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Separação dos poderes e a atividade legislativa do Poder Executivo

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03/04/2016 às 11:23
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A necessidade de legislação rápida e eficaz tornou-se do próprio Estado, exigindo que a conformação da agenda política se faça a partir da atuação cooperativa entre o Executivo e o Legislativo, o que ensejou nova sistemática de divisão e redefinição de papéis no governo.

INTRODUÇÃO

É consenso comum entre os tratadistas a constatação de que o Poder Executivo tem ocupado lugar de primazia no cenário de elaboração normativa em detrimento do tradicional monopólio titularizado pelo Poder Legislativo, conforme noticia Carlos Roberto Siqueira de Castro:

O Estado do século XX, sobretudo a partir da terceira década, exibe um fenômeno político-institucional que é perfeitamente caracterizado como de mutação dos papéis orgânicos dos departamentos da soberania, e que atinge, com maior ênfase, os poderes legislativo e executivo. Há, em verdade, uma reviravolta na relação de proeminência que prevalecera entre órgãos estatais do século XIX, passando o Executivo a protagonizar as ações de Governo, enquanto coube ao Parlamento posição mais secundária ou, pelo menos, de complementação das atividades de primeira grandeza levadas a efeito pela administração pública. (SIQUEIRA CASTRO, 1986, p. 7)

Com efeito, é facilmente constatável o destaque assumido pela atividade legislativa do Executivo – decretos-leis, medidas provisórias, ordonnances, etc. – nos diversos ordenamentos jurídicos nacionais, tendo, inclusive, Oswaldo Trigueiro (1954) afirmado que na ausência dos decretos-leis os governos democráticos europeus, na primeira metade do século XX, seriam inviáveis.

Assim, demonstrar-se-á a seguir o panorama histórico-político que levou à proeminência da atividade legislativa primária do Executivo, particularmente em face das profundas transformações pelas quais passou o Estado do século XVIII, de um constitucionalismo liberal universalizado até o redimensionamento da teoria da separação dos poderes nos textos constitucionais contemporâneos, engendrando uma nova estrutura estatal surgida a partir do início do século XX.


1.  Evolução histórica da ideia de separação dos poderes

Conforme ressalta Pedro Abramovay (2010, p. 13), em que pese serem conceitos que surgiram em momentos históricos e com significados bastante distintos, é comum que o conceito de separação dos poderes seja tratado como sinônimo da ideia de freios e contrapesos (checks and balances), muitas vezes sendo percebido como um processo de evolução histórica contínua que desconsidera o sentido transformador dado à separação dos poderes na contemporaneidade.

A fim de compreender a evolução e o sentido dado à separação dos poderes hoje em dia e a forma como se deu a incorporação deste conceito nos diversos desenhos institucionais ao longo do tempo, é preciso ater-se à formação histórica do conceito, interpretando-o de forma vinculada à realidade social de cada época.

Nesse sentido, em que pese a afirmação de que a separação dos poderes como princípio tenha sido obra do racionalismo iluminista, em um contexto de “aparecimento do Estado nacional moderno unificado e centralizado, territorialmente e funcionalmente” (NASCIMENTO, 2004, p. 41), não se trata de criação original, mas sim de imposição “do racionalismo a um conjunto de linhas de experiências e de doutrina que vinham desde épocas bastantes anteriores” (SALDANHA, 1987, p. 86).

Com efeito, a questão da divisão do poder tem raízes na Antiguidade Clássica, particularmente em A Política de Aristóteles, cuja atenção concentra-se na classificação de regimes e a sua natural degeneração[1], propondo o filósofo um governo com elementos mistos no qual fossem atribuídas funções distintas a diferentes atores do processo político, tendo os controles - diante da natural tendência de abuso do poder -, o objetivo de manter um regime virtuoso[2] (ABRAMOVAY, 2010, p. 14).

Importante ressaltar que “a noção de equilíbrio vinda do governo misto está, portanto, muito vinculada à ideia de manutenção de um regime, de evitar a sua degeneração.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 14).

A constituição mista representava a resposta dos antigos à previsão, por eles profundamente temida, de crise, de dissolução da comunidade política. Por esse motivo, uma de suas principais características era a do equilíbrio, pertencendo a um campo no qual não se realizavam as pretensões de somente uma força, de um fator constitucional singular. (FIOVARANTI, 1999 apud SAMPAIO, 2007, p. 25).

A construção teórica em torno do governo misto continuou a se desenvolver na Idade Média, especialmente no debate sobre o poder eclesiástico. Discutindo a submissão do poder dos Papas aos concílios da Igreja, o objetivo do movimento conciliarista era a de “evitar que um Papa com poder demais pudesse justamente atentar contra o status quo do clero.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 15). A divisão do poder estaria, portanto, associada a uma ideia de preservação do status quo, impedindo maiores transformações.

Avançando no tempo, já no contexto da Revolução Gloriosa na Inglaterra do século XVII, nos anos de 1688 e 1689, a ideia de equilíbrio do poder por distribuição social das funções públicas tem nas primícias do liberalismo de John Locke o seu maior expoente.

Conforme ensina Sampaio, Locke concebe os poderes do Estado como decorrentes do contrato social que o funda, fazendo-se, assim, supremo o Poder Legislativo “já que tem a função de declarar as leis que são pré-existentes à vida em sociedade, determinando as funções dos outros corpos do Estado, bem como fazendo as regras da vida comum.” (SAMPAIO, 2007, p. 26). Nesse sentido, afirma que:

Duas características importantes da teoria do Locke já podem ser constatadas: a primeira diz respeito à origem limitada do poder, mesmo o legislativo, primeiro de todos na vida em sociedade. Nasce ele limitado pelo contrato social, que visava à garantia dos direitos naturais de vida, liberdade e propriedade. E, além disso, frise-se que a separação dos poderes de Locke se baseia no primado do legislativo, que leva ao primado da lei. E a lei, dentro do Estado fundado para manutenção de vida, liberdade e propriedade, é dotada, apenas, de função estabilizadora e garantística, com essência certa e previsível. O cenário é, pois, estático (SAMPAIO, 2007, p. 27).

Com efeito, a teoria de Locke se afasta do ideal abstrato de constituição mista,  propondo uma divisão orgânico-pessoal de poderes, a partir de um Legislativo supremo[3], baseado no primado da lei que, declarada de acordo com o direito natural, era estável, o que possibilitaria constante manutenção de situação de equilíbrio na sociedade. (SAMPAIO, 2007, p. 28).

Mais adiante, a partir da observância da Constituição Inglesa é que se insere a famosa obra do Barão de Montesquieu, cuja projeção deu as bases teóricas ao modelo clássico de tripartição do poder. Inserido no contexto revolucionário do século XVIII, Montesquieu concebeu um mecanismo de segurança ao regime que estava se estruturando com o propósito de arquitetar uma organização governamental que inibisse o abuso do poder.  (FERREIRA FILHO, 2012, 132).

Para tanto, em trecho frequentemente difundido[4], Montesquieu propôs a sistemática dos três poderes, os quais, dentro de um Estado, constituiriam “procedimentos internos de balança obtidos pela combinação e pelo temperamento das potências ao mesmo tempo que pela distribuição das tarefas, pela regulação das competências e pela compensação das funções” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 239).

Argumentava Montesquieu que o poder estatal deveria ser dividido e distribuído de forma que “a independência recíproca e especialização numa das funções básicas dos que contam com frações da soberania, impeça que qualquer um possa oprimir a quem quer que seja” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 131). Implícita à ideia de separação dos poderes, inserida no plano político, Montesquieu concebe a distribuição dos poderes às forças sociais da realidade de seu tempo[5] “em cuja conciliação, em cujo equilíbrio estava a fórmula infalível da liberdade de todos e de cada um” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 131).

De fato, para o pensador francês, “a separação dos poderes é um princípio de equilíbrio, o qual regendo a relação dos governos com as leis e a constituição, permite a ‘moderação’ necessária para assegurar a liberdade política” (NASCIMENTO, 2004, p. 40-41).

A receita da liberdade política, que, recorde-se, é para ele ‘aquela tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem de sua segurança, sugerida pela Constituição inglesa, é partilhar a soberania das forças sociais, munindo-as de instrumentos e garantias para que, sem temerem umas às outras, possam realizar o ideal, o governo moderado (FERREIRA FILHO, 2012, p. 131).

Baseado nas construções político-jurídico de Locke e Montesquieu, no contexto das revoluções liberais reativas às monarquias, erige-se “um aparato estatal concebido para ser inerte, o Estado Liberal, cujo poder somente surtiria efeito se fosse alcançado acordo entre os poderes que o compõem.” (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 32).

Nesta forma de Estado, conforme ensina José Afonso da Silva, três principais características se destacam: a submissão ao império da lei, como limite à atuação estatal, em clara reação aos abusos perpetrados pelo Executivo absolutista, sendo o direito concebido somente como o conjunto de normas estabelecidas formalmente pelo Legislativo; a divisão dos poderes de forma independente como técnica que impeça o arbítrio nas relações entre os mesmos; e, como limite externo à ação do Estado, o dever de respeito às garantias e direitos individuais dos cidadãos. (2010, p. 112-113).

Assim, resultado embora mais da interpretação do que da intenção do seu inspirador inglês ou de seu pai francês, a separação dos poderes praticada acabou por ensejar a supremacia do Parlamento, tendo essa supremacia se acentuado durante todo o século XIX para atingir o ápice por volta da segunda década do século XX, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. (FERREIRA FILHO, 2012).

Ocorre que “o sistema calcado no domínio do Parlamento sobre o Governo e a administração, cenáculo da Lei – encarnação da razão universal -, vai perdendo, lenta, porém inexoravelmente, sentido.” (DAMOUS; DINO, 2005, p.3).

Como marco inicial desta linha evolutiva, apontam-se as intensas transformações econômico-sociais advindas da Revolução Industrial, consolidando-se com a eclosão de duas Grandes Guerras, momento no qual a intervenção do Estado fez-se imperativa não somente ao esforço bélico, mas, terminados os conflitos, à reconstrução nacional. Além disso, a eclosão da crise econômica de 1929, bem como a presença crescente da classe operária no cenário político, tornou a presença do Estado no âmbito da economia paulatinamente mais necessária. (DAMOUS; DINO, 2005, p. 4).

Ademais, ao longo do século XIX, com a crescente situação de pobreza do proletariado, ganharam força movimentos de oposição de índole associativista e sindicalista ao modelo liberal. Afinal, a visão negativa e formal de liberdade, tão consagrada no Estado liberal, se mostrou incapaz de gerar uma sociedade na qual o progresso individual fosse compatível com a distribuição de renda e justiça social.

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A liberdade de ação em geral e de aquisição de bens sobre a base da igualdade jurídica não atenua a desigualdade natural e econômica dos homens; ao contrário, permite que as diferenças se aprofundem. Da atuação da liberdade jurídica geral e igual para todos resulta assim necessariamente a desigualdade social, a qual se consolida através da garantia da propriedade e se converte em uma não liberdade social ao longo de gerações. (NASCIMENTO, 2004, p. 47).

Tais setores, impossibilitados de debater dentro das instituições, em razão do voto censitário[6], encontraram na perspectiva revolucionária uma possibilidade de ruptura. A fim de preservar as instituições presentes, o voto foi universalizado, “como concessão de setores burgueses mais avançados, conscientes de que – para sobreviver politicamente – deveriam ceder, em alguma medida, aos anseios dos excluídos do jogo político.” (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 34).

Alçadas à condição de força política, as massas conduziram os conflitos para o interior das instituições estatais, especialmente para o seio do Parlamento, abalando o funcionamento das assembleias com a “entrada em seu círculo de deputados descrentes do trabalho parlamentar e inimigos da concepção de vida e do mundo inspiradora da organização vigente de Estado.” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 143).

Os Parlamentos e seus métodos de trabalho não estavam, em realidade, em condições de dar conta desse acréscimo de funções e desse novo mister completamente diferente daquele para o qual foram imaginados o controle político e, posteriormente, a elaboração legislativa. Organizado como centro de discussão, destinado a conciliar opiniões, a oposição radical de concepções políticas levava ao alongamento infrutífero do debate entre correntes inconciliáveis. Ora, esse alongamento, que não podia ser abreviado sem violência à liberdade de palavra dos parlamentares, já servia de arma para as minorias evitarem decisões que lhe parecessem inaceitáveis. A obstrução torna-se tática parlamentar frequente (FERREIRA FILHO, 2012, p. 144).

Por sua vez, conforme o Estado se imiscuía no âmbito econômico, “os Parlamentos se viram cada vez mais impossibilitados de desempenhar as tarefas que dele eram esperadas” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 143). As questões econômicas não se ajustavam ao processo de debate público, ínsito aos Parlamentos. Isto porque o debate parlamentar não possibilita que certas decisões sejam tomadas com a rapidez exigida pelas situações e relações complexas de cunho econômico, as quais ensejam do legislador capacidade técnica especializada, bem como presteza para “impedir prejuízos irreparáveis, decorrentes não só de eventos imprevisíveis como também de decisões de poderes políticos estrangeiros” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 144).

O Estado, gradualmente, adquiria novo perfil, atuando no meio socioeconômico para garantir a expansão econômica da nação, bem como para buscar a redução das desigualdades sociais, cedendo espaço, consequentemente, a democracia liberal à democracia social, que, por sua vez, deu ensejo a um novo arranjo institucional. (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 35).

Constituído, pois, como órgão da soberania estatal adequado, inclusive do ponto de vista técnico, para cumprir com as exigências advindas do Estado provedor, acabou o Poder Executivo por substituir parcialmente, porém de forma substancial, o Poder Legislativo na atribuição que o constitucionalismo clássico lhe houvera atribuído. (DAMOUS; DINO, 2005, p. 7-8).

Nesse sentido, “com a nova dimensão assumida pelo Estado Social e suas políticas distributivas e interventoras, foi abandonada a noção clássica de lei, e a ideia de primazia do Poder Legislativo sobre os demais Poderes constituídos perdeu espaço” (NASCIMENTO, 2004, p. 48).

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Sobre o autor
Rafael Taveira Oliveira

Procurador da Fazenda Nacional. Formado na Universidade de Brasília (UnB), cursando a Pós-Graduação “Ordem Jurídica e Ministério Público” da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rafael Taveira. Separação dos poderes e a atividade legislativa do Poder Executivo . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4659, 3 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47833. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica da ideia de separação dos poderes. 2.1. Releitura contemporânea do conceito e a atividade legislativa do Executivo. 3. Conclusão.

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