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O cerceamento do acesso à cultura a partir da limitação de navegação na internet que buscam as operadoras

11/05/2016 às 12:04
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Apresenta-se uma visão jurídica e humanista da limitação da internet proposta pelas operadoras de telefonia, traçando considerações sobre a fundamentalidade da busca pelo conhecimento.

Nos dias de hoje, em que a internet é uma das principais (senão a principal) formas de acesso ao conhecimento e à cultura, buscam as operadoras de telefonia limitar a possibilidade de acesso a partir da implementação de pacotes de dados de acordo com a franquia contratada pelo consumidor, em uma primeira visão do tema, sem motivação.

Busca o presente trabalho demonstrar a prejudicialidade dessa tentativa de mudança brusca e a impossibilidade desse ato frente ao direito constitucional e aos direitos humanos.

Primeiramente, é necessário traçarmos a importância da cultura para a formação do homem. Para alguns, a cultura trata-se de algo tão banal, tão cotidiano, que aparentemente um texto como o presente é irrelevante, afinal, seu acesso é fácil, praticamente ilimitado e corriqueiro, não se percebendo, sem uma pausa para reflexão, a importância de garantir esse alcance aos demais.

A cultura é constitucionalmente protegida, no art. 215 da CF, no qual está entabulado que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

A partir desse artigo percebe-se o interesse da sociedade na cultura e o déficit de interesse acerca do assunto, que necessita de tratamento constitucional, mostrando a tutela jurisdicional do tema e sua relevância.

Limitar a internet nesse ponto do desenvolvimento e do alcance que essa ferramenta de acesso ao conhecimento chegou acaba por ser equivalente a limitar a concessão de água ou a própria liberdade, necessidades básicas e indispensáveis.

O direito ao conhecimento e à cultura devem ser sempre ilimitados, e, dessa forma, intrinsecamente, o direito à internet deve ser salvaguardado, afinal é cediço o alcance e a importância que a rede mundial de computadores passou a ter em nossas vidas.

Hoje, temos serviços e profissões que dependem quase que exclusivamente da internet para existirem, de maneira que limitá-las é, em muitos casos, limitar o direito ao trabalho, o que é garantido pela constituição como direito fundamental.

Como exemplo podemos observar a migração do processo judicial físico para o processo eletrônico. O poder judiciário trabalha nessa mudança há anos em busca do que deverá ser uma evolução. Hoje, a justiça do trabalho, a justiça federal e boa parte da justiça estadual já fazem parte desse novo sistema. No entanto, como poderá ser desempenhado o trabalho se a internet simplesmente possuir limite e em determinado ponto do mês não houver mais franquia para que se possa trabalhar?

Não obstante, é problemático o posicionamento da ANATEL acerca do caso, apresentando claramente um ponto de vista defensivo com relação às empresas fornecedoras em detrimento dos consumidores. Ora, a Agência Nacional de Telecomunicações deveria priorizar a regulamentação dos serviços em prol do polo mais fraco, logicamente o consumidor, salvaguardando o interesse da coletividade, que já sofre diversos abusos e paga caro por serviços e produtos de qualidade duvidosa.

Juridicamente falando, há um conjunto de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal (art. 5o. Inc. XIV – liberdade de acesso à informação; art. 5o, inc. XXXII e 170, V – defesa do consumidor; art. 5o. IX, liberdade de expressão) e vários outros que indiretamente estão ligados ao tema em discussão, e que protegem os sujeitos de tentativas, como essa, de visivelmente lesá-los. Há ainda outras Leis Federais, como o Código Civil (principalmente no tema dos contratos e obrigações), o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet, todo um conjunto legal criado para proteger o polo mais fraco dessas relações jurídicas, os hipossuficientes (como os trata o CDC) e garantir a sinalagma – divisão igual de direitos e obrigações entre contratante e contratado – nos contratos (como prevê o Código Civil).

Ainda, conforme destaca Antônio Cândido, atualmente, percebe-se uma mudança no discurso, havendo, ao menos, uma mínima consciência da parcela mais abastada e controladora da sociedade acerca do politicamente correto, demonstrando que se percebe a necessidade de mudanças na distribuição de renda, conforme a passagem que destacamos:

“Sintoma complementar eu vejo na mudança do discurso dos políticos e empresários quando aludem à sua posição ideológica ou aos problemas sociais. Todos eles, a começar pelo Presidente da República, fazem afirmações que até pouco tempo seriam consideradas subversivas e hoje fazem parte do palavreado bem-pensante. Por exemplo, que não é mais possível tolerar as grandes diferenças econômicas, sendo necessário promover uma distribuição equitativa.”.

Percebe-se que ocorreram mudanças, inclusive, praticamente obrigatórias, pois aqueles que antes tinham o quase exclusivo acesso ao conhecimento e às oportunidades da vida, agora dividem espaço e são obrigados a aceitar a presença daqueles que pertencem a outras classes sociais. Situação essa causa estranheza àqueles que ainda pensam em um país elitizado e que não aceitam a diminuição paulatina do abismo entre os que possuem a riqueza, a burguesia que ainda pensa que vive na idade média, não se misturando com a plebe. Por exemplo, no caso ocorrido há alguns anos do sujeito que estava no aeroporto e, por não estar vestido conforme os demais, era tratado de forma diferente, demonstrando que existe um apartheid não-oficial e “invisível”, mas plenamente perceptível.

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Ainda, afirma o autor, corretamente, que “é claro que ninguém se empenha para que de fato isto aconteça, mas tais atitudes e pronunciamentos parecem mostrar que agora a imagem da injustiça social constrange, e que a insensibilidade em face da miséria deve ser pelo menos disfarçada.”.

Ora, essa obrigação de aceitar o que não é corriqueiro para esses sujeitos, a obrigação de sair da zona de conforto, é proveniente justamente da difusão do conhecimento, o ato de cada vez mais dar importância e garantir que todos tenham o acesso à educação acaba por trazer outra realidade a todos.

Nesse sentido, voltamos ao cerne desse trabalho, o acesso ao conhecimento via internet. Não há dúvidas de que a limitação de uma ferramenta tão poderosa é prejudicial à sociedade, afinal é através do computador que hoje temos notícias, entretenimento, educação, praticamente tudo o que acontece ao redor do mundo nas pontas de nossos dedos, e a ganância do monopólio das empresas de telefonia sobre a internet brasileira não pode prevalecer, devendo o Estado (mesmo que minimamente intervencionista dentro do capitalismo moderno) regular esse mercado. Afinal, não se trata de regular o mercado e aplicar preços ou dizer como esse deve se portar diretamente, mas de regular uma ferramenta que, assim como a produção de energia elétrica, a distribuição de água e mesmo a exploração de petróleo, acaba por ser fundamental, não sendo aceitável permitir que a livre iniciativa decida ao seu bel-prazer como a internet deve ser utilizada.

Portanto, conclui-se que o limite de dados da internet é inconstitucional, por todos os motivos aqui destacados, indo contra Lei Federal, qual seja, o Marco Civil da Internet (entre outros, como já destacado), que, apesar de não proibir expressamente tal conduta, afirma que a internet só pode ser “cortada” por motivo de inadimplemento, o que, por entendimento lógico, significa que o corte, a limitação, não pode ocorrer em outras hipóteses, ainda mais quando esse corte pode ser arbitrário e motivado pelas ganâncias das já riquíssimas empresas fornecedoras do serviço no país.

Dessa forma, percebemos que já existe todo um aparato visando amparar e buscar frear uma tentativa como a que estamos vivenciando, todavia, o ideal é tutelar de forma específica o caso em testilha para evitar problemas futuros.


Bibliografia:

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos.O Direito à Literatura.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo. Saraiva. 2015.

BULOS. Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva. 2010.

http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2016/04/limite-de-dados- vai-contra-o-marco-civil-da-internet-diz-especialista-5781949.html

http://www.oabrs.org.br/noticias/ldquoresolucao-anatel-que-limita- internet-prejudica-consumidorrdquo-afirma-lamachia/21045 

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Sobre o autor
Giuseppe Santos

Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Giuseppe. O cerceamento do acesso à cultura a partir da limitação de navegação na internet que buscam as operadoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4697, 11 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48683. Acesso em: 25 abr. 2024.

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