Artigo Destaque dos editores

Índios, pedágio,diamantes e a teoria do bom selvagem de Rousseau

25/04/2017 às 13:20
Leia nesta página:

Comenta-se a situação jurídico-penal do silvícola, à luz da Constituição e da Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio), diante das questões envolvendo cobrança de pedágio e extração ilegal de diamantes em reserva indígena.

Há algum tempo, foram veiculadas na mídia nacional duas notícias, tão curiosas quanto trágicas, relacionadas à participação de indígenas em ações criminosas. E antes que interpretações equivocadas surjam, esclareça-se que o objetivo aqui não é fazer apologia à notória e temerária frase “um índio bom é um índio morto”, dita por Philip Henry Sheridan, general do exército americano que lutou na Guerra de Secessão, de 1861 a 1865, e nas primeiras Guerras Indígenas[1], que se estenderam de 1778 a 1890 nos Estados Unidos. A principal finalidade desse texto é traçar alguns comentários pertinentes às duas situações, sob os pontos de vista do direito penal e do direito constitucional.

Assim, passemos à análise dos casos:

O primeiro deles diz respeito à cobrança de pedágio levada a efeito por índios da etnia Enawenê-nawê na BR-174, no Estado do Mato Grosso.           

Como sabemos, pedágio é tarifa paga por condutor de veículo automotor a um órgão, entidade da Administração Pública ou empresa privada concessionária (forma mais comum), em troca do livre direito de trafegar por determinada via de transporte terrestre. Sua finalidade é custear a conservação das vias de transporte.

Nesse sentido, o STF:

Natureza jurídica do pedágio: “O pedágio é tarifa (espécie de preço público) em razão de não ser cobrado compulsoriamente de quem não utilizar a rodovia; ou seja, é uma retribuição facultativa paga apenas mediante o uso voluntário do serviço. Assim, o pedágio não é cobrado indistintamente das pessoas, mas somente daquelas que desejam trafegar pelas vias e somente naquelas em que é exigido esse valor a título de conservação”. (STF. Plenário. ADI 800/RS, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 11/6/2014).

Mas, se o valor é cobrado a título de custeio das despesas com a conservação das vias de transportes terrestres, qual conservação ou melhoria está sendo posta em prática na BR-174? Pelas notícias transmitidas, nenhuma. Cuida-se, portanto, de inconfundível privatização de rodovia federal em proveito próprio, tendo em vista que os cobradores do pedágio são proprietários de caminhonetes de luxo importadas (supostamente produtos de furtos), adquiridas com o dinheiro arrecadado sob o pretexto de que a referida BR corta terras indígenas.   

A situação, que, por si só, já seria absurda, agrava-se ainda mais com a ocorrência de um sequestro seguido por dois homicídios, alegadamente praticados por três membros da etnia Enawenê-nawê, contra dois rapazes que teriam se recusado a efetuar o pagamento, de acordo com informações da Polícia Federal, responsável pelas investigações.

O segundo caso trata da exploração ilegal de diamantes no interior da Reserva Indígena Parque do Aripuanã, entre os Estados do Mato Grosso e Rondônia, de usufruto da etnia indígena Cinta Larga. A extração das pedras preciosas era feita por uma organização criminosa bem estruturada, formada por advogados, empresários, comerciantes, garimpeiros e indígenas, através de uma cooperativa e de uma associação. O dano ao meio ambiente provocado pelas escavações é tão extenso, que imagens aéreas da região dão a impressão de que uma imensa ferida foi aberta no ventre da mata virgem. E de fato foi. 

A operação da Polícia Federal foi deflagrada em Brasília e em nove Estados da federação: Rondônia, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Mato Grosso e Pará. Os investigados, inclusive os indígenas, seriam responsáveis pelos crimes de extração de recursos minerais sem autorização, dano a unidade de conservação, usurpação de bem da união, receptação, organização criminosa, associação criminosa e lavagem de dinheiro.

Diante das duas situações, conveniente se faz a análise da inimputabilidade do silvícola à luz dos preceitos do Direito Penal. O art. 26 do Código Penal Brasileiro isenta de pena o agente acometido de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou se ao tempo da ação ou omissão era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito da sua conduta, ou ainda incapaz de se autodeterminar de acordo com o entendimento que possuía. Logo, constata-se que o Código Penal adota o critério biopsicológico para verificação da imputabilidade do sujeito ativo.

Na preciosa preleção de Mirabete e Fabbrini (2015, p. 153; p. 154) “a imputabilidade é a aptidão para ser culpável, pressuposto ou elemento da culpabilidade; imputável é aquele que tem capacidade de entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento”.

Seguindo esse raciocínio, certos aspectos relacionados, particularmente, aos crimes praticados pelos índios devem ser elucidados: pela regra contida implicitamente no art. 4º da Lei 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), a imputabilidade ou inimputabilidade estarão relacionadas às condições em que vivia: se isolado, em vias de integração ou totalmente integrado à vida em comunhão nacional, consoante os incisos I, II e III, respectivamente.

Os índios isolados são aqueles que vivem em grupos desconhecidos ou dos quais poucas informações são registradas, pois conservam no todo a vida nativa, em meio à selva e, por conseguinte, afastados do “homem branco”. Os índios em vias de integração estão em contato descontínuo ou permanente com o progresso, e embora conservem parcialmente as condições da vida nativa, “aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento”. Por fim, os integrados estão plenamente incorporados à vida em nosso meio social e em pleno exercício dos direitos civis, muito embora possam conservar usos, costumes e tradições inerentes à sua cultura.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Desse modo, somente o indígena integrado à vida em comunhão nacional será considerado imputável, porquanto os isolados não possuem condições para compreender, mesmo que vagamente, as normas do nosso ordenamento jurídico. Ademais, serão semi-imputáveis aqueles divididos entre o convívio na tribo e na sociedade não índia. Contudo, para a constatação da integração à vida civilizada, será necessária a realização de avaliações psicológicas ou antropológicas, como assevera Masson (2014, p. 1291): “os silvícolas (...) nem sempre serão inimputáveis. Depende do grau de assimilação dos valores sociais, a ser revelado pelo exame pericial”. Nada obstante, em alguns casos, esses exames poderão ser dispensados, segundo as preleções de Nucci (2014, p. 703), em menção à jurisprudência do STF: “inexiste razão para a realização de exames psicológico ou antropológico se presentes, nos autos, elementos suficientes para afastar qualquer dúvida sobre a imputabilidade de indígena, sujeitando-o às normas do art. 26 e parágrafo único do CP”.

Destarte, com base nas informações veiculadas pelos meios de comunicação, resta evidente que os referidos indígenas estão sobejamente habituados à vida “civilizada”, dispensando os aludidos exames psicológicos e antropológicos.

Aspectos penais à parte, o Estatuto do Índio, consoante dispõe o seu art. 1º, “regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. No entanto, tal integração do índio com o “homem branco” nem sempre se mostrou positiva, como revela a história e à vista dos fatos aqui narrados.

Segundo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão oficial do Estado brasileiro, cuja missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil, atualmente existem mais de cem registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal.

Esse isolamento, no mais das vezes proposital, conforme demonstram registros históricos, procede de encontros prejudiciais às suas sociedades, pois acarretaram doenças, atos de violência física, despojo de seus recursos naturais e territórios, e, portanto, significam uma ameaça real às suas vidas, seus direitos e à continuidade histórica do seu grupo étnico cultural.

De mais a mais, essas comunidades vivem em estado de autossuficiência social e econômica, suprindo suas necessidades sociais, materiais ou simbólicas em seu próprio habitat natural. Nesse estado, obviamente não há necessidade de dinheiro, bens materiais e conveniências tecnológicas, porquanto a vida segue no estado mais puro do ser humano, em harmonia com o próximo e em sintonia com o meio ambiente.

Nesse contexto, impossível não trazer à baila a “teoria do bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau: o homem é naturalmente bom, nasceu bom e livre. O mal deriva da sociedade e sua organização estrutural que impõe a servidão, a escravidão e a tirania por meio de leis e valores deturpados que privilegiam as elites, em prejuízo dos mais fracos, instaurando desse modo a cobiça e a desigualdade entre os homens.

O art. 231 da Carta Magna reconhece a organização social, os hábitos, os costumes, as tradições e as diferenças culturais dos povos nativos do Brasil, sejam eles isolados, em processo de integração ou integrados, garantindo-lhes o direito de manter sua cultura e identidade. O mesmo artigo também incumbe ao Estado brasileiro o dever de protegê-los. No mesmo plano versa o art. 2º do Estatuto do Índio.

Infelizmente, apesar de toda preocupação legislativa, não foi possível resguardar os Enawenê-nawê e os Cintas Largas do contágio do mal que, certamente, destruirá o planeta: a ganância do “homem civilizado”. 


Nota

[1] Apesar de nenhuma guerra ter sido oficialmente declarada pelo congresso dos Estados Unidos, o exército participou ativamente nessas guerras contra os povos nativos a partir de 1778. Vale notar que os nativos visavam defender seu espaço vital dos invasores. Fonte: Wikipédia.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

BRASIL, Lei 6.001 de 19 de Dezembro de 1973.

MASSON, CLEBER. Direito penal esquematizado: parte geral: volume 1. 8 ed. São Paulo: Método, 2014.

MIRABETTE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Código penal interpretado. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 14 ed. rev. amp. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

PEDÁGIO possui natureza jurídica de TARIFA (preço público). Pedágio NÃO é taxa. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br> Acesso em 20 de dezembro de 2015

PF aponta 3 índios como suspeitos de homicídio em aldeia de Mato Grosso. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia> Acesso em 16 de dezembro de 2015.

PF faz operação contra exploração de diamantes em terras indígenas. Disponível em http://g1.globo.com/mato-grosso> Acesso em 12 de dezembro de 2015.

Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. Disponível em: http://www.funai.gov.br> Acesso em 21 de dezembro de 2015.

Jean-Jacques Rousseau (2). O homem é bom por natureza. Disponível em: http://educacao.uol.com.br> Acesso em 21 de dezembro de 2015.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Robson Souto

Servidor do TJSE, autor de obras jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUTO, Robson. Índios, pedágio,diamantes e a teoria do bom selvagem de Rousseau. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5046, 25 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45477. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos