CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Segundo os dicionários da língua portuguesa, improbidade significa ruindade, maldade, ausência de ética, atuação contra a ordem moral vigente na sociedade. No direito público, em um sentido mais abrangente, improbidade é a violação de todo e qualquer princípio que rege a atuação pública. De fato, a positivação deste conceito na legislação pátria considera improbidade qualquer atuação que não respeite os princípios estruturantes da atuação estatal[1].
A busca de maior rigor na gestão da coisa pública e a crescente demanda social pelas prestações estatais reforçam o papel do controle da probidade como fundamental para tal intento. Ideal e mais eficiente (no sentido social e econômico) seria o controle preventivo, exercido por ouvidorias, pela atuação do Ministério Público, pela edição e efetivação de códigos de ética da administração pública, e até pelas auditorias prévias realizadas pelos Tribunais de Contas.
Entretanto, o controle repressivo ainda é efetivo para combater atos de improbidade, na medida em que aplica sanções. O Poder Executivo reprime condutas ímprobas por meio de processos disciplinares. Se o ato é funcional, será a improbidade apurada e sancionada com base no estatuto funcional.
O Poder Legislativo também faz o controle repressivo, com auxílio dos Tribunais de Contas. E o Poder Judiciário exerce o controle repressivo quando provocado, por meio, por exemplo, de ação de improbidade administrativa, regida pela Lei 8429/92.
A LIA é apenas parte do esforço da sociedade em combater a corrupção tão enraizada em nossa cultura. Outros meios legais tentam cobrir qualquer atuação que fira os princípios da administração pública. Segundo Rafael Oliveira[2], há na verdade um sistema brasileiro de combate à corrupção, onde constam, além da LIA, a Lei Complementar 64/90 (alterada pela Lei Complementar 135/10), a Lei 1079/50, o Decreto-Lei 201/67, e recentemente a Lei 12.846/13.
É na aplicação da LIA que debate-se um tema deveras controvertido na doutrina e na jurisprudência: o agente político pode ocupar o polo ativo na ação de improbidade adminstrativa? Aliado a esta questão, questiona-se também o seguinte: no exercício de qual função, adminstrativa, legislativa ou judiciária, deve o agente político responder perante a Lei de Improbidade Administrativa?
AGENTES POLÍTICOS E A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
As questões propostas acima ganham importância atualmente pelos recentes fatos envolvendo os agentes políticos no exercício de suas funções, em especial ao que se denominou de “pedaladas fiscais”, presente, em tese, em diversos entes federativos.
O grande problema é que a Constituição Federal não foi categórica em relação aos agentes políticos, inexistindo decisão final por parte do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
O aparente conflito surge da análise dos artigos 37, parágrafo 4º, e do artigo 85, V, ambos da CRFB/88. Pela literalidade deste último artigo, os agentes políticos devem ser responsabilizados pela improbidade de acordo com a lei especial que versa sobre o crime de responsabilidade. É o entendimento do Supremo Tribunal Federal[3].
Parte da doutrina admite a aplicação concomitante da lei de improbidade e da lei de crime de responsabilidade para os agentes políticos, cada qual seguindo seu rito próprio. Pela LIA, o julgamento e processamento serão feitos pelo Judiciário. O crime de responsabilidade poderá ser julgado pelas Casas Legislativas para alguns agentes políticos. Não há o que se falar em bis in idem, pois as sanções da LIA são cíveis e as sanções da lei de crimes de responsabilidade são fundamentalmente políticas.
O Superior Tribunal de Justiça, acompanhado majoritariamente pela doutrina, somente diverge em relação ao posicionamento anterior no que se refere ao julgamento da improbidade pelo juiz: não é possível a aplicação das sanções de perda do cargo e de restrições aos direitos políticos. Estas sanções foram expressamente previstas na Constituição Federal com base no crime de responsabilidade, com julgamento realizado pela Casa Legislativa. Ou seja, sanções políticas, pelo tratamento especial dado pela Constituição Federal, só podem ser aplicadas com base na lei de crime de responsabilidade[4]. Um precedente pedagógico do STJ é reproduzido abaixo[5]:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO AÇAO CIVIL PÚBLICA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EX-PREFEITO APLICAÇAO DA LEI 8.429/1992 COMPATIBILIDADE COM O DECRETO-LEI 201/1967 NOTIFICAÇAO DE DEFESA PRÉVIA ART. 17, 7º, DA LEI 8.429/1992 PRESCINDIBILIDADE NULIDADE DA CITAÇAO INOCORRÊNCIA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE CERCEAMENTO DE DEFESA NAO-CONFIGURADO FUNDAMENTAÇAO DEFICIENTE NAO-CONFIGURADA VIOLAÇAO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL IMPOSSIBILIDADE SÚMULA 284/STF.
1. Trata-se, originariamente, de ação civil pública ajuizada contra Carlos Roberto Aguiar, ex-Prefeito de Reriutaba/CE, por não ter o mesmo emitido, no prazo de 60 dias, a prestação de contas final da aplicação dos recursos repassados pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, no valor de R$ 66.645,00, o qual se destinava à construção de um centro para instalação de unidades produtivas de beneficiamento de palha, confecção de bordado e corte e costura.
2. Não há qualquer antinomia entre o Decreto-Lei 201/1967 e a Lei 8.429/1992, pois a primeira impõe ao prefeito e vereadores um julgamento político,enquanto a segunda submete-os ao julgamento pela via judicial, pela prática do mesmo fato.
3. O julgamento das autoridades que não detêm o foro constitucional por prerrogativa de função para julgamento de crimes de responsabilidade , por atos de improbidade administrativa, continuará a ser feito pelo juízo monocrático da justiça cível comum de 1ª instância.
4. A falta da notificação prevista no art. 17, 7º, da Lei 8.429/1992 não invalida os atos processuais ulteriores, salvo quando ocorrer efetivo prejuízo. Precedentes do STJ.
5. Está preclusa a discussão sobre alegada falsidade na assinatura de ciência do mandado citatório do réu, em razão do decurso de prazo, sem recurso, da decisão emincidente de falsificação.
6. É competente a Justiça Federal para apreciar ação civil pública por improbidade administrativa, que envolva a apuração de lesão a recursos públicos federais.Precedentes.
7. Não ocorre cerceamento de defesa por julgamento antecipado da lide, quando o julgador ordinário considera suficiente a instrução do processo.
8. É incabível, em recurso especial, a análise de violação de dispositivoconstitucional.
9. Inviável a apreciação do recurso por ofensa aos arts. 165 e 458 do CPC(fundamentação deficiente), em razão de alegações genéricas. Incidência, por analogia, da Súmula 284/STF.
10. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.
Contudo, mesmo dentre aqueles que seguem o posicionamento do STJ, não está pacificada a discussão em relação a qual função exercida pelo agente político se adequa o conteúdo da LIA. O entendimento pro societatis é no sentido de que qualquer ato administrativo que ofende os artigos 9°, 10 e 11 da Lei 8.429/1992 configura ato de improbidade administrativa, independentemente da classificação que se queira dar ao referido ato, se de natureza administrativa, política ou legislativa.
Esta questão surgiu no momento em que, no bojo de uma ação de improbidade, em primeira instância, alegou-se que o simples fato de o agente estar no exercício de função legislativa (no caso concreto, um vereador falsificou documentos de um processo legislativo) o excluia das sanções da LIA. Este foi o entendimento da justiça de primeira instância.
Reforçando o entendimento pro societate, em busca da construção de uma Administração mais alinhada com a moralidade e a probidade, o STJ ratifica o entendimento de que, se as condutas dos agentes políticos se enquadram nos tipos previstos nos artigos 9°, 10 e 11 da LIA, então, independente de qual função, seja administrativa, legistativa ou judicária, o agente político é alcançado pela LIA. De fato, é o que explicita o acórdão da Ministra Eliana Calmon:
(...) Mas, qual o alcance da LIA? Quem se submete a esse Código de Conduta? Ainterpretação dos arts. 1º, 2º e 3º permite afirmar ter o legislador adotado conceito de grande abrangência no tocante à qualificação de agente público submetido a referida legislação, a fim de incluir na sua esfera de responsabilidade todos os agentes públicos, servidores ou não, que incorram em ato de improbidade administrativa.
Nesse diapasão, os agentes políticos, conforme posição doutrinária dominante,estariam incluídos no regime da Lei 8.429/1992, a partir da definição de "agente público", prevista no seu artigo 2º, in verbis :
Art. 2º Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior. (grifei).
Ora, se a Lei define como agente público para fins de submissão da LIA aqueles que exercem cargos "por eleição" ou "mandato", por que afastar todos os agentes políticos, pelo simples fato de já estarem eles submetidos a normas específicas por crime de responsabilidade? Se assim fosse, inúteis seriam as expressões da lei.
Seguindo o mesmo raciocínio, seria incoerente reconhecer a submissão da LIA aos agentes que exercem cargos "por eleição" ou por "mandato", e ao mesmo tempo afastar os atos supostamente praticados pelos que exercem funções legislativa e jurisdicional.
Entendo ser a Lei de Improbidade Administrativa aplicável para responsabilizar os atos praticados na função administrativa, sejam os praticados por agentes públicos, bem como por particulares, nas funções legislativa ou jurisdicional, desde que tais condutas se enquadrem nos tipos previstos nos seus arts. 9º e seguintes.
CONCLUSÃO
O STJ deu mais um importante passo, com o fim de consolidar o entendimento em direção à efetiva aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos atos ímprobos praticados pelos agentes políticos.
Num primeiro momento, ratificou o entendimento doutrinário da não isenção do agente político das sanções presentes na LIA, salvo a aplicação de perda do cargo e de restrições aos direitos políticos.
A inovação recente do STJ, em favor da sociedade, é que o agente político também responde, mesmo que durante o exercício das funções legislativa e judiciária, caso pratique condutas tipificadas na LIA. Adotar entendimento contrário seria retroceder na busca pela maior efetividade dos instrumentos de controle da probidade.
Notas
[1] Artigos 9°, 10 e 11 da lei 8429/1992, por exemplo.
[2] OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Gen Método, 2015
[3] Reclamação 2138/DF.
[4] Com base nessa tese, um juiz de 1º grau poderia condenar o Presidente da República.
[5] REsp 1034511/CE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/09/2009, DJe 22/09/2009.