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Considerações sobre a responsabilidade civil dos provedores de conteúdo de Internet

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02/04/2016 às 12:32
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O Marco Civil da Internet surgiu como um instrumento legal cuja forma e conteúdo pretendem contribuir para a construção de uma sociedade mais cidadã, apresentando soluções e diretrizes para o uso da Internet e a proteção dos direitos dos usuários.

Sumário: Introdução. 1. A responsabilidade na Internet e a jurisprudência do STJ. 2. Responsabilidade civil por conteúdo postado por terceiros e o Marco Civil da Internet. Conclusão.


Introdução

Apelidado de “Constituição da Internet”, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) veio para ocupar uma lacuna na legislação brasileira definindo direitos e responsabilidades relativas à utilização da Internet, tendo se tornado referência em outros países do mundo não apenas por seu conteúdo inovador, mas também por ter sido submetido a um amplo processo participativo de discussão e elaboração.

Um dos pontos sistematizados no Marco Civil foi a questão da responsabilidade dos prestadores de serviços de Internet, como as empresas responsáveis pela conexão do usuário ou provedor de conteúdo, por exemplo, pelo conteúdo postado por usuários, trazendo um particular sistema de responsabilização, cujos contornos serão neste breve ensaio debatidos.


1. A responsabilidade na Internet e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

O surgimento e a ampliação da acessibilidade das pessoas a novas tecnologias de informação e de comunicação eletrônica, especialmente a Internet, provocaram significantes alterações nas relações humanas. Tecnicamente falando, a Internet consiste em um sistema interligado de milhares de dispositivos do mundo inteiro, interconectados mediante protocolos que utilizam o mesmo padrão de transmissão de dados, permitindo a multicomunicação com transmissão de textos, vozes e imagens. [1] 

Pois bem. A popularização do acesso e o barateamento dos dispositivos eletrônicos, aliados à versatilidade do sistema - que absorveu inúmeras atividades antes realizadas na vida material -, permitiu o encurtamento das distâncias com maior eficiência de custos e a difusão vertiginosa do uso da Internet, consolidando-a como o principal veículo de comunicação na sociedade contemporânea.

Como nunca visto, as pessoas foram liberadas para atuar, interagir e se desenvolver de forma ampla, viabilizando-se a produção e a circulação de conhecimento produzido pelos próprios usuários, o uso de plataformas colaborativas, a formação de redes sociais e a digitalização de inúmeras atividades, entre outros fenômenos.[2]

Muito embora não se possa precisar uma ordem natural para o desenvolvimento da rede, é fato que a Internet comercial passou a ser realidade com a sua disseminação nos lares, órgãos públicos e empresas no início dos anos 90, logo após a redemocratização do Brasil. Carta analítica que é, a Constituição Federal de 1988 trouxe explicitamente a regulação dos meios de comunicação e das tecnologias de informação então existentes, definindo uma arquitetura condizente com as liberdades e os processos sociais que elencou como direitos fundamentais. [3]

Foi natural, ainda que sem sucesso, que se tentasse enquadrar a Internet junto ao quadro regulatório das mídias tradicionais. No entanto, a rede virtual é claramente uma realidade muito mais complexa, multifacetada, variável e ampla do que a dos demais meios de comunicação, apresentando uma dinâmica aberta e evolutiva própria, que em nada se compara ao jornal, à televisão ou ao rádio.[4]

Nesse sentido, com a evolução tecnológica e a disseminação da Internet,  novos desafios e riscos foram criados.[5] O quase ilimitado alcance das informações veiculadas, a gradativa inclusão no meio virtual de informações cada vez mais relevantes, seja sobre a vida privada dos indivíduos ou sobre transações comerciais de alto valor econômico entre núcleos empresariais, por exemplo, associada à sensação de inatingibilidade que a tela do computador fornece, deu azo a abusos na rede, atraindo a cultura delinquente e possibilitando novas formas de causar danos a outrem. Nesse universo múltiplo e flexível, a aplicação de institutos e categorias jurídicas tradicionais de recomposição patrimonial de danos não se mostrou suficiente.

Não havia, entretanto, no plano legislativo, até a vigência do marco regulatório da Internet, instrumento específico capaz de conduzir as partes envolvidas em um litígio virtual a um resultado satisfatório, definindo obrigações e responsabilidades. O interesse coletivo que envolve a matéria, não apenas pelo número cada vez maior de usuários do serviço, mas principalmente por sua utilização como meio de consecução de atividades ilegais[6], fez com que os Tribunais buscassem definir, a partir de parâmetros próprios, a responsabilidade dos agentes na rede.[7]

Especificamente quanto à responsabilidade por conteúdo veiculado na rede, o entendimento que vinha prevalecendo no Superior Tribunal de Justiça, em decisões recentes, é de que os provedores de serviços de internet não respondem objetivamente pelo conteúdo inserido por terceiros usuários, uma vez que a fiscalização prévia do teor das informações postadas por cada usuário não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado.[8]

Contudo, tendo ciência da publicação de conteúdo ilícito, ainda que por meio de comunicação extrajudicial do suposto ofendido, o provedor deverá suspender preventivamente a disponibilização do conteúdo, dentro de 24 horas, sob pena de responder, solidariamente, por omissão, com o autor do conteúdo inadequado.[9]

A solução proposta não ficou isenta de críticas, já que com receio da responsabilidade, os provedores foram colocados em uma situação tendente a adotar uma política de ampla censura, bastando terem sido informados por aquele que se sente ofendido para poderem ser responsabilizados. Além disso, transfere-se para o provedor de serviços de internet - pessoa privada e agente econômico - o juízo sobre o conteúdo postado, em um modelo que valoriza o falado sobre o falante. [10] [11]

Estas questões iniciais revelam que não há solução fácil quando se trata de regulação da Internet, uma vez que não raramente se está diante de conflitos ponderativos entre o direito à liberdade de expressão e a proteção da dignidade e da honra dos que navegam na rede. Se de um lado a responsabilização excessiva dos provedores tende a alterar a própria conformação da Internet como uma plataforma livre e neutra, a ampla liberdade de circulação de informações coloca em risco direitos constitucionais igualmente protegidos como os direitos do consumidor e a intimidade e a vida privada das pessoas.[12]

Nesse sentido, foi imperativo que o Poder Legislativo e a sociedade civil se movimentassem para a aprovação de um instrumento regulatório que pudesse contribuir para o livre exercício da cidadania e do direito à manifestação e informação na rede, sem descuidar de resguardar as mais diversas garantias e direitos fundamentais constitucionalizados. O Marco Civil da Internet surgiu, portanto, mais do que como legislação regulatória, também como instrumento de cidadania e de desenvolvimento da personalidade. [13]


2. Responsabilidade civil por conteúdo postado por terceiros e o Marco Civil da Internet

Ao tratar da proteção das liberdades e dos direitos individuais, como o direito à privacidade e à proteção de dados, o Marco Civil da Internet elencou princípios que condicionam o exercício regular do direito de acesso à Internet. A opção do legislador, entretanto, quanto à responsabilização dos provedores de serviços da internet pelo conteúdo disponibilizado foi específica, trazendo regras particulares de responsabilidade.

Em consonância com o posicionamento já firmado pela jurisprudência, o marco regulatório isenta o provedor de conexão à Internet[14] da responsabilidade civil por danos decorrentes de conteúdo postados por terceiros. Justifica-se tal previsão pelo fato destes não terem qualquer forma de controle ou de influência sobre o conteúdo gerado pelos usuários ou por outros provedores de serviços na Internet.

No caso dos provedores de aplicações de Internet[15], a lei reguladora, afirmando expressamente estar prestigiando a liberdade de expressão e impedindo a censura, prevê que esses somente podem ser responsabilizados civilmente se, após ordem judicial específica, não procederem à retirada do conteúdo indicado como infringente.[16] A exceção à regra dispõe que, se o material contiver cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado, basta a notificação extrajudicial do interessado para gerar a obrigação de indisponibilizar o conteúdo postado.[17] Neste último caso, o Marco Civil qualificou a responsabilidade como subsidiária, não havendo igual qualificação na primeira situação descrita.

Quanto à regra geral de responsabilização, a prática jurídica dos Tribunais e a doutrina deverão se encarregar de definir o real sentido da responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet inserida no Marco Civil, uma vez que o dispositivo não deixa claro se a responsabilidade é pelo conteúdo em si, juntamente com o autor da ofensa ou se somente haverá responsabilidade pelo desatendimento da ordem judicial de retirada. Esta segunda interpretação pode levar ao entendimento de que é imprescindível a ordem judicial para gerar a obrigação de retirada do conteúdo.

É justo dizer que a previsão não impede que o provedor de aplicações de internet indisponibilize o acesso a determinado conteúdo se entender que há violação de seus termos de serviço ou da legislação em geral. Mas também não há qualquer obrigação de que o provedor remova conteúdo, ainda que flagrantemente ilegal, senão por ordem judicial. Retira-se das empresas provedoras de serviços na internet significativa parte dos ônus em prevenir e analisar eventuais ilegalidades na prestação de sua atividade econômica, transferindo o encargo aos usuários e ao Judiciário.[18] Se assim consagrado, o Marco Civil estará divergindo do que vinha sendo delineado pelo Superior Tribunal de Justiça.

As discussões que se avizinham com esta isenção de responsabilidade são complexas. Não é nenhum segredo que o sistema judiciário brasileiro caracteriza-se por sua morosidade e ineficiência, existindo em trâmite aproximadamente 100 milhões de processos[19], sendo que os casos pendentes equivalem a quase 2,5 vezes o número de casos novos e de processos baixados.

Na atual produtividade de magistrados e servidores, seria necessário cessar a distribuição de processos por quase dois anos e meio para apreciar todos os processos em tramitação[20]. Com efeito, o tempo nas questões envolvendo a Internet é de suma importância em determinadas situações. A informação se propaga rapidamente, pela própria conformação estrutural do sistema, podendo a demora na injunção judicial em indisponibilizar determinado conteúdo acarretar irremediável prejuízo ao direito da parte.

Cabe dizer que o Marco Civil, de forma bem-intencionada e prevendo os efeitos indesejados do retardo no provimento judicial, estabeleceu a competência dos juizados especiais para apreciação de causas que versem sobre o ressarcimento de danos e sobre a retirada de conteúdos postados na Internet, prevendo, inclusive, hipótese de tutela antecipada específica. Não se olvida, porém, que a Lei 9.099/1995 prevê a irrecorribilidade das decisões interlocutórias no processo dos juizados especiais, não havendo recurso a órgão superior da decisão preliminar do juiz. Se denegada a tutela antecipada, eventual demanda somente será apreciada no momento da prolação da sentença.

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Nesse sentido, ao estabelecer um regime de responsabilidade que só se inicia após a notificação judicial, o Marco Civil incentiva à manutenção do conteúdo, favorecendo a manifestação da expressão, mas também não se estabelece prioridade a um valor que não prevalecerá em toda e qualquer situação? [21]

Quanto ao regime de responsabilidade por conteúdos de conotação sexual ou cenas de nudez, qual é o sentido da responsabilidade subsidiária inscrita no marco regulatório? Estar-se-ia diante de modalidade de obrigação subsidiária, na qual o provedor seria obrigado a indisponibilizar o conteúdo alegadamente ofensivo, sob pena de responsabilização juntamente com o autor do conteúdo postado, e, ainda que assim proceda, caso o autor não tenha condições financeiras de pagar a indenização, a obrigação lhe seria imputada?

Ou, conforme defendido pelo professor e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ênio Santarelli Zuliani, durante seminário realizado na Escola Paulista de Magistratura, estar-se-ia diante de duas responsabilidades distintas, uma principal do autor do conteúdo postado e uma do provedor que, notificado, não indisponibiliza o conteúdo, entrando na cadeia do nexo causal do ato ilícito ao agravar o dano?[22]

Estas questões revelam a complexidade do tema, que ainda será colocado à apreciação e à discussão pela doutrina e pelos Tribunais, que contribuirão para definição dos contornos legais da estrutura de responsabilização trazida pela novel legislação. Frise-se que o Marco Civil da Internet ainda não foi regulamentando, estando em curso consultas públicas para participação da sociedade na edição do decreto regulatório.


Conclusão

Em que pese ainda esteja pendente de regulamentação, o Marco Civil da Internet surgiu como um instrumento legal cuja forma e conteúdo pretendem contribuir para a construção de uma sociedade mais cidadã, apresentando soluções e diretrizes para o uso da Internet e a proteção dos direitos dos usuários.

No entanto, sua postura em relação à responsabilidade de determinados prestadores de serviços na Internet não restou livre de questionamentos e de críticas, conforme demonstrado. A real definição e elucidação de seus conceitos e a fixação dos parâmetros de responsabilização ainda serão objeto de intenso escrutínio judicial e doutrinário, tendo em vista a importância da regulamentação da Internet para o exercício dos direitos sociais e individuais na sociedade brasileira.


Referências bibliográficas

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ELIAS, Paulo Sá. Desembargador faz considerações sobre Marco Civil da Internet. Revista Consultor Jurídico, Brasília, set. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-05/paulo-sa-desembargador-explana-consideracoes-marco-civil>. Acesso em: 12 set. 2015.

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PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2013.

SAFERNET BRASIL. Indicadores da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Brasília, 2015. Disponível em: <http://indicadores.safernet.org.br/>. Acesso em: 11 set. 2015.

STEINER, Renata. Marco Civil da Internet e a responsabilidade civil dos provedores. Cadernos Jurídicos, Paraná, s. n. jan. 2014.

SYDOW, Spencer Toth. Crimes informáticos e suas vítimas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

THOMPSON, Marcelo. Marco Civil ou Demarcação de Direitos? Democracia, Razoabilidade e as Fendas na Internet do Brasil (Civil Rights Framework or Demarcation of Rights? Democracy, Reasonableness and the Cracks on the Brazilian Internet). Revista de Direito Administrativo. v. 261, 2012. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=2101322>. Acesso em: 11 set. 2015.

VERAZTO, et. al. Tecnologia: buscando uma definição para o conceito. Revista de Ciências e Tecnologias de Informação e Comunicação, Portugal. n. 7. jan 2008. Disponível em: <http://revistas.ua.pt/index.php/prismacom/article/viewFile/681/pdf>. Acesso em: 15 set 2015.

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Sobre o autor
Rafael Taveira Oliveira

Procurador da Fazenda Nacional. Formado na Universidade de Brasília (UnB), cursando a Pós-Graduação “Ordem Jurídica e Ministério Público” da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Taveira. Considerações sobre a responsabilidade civil dos provedores de conteúdo de Internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4658, 2 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47830. Acesso em: 23 abr. 2024.

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