legislativo, pode-se dizer que o Ministério Público pratica a fiscalização, por exemplo, quando avalia a constitucionalidade da lei para verificar se é ou não motivo de interposição da ação direta de inconstitucionalidade. Quanto ao poder executivo, por manter uma ligação umbilical, é o mais freqüente campo de trabalho do Ministério público. O Executivo é o poder mais hipertrofiado, o que mais atua, daí estar mais propenso a ferir direitos constitucionais e, conseqüentemente, ser o que mais demanda fiscalização do Ministério Público.

            A atuação do Ministério Público, como custos legis, é facilmente observada em qualquer órgão do Poder Judiciário. Em que consiste a fiscalização da lei nos tribunais senão na inspeção do trâmite processual para saber se a autoridade judicial está a observar as garantias processuais estabelecidas na Constituição? Não nos resta dúvida de que a expressão "aos Poderes Públicos" se refere, também, ao Poder Judiciário.

            O poder fiscalizatório do parquet é tão amplo que extrapola a atuação estatal, chegando a serviços que – embora executados com poder particular – são de "relevância pública".

            Vejamos agora o disposto no caput do art.194 da Lei Maior:

            "Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social."

            Neste dispositivo, porém, o melhor sentido da expressão "Poderes Públicos" não enquadra o Poder Judiciário. Está a tratar de iniciativa de ações de efeito erga omnes como são as "destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social", e o Judiciário atua – em regra (exceções: ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de constitucionalidade e a competência legislativa da Justiça do Trabalho) – inter partes, para decidir apenas os conflitos que até ele são levados, pois a inércia é princípio jurisdicional.

            Esta experiência dos diferentes sentidos constitucionais de um mesmo termo, "Poderes Públicos", nos alerta para a importância de se observar o contexto do dispositivo no qual a expressão está inserida.

            XIX.2 – A Petição e a Isenção de Taxas

            Conforme o inciso XXXIV do artigo 5º da CF, o direito de petição é garantido "independentemente do pagamento de taxas". Assumindo a posição de que a petição é gênero do qual a ação é espécie, não pode haver cobrança de taxas para a espécie enquanto ao gênero é garantida a isenção.

            Dois dos incisos do artigo 5º merecem análise especial, pois tendem a ser interpretados como se prescrevessem indiretamente a existência de taxa judiciária. Vejamos:

            "LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular... ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

            ..................................

            LXXVII – são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania."(grifos nossos)

            No inciso LXXVII garante-se a gratuidade para o uso de duas espécies de ação. Faz pressupor que algum custo, comum ao uso de outras ações, seja dispensado quanto àquelas. Resta descobrir a que valores esse dispositivo faz referência. O inciso LXXIII parece ser mais específico, refere-se à isenção das "custas judiciais". No entanto, prevalece o entendimento segundo o qual toda e qualquer despesa advinda do ajuizamento de uma ação está englobado pelo termo "custas judiciais" do inciso referido, isto é, isenção de custas judiciais é o mesmo que gratuidade.

            Pois bem, o Texto Maior isenta das custas judiciais o autor da ação popular e garante a gratuidade do habeas corpus e do habeas data. O que seria devido em razão do uso de outras ações? De outro modo, que prestações estariam enquadradas na expressão "custas judiciais" usada pelo inciso LXXIII?

            De ordinário, entende-se as custas judiciais como significando emolumentos e taxas judiciárias. Os emolumentos são os valores de contraprestação dos serviços cartorários, enquanto as taxas judiciárias são a contraprestação ao Poder Público pelo provimento jurisdicional. Os emolumentos retribuem serviços específicos e divisíveis prestados por cartórios particulares remanescentes. A tendência é de que todos os cartórios se tornem públicos, cujo custeio não mais caberá aos particulares.

            Vejamos, segundo Plácido e Silva, em que medida os emolumentos diferem das taxas:

            "[...] O emolumento, embora semelhante à taxa, não se pode dizer igual a ela.

            O emolumento é mais a contribuição que se faz exigível como compensação de atos praticados pelo Poder público ou pelo serventuário público, sem revestir propriamente o caráter de um serviço, não tendo o aspecto econômico que é sempre apresentado pela taxa. A taxa sempre se revela o pagamento de um serviço de ordem econômica prestado à pessoa, que, assim, a deve satisfazer. [...]" (32)

            A jurisdição, no compreender do Professor Carlos Ayres Britto, com o qual concordamos, não é um serviço público e sim uma função pública, portanto, não pode motivar taxa. Como consectário, não há de se falar em taxa judicial no contexto constitucional brasileiro presente. Vejamos, nas palavras do professor, porque não existe previsão da taxa judiciária no atual texto da Lei Magna:

            "a) enquanto o Código Político de 1967 incluía na competência legislativa da União Federal a edição de normas gerais sobre "taxa judiciária" e "custas e emolumentos remuneratórios dos serviços forenses" (alínea c do inciso XVII do art. 8° ), a atual Constituição apenas fala de "custas dos serviços forenses" (inciso IV do art. 24); vale dizer, enquanto a velha Constituição consagrava os dois institutos jurídicos (taxa judiciária e custas judiciais), a presente Carta já não consagra senão um deles (custas forenses);

            b) no silêncio do Estatuto Fundamental de 1988 sobre taxa judiciária, impossível se torna sustentar a sobrevivência dessa antiga figura tributária, pela clara razão de que taxa judiciária é matéria que não corresponde aos pressupostos que a presente Constituição estabeleceu para a imposição de toda e qualquer taxa: exercício do poder de polícia, ou utilização efetiva ou potencial de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à disposição dele (inciso II do art. 145). Conforme, aliás, muito bem explica o parecer da lavra do Dr. THEOPHILO MANSUR;

            c) cobrar da população uma taxa remuneratória de atividade estatal genuína e exclusiva - como é a atividade jurisdicional - seria discriminar o Poder Judiciário em face dos demais Poderes. Afinal, para fazer o que lhe é conatural (legislar), o Poder Legislativo não cobra taxa. Também assim o Poder Executivo quanto às suas funções tão genuína quanto exclusivamente estatais (FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA, DIPLOMACIA, FORÇAS ARMADAS, SEGURANÇA PÚBLICA, SISTEMA PENITENCIÁRIO, etc). Tudo é suprido ou custeado pela arrecadação proveniente dos impostos em geral e não há por que o Judiciário fugir à regra." (33)

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            Desse modo interpretado, o conteúdo da expressão "custas judiciais" do inciso LXXIII do artigo 5º da Letra Magna não engloba a taxa judiciária, mesmo porque não mais existe, para a CF de 88, esta espécie tributária. Assim como também não existe a aparente contradição entre a isenção de taxas para o gênero (a petição) e previsão para a espécie (a ação), já que as únicas prestações referidas pelo termo "custas judiciais", das quais é isenta a ação popular, são os emolumentos devidos aos serventuários de cartórios particulares.

            Obviamente a não cobrança de taxas vai de encontro às práticas cotidianas do Judiciário brasileiro. Se parece difícil, diante do quadro financeiro atual, sustentar um Poder Judiciário sem a renda obtida pelas taxas judiciárias, vem ao nosso socorro o ato do ministro da justiça Francês na década de 70:

            "[...] num esforço dramático para tornar o acesso aos tribunais menos oneroso na França, seu Ministro da Justiça anunciou em 1º de setembro de 1977 que, a partir do ano seguinte, todas as custas judiciais seriam eliminadas." (34)

            Segundo o Jornal LE MONDE:

            "Ainda que se estime que o estado perderá através dessa reforma 158 milhões de francos, (aproximadamente 34 milhões de dólares), o custo atual do recolhimento dessas taxas, na realidade, excede o seu montante. Além disso, acredita-se que a reforma impedirá que os funcionários percam tempo impondo multas , as quais, por isso mesmo, podem ser consideravelmente aumentadas." (35)

            Entendemos como indevida cobrança de taxas, por ser instituição - assim como o conceito de petição limitado - incoerente com o atual ordenamento jurídico constitucional.


X - CONCLUSÃO

            A história demonstra que o direito de petição é muito mais antigo e amplo do que qualquer outro meio de se comunicar com Estado. Dele se originaram as ações, representações, reclamações e outras formas de provocar a atuação do poder estatal.

            O direito de petição é a liberdade de qualquer indivíduo manifestar sua opinião ao Estado, obrigando-o a apreciá-la através de processo judicial ou de outro modo estabelecido.

            O direito de petição é gênero do qual todas as outras formas de se comunicar com o Estado são espécies. Foi o primeiro instrumento de comunicação estabelecido e precisava, por ser o único, abarcar qualquer tipo de demanda em seu conteúdo. Daí a generalidade das suas disposições. Todas as outras formas de chamar a atenção do Estado já foram chamadas de petição, com a freqüência dos seus usos estabeleceu-se, para cada uma, nomenclatura própria sem, no entanto, perderem a natureza peticional.

            O dispositivo constitucional brasileiro não difere dos de outros países quanto ao caráter de generalidade com que estabelece o direito de petição. Todavia, a doutrina e a legislação infraconstitucional insistem em sustentar a limitação desse direito, normalmente não permitindo que seja exercido perante o Poder Judiciário.

            A análise do sistema constitucional brasileiro reforça a hipótese de que a petição é gênero. Através do local em que foi estabelecida no Texto Magno, nota-se que a petição é anterior a qualquer outro tipo de ação. Os termos utilizados pelo constituinte originário não permitem excluir nenhuma demanda do âmbito peticional. Só a doutrina e a legislação infraconstitucional é que, no nosso entender artificialmente, fazem essa limitação.

            Ao que pensamos, o desvirtuamento do que se compreende por petição é gerado pela consideração de uma premissa falsa, qual seja a de encarar a ação como uma espécie totalmente nova, surgida com o nascimento do poder judiciário independente. Apesar de o exercício do direito de petição ser, em tempos anteriores à divisão de poderes, o meio de requerer do Estado uma solução judicial, coisa que hoje se faz através da ação.

            A petição é garantida independentemente do pagamento de taxas. Se não pode haver previsão de taxas para o gênero, também não pode para as espécies, dentre as quais a ação judicial. Consoante o estudo do professor Carlos Britto, a Constituição não faz nenhuma menção à taxa judiciária, nem poderia frente ao conceito que estabeleceu para taxa e ao melhor entendimento do conceito de serviço público.

            Por fim a petição é, em seu sentido coerente, um direito natural, ramo da liberdade de expressão direcionado ao Estado. Instrumento a ser utilizado como meio de se evitar a desobediência civil, por permitir ao Estado, através do conhecimento da situação particular do governado, estabelecer um norte para a sua atuação, seja legislando, executando ou jurisdicionando.

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Sobre o autor
Aroldo Max Andrade Vieira

acadêmico de Direito na Universidade Federal de Sergipe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Aroldo Max Andrade. Direito de petição e as ações constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 87, 28 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4257. Acesso em: 19 abr. 2024.

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