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A participação de cooperativas em licitações

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02/03/2004 às 00:00
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4 - O PRINCÍPIO DA ISONOMIA

A discussão a respeito do princípio da isonomia revela-se como o cerne da questão em exame, haja vista sua proeminência sobre os demais princípios no processo licitatório e o tratamento jurídico diferenciado dispensado às sociedades cooperativas que as desigualam das sociedades comerciais.

É inconcebível num processo de licitação pública a existência de tratamento diferenciado entre os licitantes que se encontram em posição de igualdade, o que frustraria todo o processo competitivo, dada a supremacia do princípio da isonomia.

Sobre a importância da isonomia nas licitações, assim lecionam os Mestres do Direito Administrativo:

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO [51]:

Sem embargo, julgamos que todos descendem do primeiro (isonomia), pois são requisitos necessários à sua existência ou à fiscalização de sua real ocorrência. (g.n.)

HELY LOPES MEIRELLES [52]:

Por outro lado, visando propiciar as mesmas oportunidades aos que desejam contratar com o Poder Público, a licitação deverá garantir absoluta igualdade entre os interessados, princípio maior do qual se originam os demais princípios da licitação (...). (g.n.)

CARLOS ARI SUNDFELD [53]:

Igualdade de tratamento entre os possíveis interessados é a espinha dorsal da licitação. É condição indispensável da existência de competição real, efetiva e concreta. Só existe disputa entre iguais; a luta entre desiguais é farsa (ou, na hipótese melhor: utopia). (g.n.)

Na atual Constituição brasileira, a isonomia estende-se à obrigação do Estado em amenizar as diferenças sociais. Já no preâmbulo, o constituinte enunciou como objetivo nacional "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna". Por sua vez, o artigo 3º, ainda listando os objetivos fundamentais da República, dentre eles enumera: "I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...) III – erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Por fim, além de outras manifestações isonômicas especiais ou indiretas, o artigo 5º, ao dispor acerca dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu caput é claríssimo ao determinar que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)"

Não raras vezes, o princípio da isonomia é objeto de polêmicas, haja vista a má interpretação por parte de alguns juristas, que, segundo afirma CELSO RIBEIRO BASTOS [54] é "um dos de mais difícil tratamento jurídico (...) em razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de direito e de elementos metajurídicos".

Neste momento é oportuno invocar a lição do saudoso RUI BARBOSA [55] sobre a relação entre a atividade legiferante e o princípio da isonomia, verbis:

Ocorre, todavia, que é da essência da lei estabelecer desigualdades. Toda lei desiguala, na medida em que, ao estabelecer uma hipótese, estará, necessariamente, dando um tratamento diferenciado a quem nela se enquadrar, em relação a quem não se encaixe na situação hipoteticamente descrita. (g.n.)

Neste sentido, SIQUEIRA DE CASTRO [56] pondera:

É errôneo supor que a regra constitucional da isonomia impede que se estabeleçam desigualdades jurídicas entre os sujeitos de direito. Isto porque o fenômeno da criação legislativa importa inevitavelmente em classificar pessoas, bens e valores segundo toda a sorte de critérios fáticos. (...) Aliás, se tudo e todos fossem iguais perante a lei, de modo absoluto chegar-se-ia a conclusão absurda de que a lei não poderia classificar, portanto estabelecer valorações fático-jurídicas, tendo de tratar a tudo e a todos da mesma maneira, o que importaria num tremendo cerceamento do exercício do poder normativo do Estado. (g.n.)

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO [57], na sua obra clássica Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, também corrobora o entendimento acima exposto:

Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de obrigações e direitos.(g.n.)

Pari passu, continua lecionando o referido autor, com o seguinte exemplo:

Cabe observar que às sociedades comerciais quadram, por lei, prerrogativas e deveres diferentes dos que pertinem às sociedades civis; aos maiores é dispensado tratamento inequiparável àquele outorgado aos menores; aos advogados se deferem certos direitos e encargos distintos dos que calham aos economistas ou aos médicos, também diferenciados entre si no que concerne às respectivas faculdades e deveres.

Visto que a doutrina é uníssona em considerar a possibilidade de existência de um discrímen legal em relação a diferentes pessoas, em observância ao princípio da isonomia, in casu, mister se faz seja feita uma análise concreta da aplicação desse princípio no que tange ao tratamento dispensado às sociedades cooperativas.

Para tanto, nada melhor do que a lição do ilustre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO [58], tendo em vista a proficiência com que este autor se manifestou sobre o princípio da isonomia. Preceitua o citado administrativista que para um discrímen legal convivente com o princípio da isonomia, albergado na ordem jurídica, impende que concorram quatro elementos:

a)que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b)que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;

c)que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

d)que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.

Nesse sentido, será visto que não devem prosperar os argumentos daqueles que sustentam que a participação de cooperativas em licitações viola o princípio da isonomia, uma vez que está presente todos os elementos acima arrolados pelo Professor CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, necessários ao estabelecimento de um discrímen legal, senão vejamos:

No que se refere ao primeiro elemento acima descrito, impende dizer que a desequiparação estabelecida pela legislação vigente atinente às sociedades cooperativas abrange toda a categoria, sem especificar esta ou aquela, ressalvadas as peculiaridades de cada espécie, enumeradas no Capítulo 2, item 2.4, desta monografia.

Quanto às distinções das sociedades cooperativas em relação as demais sociedades, aquelas estão previstas na Lei n.º 5.764/71, que estabelece o regime próprio das cooperativas, diferenciador das demais formas de sociedades, conforme o Capítulo 2, item 2.5, desta monografia, legitimando, então, o tratamento diferenciado.

No que tange ao terceiro elemento identificado por BANDEIRA DE MELLO, constata-se, no contexto, nítida correlação entre os fatores diferenciais existentes e a distinção do regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica, porquanto a finalidade de realização do bem comum entre os cooperados promovida pela sociedade cooperativa, que atua como mandatária desses, autoriza a distinção do regime jurídico, tendo em vista que as sociedades comerciais são pessoas jurídicas que visam, precipuamente, a promoção do capital, e, muitas vezes, em detrimento dos valores sociais, uma vez que apoiadas pelo avanço constante do neo-liberalismo.

Por fim, quanto a verificação do quarto e último elemento necessário para a existência de um discrímen legal atinente às cooperativas, no que se refere ao tratamento jurídico diferenciado fundado em razão valiosa, protegida constitucionalmente, conforme foi visto no Capítulo 2, itens 2.1 e 2.3, desta monografia, não resta dúvidas de que a importância social dessas sociedades, consubstanciadas pelo apoio e estímulo conferido pelo legislador constituinte, são suficientes para legitimar o tratamento jurídico diferenciado, desigualando as cooperativas das demais formas de sociedades.

Em consonância com a Constituição da República, o processo de licitação pública também deve ser pautado pela isonomia entre os licitantes, ex vi do inciso XXI do art. 37 da CR/88, assegurando-se proeminência sobre os demais, uma vez que, atingindo diretamente os licitantes, garante um procedimento transparente, limpo e possibilita à Administração a obtenção da proposta mais vantajosa.

Se o conteúdo da isonomia traduz um tratamento desigual para os desiguais, na medida em que se desigualam, sem sobra de dúvidas a equiparação das sociedades cooperativas com as sociedades tradicionais será uma flagrante violação ao referido princípio, tendo em vista as diferenças entre ambas.

Diante da análise do princípio da isonomia no contexto da participação de sociedades cooperativas em licitações, para concluir, são oportunas as palavras de GINA COPOLA [59]:

Em verdade, afrontar ao princípio da igualdade é não permitir que cooperativas regularmente constituídas participem de licitações, com o pretexto de que tais instituições são privilegiadas. Tratar desigualmente S/As, S/C e Cooperativas é imprescindível, na medida em que essas sociedades são inteiramente desiguais sem sua natureza, seus institutos e propósitos. (g.n.)

E, derradeiramente, o posicionamento de RENATO LOPES BECHO [60]:

A igualdade no certame será entre os licitantes frentes à Administração, não entre si. A respeito ao princípio exige que a Administração trate todos os licitantes da mesma forma, com isonomia, sem estabelecer privilégios ou perseguições entre os participantes. Se fosse igualdade entre os concorrentes, quais seriam estas igualdades exigidas? Igualdade de natureza jurídica (apenas sociedades comerciais, não as civis; - ou dentre as comerciais: sociedades anônimas, ou limitadas?) igualdade nos custos de produção, ou no montante do lucro, ou no número de empregados, ou na cor dos olhos dos proprietários, ou na posição do licitante na cadeia produtiva? Seria impossível exigir igualdade material entre os licitantes! (g.n.)

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Destarte, pelos fundamentos acima expendidos, refuta-se a tese que se apega em uma possível violação ao princípio da isonomia para justificar o cerceamento do direito das cooperativas de participarem dos procedimentos licitatórios.


5 - O POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO

A doutrina a respeito da participação de cooperativas em licitações divide-se em três correntes: a que refuta plenamente a participação das cooperativas em licitações públicas; a que admite tal participação, mediante a adoção de cláusulas de equalização, tendentes a compensar os benefícios fiscais outorgados àquela categoria de sociedade; e aquela que defende a possibilidade livre da mencionada participação, independentemente da adoção de qualquer medida equalizadora.

Seguindo a primeira corrente, JUAREZ DE FREITAS [61], entende que as cooperativas não passam de um espectro, o que resultaria numa conclusão de que não gozam de uma titularidade formal necessária para figurarem num dos pólos de uma contratação, muito menos com a Administração Pública.

E, ainda:

LUCIANO FERRAZ [62]:

As cooperativas de serviços podem participar de licitações para colocar à disposição do Poder Público a mão-de-obra de seus associados? Não. De acordo com o art. 7° da Lei 5.764/71, as cooperativas singulares têm como característica a prestação de serviços diretamente aos seus associados, e não a terceiros. Infere-se daí que só podem visar ao interesse de seus partícipes, sendo-lhes vedado o objetivo de lucro, tal como preceitua o art. 3° da mesma lei. Destarte, a contratação dessas cooperativas fere, em primeiro plano, o princípio da legalidade. Não bastasse, as cooperativas gozam de determinados benefícios de natureza fiscal e social e, por isso, não têm condições de concorrer em igualdade com as demais sociedades comerciais inseridas no mercado. Sua participação no torneio fere os princípios da igualdade e da competitividade. Ademais, as cooperativas, pela sua própria característica, não atendem aos requisitos pertinentes à habilitação (v.g., regularidade fiscal) e, portanto, não ultrapassam esta fase da licitação. Nelas, quem possui as condições para tanto são os cooperados (autônomos). (g.n.)

Defendendo a corrente de equalização de propostas, retome-se a posição de TOSHIO MUKAI [63], verbis:

Quando indagados sobre tal questão temos posicionado no sentido de para que seja cumprido o princípio fundamental da igualdade haverá que se efetuar a equalização das proposta, somando-se à proposta da cooperativa, os tributos que recaem, na hipótese, sobre os preços das empresas. (g.n.)

Por derradeiro, a corrente doutrinária majoritária é aquela que defende a possibilidade livre da participação de cooperativas em licitações, independentemente da adoção de qualquer medida equalizadora, senão vejamos:

JAIR EDUARDO SANTANA [64]:

Não obstante a diversidade de decisões quanto à matéria, quer-se aqui deixar seguro o entendimento de que a sociedade cooperativa não pode ser absolutamente alijada de procedimento licitatório, devendo ser avaliada sua habilitação e classificação de acordo com o raciocínio de ponderabilidade que também deverá relevar o interesse público traduzido no objeto da licitação. (grifos originais)

MARÇAL JUSTEN FILHO [65]:

É possível e viável a participação de cooperativa em licitação quando o objeto licitado se enquadra na atividade direta e específica para a qual a cooperativa foi constituída. (g.n.)

JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR [66]:

Visto que a legislação específica traça perfil peculiar para as cooperativas, é preciso verificar se cada cooperativa que aspire participar de licitação, atende a tal perfil, em tese que o art. 28, incisos III, IV e V, da Lei n.º 8.666/93 remete às sociedades comerciais e civis em geral.(g.n.)

GERALDO LUÍS SPAGNO GUIMARÃES [67]:

Por fim, a posição que defendemos, aceita nas licitações a participações de cooperativa, como sociedade civil que é, nos termos do art. 4º da Lei Federal n.º 5.764/71, postulando-se a existência de previsão legal da participação desses entes nos certames licitatórios, insculpida no inciso III do art. 28 da Lei Federal n.º 8.666/93. Defendemos também ser descabida a equalização das propostas, por conflitar esse expediente com a inteligência da lei e como os princípios da licitação como adotamos (...) (g.n.)

SIDNEY BITTENCOURT [68]:

Tendo em vista que as cooperativas são sociedades civis, dotadas de capacidade jurídica (sujeito de direito e obrigações) e aptas para exercitar direitos e contrair obrigações, estão, consequentemente, aptas a participar de certames licitatórios, bem como a ser contratadas pela Administração Pública se sagrarem-se vencedoras dos certames. (g.n.)

MARCOS JURUENA VILLELA SOUTO [69]:

Não existe nenhuma vedação. Ao contrário, expressa é a admissão de cooperativas quando desenvolvam atividades para terceiros não associados, como se vê no artigo 86 da citada Lei; as cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e esteja em conformidade com a Lei. É mister esclarecer que, nos termos do artigo 111 dessa Lei, a receita auferida com essas atividades é considerada como renda tributável. Portanto, aí, a cooperativa está equiparada a uma pessoa jurídica de direito privado que presta atividades econômicas no mercado. (g.n.)

IVAN BARBOSA RIGOLIN [70]:

Este brevíssimo artigo visa apenas somar-se àqueles outros já escritos sobre o tema da participação das sociedades cooperativas em licitações, desde já informando que no sentido de que podem efetivamente participar, bem como, vencendo, ser contratadas como se foram qualquer outra espécie de empresa. (g.n.)

ZÊNITE CONSULTORIA [71]:

Assim, poderá a Administração contratar cooperativas, desde que em decorrência de procedimento licitatório previamente instaurado.

Note-se, por outro lado, que a participação dessas em procedimentos licitatórios não poderá se obstruída, até porque a Lei de Licitações admite a participação das cooperativas na qualidade de sociedades civis (art. 28, IV) (g.n.)

Com efeito, o posicionamento defendido nesta monografia segue a linha de pensamento da corrente que defende a possibilidade libre da participação de sociedades cooperativas nas licitações, independentemente da adoção de qualquer cláusula equalizadora, conforme foi visto no Capítulo 3, item 3.1.

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Sobre o autor
Samuel Mota de Souza Reis

advogado em Belo Horizonte (MG), mestrando em Direito Administrativo pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Samuel Mota Souza. A participação de cooperativas em licitações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 238, 2 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4916. Acesso em: 21 mai. 2024.

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