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A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro

(disregard of legal entity)

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30/03/2004 às 00:00
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O trabalho analisa os textos legais que expressam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, a positivação da "disregard doctrine" no ordenamento jurídico nacional, mas sem deixar de examinar a teoria juntamente com as pessoas jurídicas e sociedades empresárias.

Sempre tive certeza, que o destino da humanidade em sua grandiosa viagem determina-se para o bem ou para mal - na sua maioria para o bem - por grandes homens em grandes momentos.

WINSTON CHURCHILL


RESUMO

O objetivo desta pesquisa, na linha do Direito das Relações Sociais e da Atividade Empresarial, é demonstrar de forma clara e objetiva quais os dispositivos legais fazem expressa menção à teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine em nosso ordenamento jurídico e investigar quais são as impropriedades e acertos encontrados nestes artigos de lei. A metodologia utilizada segue as normas de apresentação de trabalhos da Universidade Federal do Paraná e como fonte subsidiária as normas da ABNT. Deste estudo conclui-se que é notável a evolução ocorrida no direito brasileiro após a entrada em vigor do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que trouxe expressamente para nosso ordenamento jurídico a disregard doctrine. Outros diplomas legais que comportam a teoria surgiram depois, mas o legislador brasileiro, como também o fez no CDC, acabou por não adotar teoria da desconsideração em sua formulação original, o que acarreta alguns desacertos, demonstrados no decorrer do trabalho.


INTRODUÇÃO

A presente monografia, ofertada à discussão do controverso tema pertinente à desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine, utilizada para superar a personalidade jurídica das sociedades empresárias, tem por escopo não exaurir as controvérsias sobre o assunto, muito menos explanar demasiadamente sobre o tema, mas sim demonstrar de uma forma prática e objetiva as referências expressas à teoria da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro. O tema somente é pertinente ao estudo da desconsideração no direito positivado brasileiro, ou seja, examinaremos nos seus pormenores a disregard doctrine inserta pelo legislador expressamente nas leis nacionais que a comportam. Não será objeto de estudo neste trabalho a desconsideração não expressamente prevista em lei, pois isto seria abandonar o objetivo proposto inicialmente.

Esta pesquisa traz seus estudos fundamentados em doutrinas e legislações nacionais e estrangeiras presentes no meio jurídico desde o início do século XIX nos Estados Unidos da América até os dias de hoje, iniciando o estudo pela matéria referente às pessoas jurídicas, após destaca as sociedades empresárias, a desconsideração da personalidade jurídica e por fim a desconsideração no direito positivo brasileiro.

O trabalho objetiva analisar os textos legais que expressam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou seja, estudar-se-á a positivação da disregard doctrine no ordenamento jurídico nacional, mas sem deixar de examinar a teoria juntamente com as pessoas jurídicas e sociedades empresárias. No que à teoria se referem, serão examinados e colocados em evidência os acertos, as imperfeições, benefícios, impropriedades e outras informações julgadas necessárias das seguintes leis: 8.078/1990, 8.884/1994, 9.605/1998 e Lei n.º 10.406/2002, respectivamente mais conhecidas como Código de Defesa do Consumidor, Lei Antitruste, Lei de Crimes Ambientais e Código Civil brasileiro.

O tema proposto no título do trabalho tem a finalidade de investigar a desconsideração da personalidade jurídica, conforme já frisado, somente no que a ela dizem respeito às leis no parágrafo acima mencionadas. Desdobra-se este estudo em uma análise pormenorizada de cada artigo de lei que comporta a disregard doctrine onde são colocadas em evidência as imperfeições e os acertos destes dispositivos legais.

Trata o primeiro capítulo do instituto da pessoa jurídica, seu estudo é realizado desde a origem nos direitos romano, germânico e canônico, após passa-se à natureza jurídica, análise, divisão e requisitos legais para a existência destes entes criados pelo direito. Posteriormente analisa-se a capacidade das pessoas jurídicas, finalizando esta matéria com investigações sobre o princípio da autonomia patrimonial, extinção e responsabilidade civil destas pessoas.

O segundo capítulo aborda as sociedades empresárias, destinadas à atividade econômica em geral. Inicia-se seu estudo pela personalização, efeitos e dissolução de forma objetiva e prática. Em seguida cuida-se da classificação das mesmas segundo o direito vigente, terminando com uma análise sobre as sociedades irregulares e de fato.

A terceira parte cuida do tema referente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, usada com o objetivo de coibir fraudes e abuso de direito através da personalidade jurídica, onde será visto que o princípio da autonomia patrimonial não é mais absoluto nestes tempos modernos. Primeiramente há um estudo histórico sobre a desconsideração com enfoque na doutrina original da disregard doctrine, sendo que após há uma investigação sobre a contribuição doutrinária e sua origem no direito brasileiro. Uma exposição da teoria é feita considerando-se a teoria maior e menor da desconsideração, terminando com um enfoque nos pressupostos necessários para se efetivar a aplicação deste instituto criado pelo direito.

O derradeiro capítulo, foco central desta monografia, aborda amplamente a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades empresárias no direito positivo brasileiro. Presente expressamente nas leis pátrias desde o início da década de 90, esta teoria revolucionou a maneira como os magistrados enfrentam os problemas relativos à fraude e ao abuso de direito nas questões societárias. Este capítulo final destina-se a analisar a disregard doctrine nos dispositivos legais elencados no Código de Defesa do Consumidor, Lei Antitruste, Lei de Crimes Ambientais e Código Civil, onde investiga as impropriedades e acertos destes diplomas legais. Começa o estudo com o exame do artigo 28 do CDC, avançando ao artigo 18 da Lei Antitruste, artigo 4º. da Lei de Crimes Ambientais e finalmente faz uma abordagem do artigo 50 do Código Civil brasileiro.

O método escolhido para a elaboração desta pesquisa é o indutivo e a técnica a pesquisa bibliográfica. Esta técnica foi escolhida em virtude da sua confiabilidade e qualidade que oferece ao pesquisador, o que dificultou um pouco o estudo em vista de que não há conhecimento de obras com enfoque a este tema específico.


1 AS PESSOAS JURÍDICAS

1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO E O CONCEITO DE PESSOA JURÍDICA

Importantíssimo é o estudo das pessoas jurídicas quando temos em mente o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, objeto de estudo do presente trabalho. Não há neste capítulo o propósito de discorrer profundamente sobre a personalidade jurídica, e sim fazer uma abordagem geral e ampla, mas não menos importante sobre esta matéria. Pois conhecendo corretamente de algumas considerações sobre as pessoas jurídicas, há de se ter uma melhor compreensão do trabalho em tela.

Rachel Sztasn, nos traz importante lição de Werner Flume, sobre a importância do estudo das pessoas jurídicas para se ter uma completa noção da teoria da desconsideração:

Diz Werner Flume na Encyclopädie der Rechtes-und Staatswissenchaft, quando trata das pessoas jurídicas, que o estudo da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades para alcançar seus membros é parte do estudo das pessoas jurídicas, o ‘imenso fenômeno da pessoa jurídica, esta estupenda criação humana’, segundo Salvatore Satta (SZTASN, 1999, p. 81, grifo do autor).

O homem, talvez almejando a felicidade, seu bem estar, a própria realização pessoal ou simplesmente com o intuito de amealhar riqueza, por muitas vezes se lança a fazer projetos que lhe garantam um futuro promissor, uma garantia de bem estar para si e para sua família.

Muitas vezes esses projetos ou negócios, frutos do seu trabalho, tomam grandes dimensões, difíceis de serem controlados de uma forma que não se apresente complexa, isto os tornam difíceis de serem administrados por uma única pessoa. Em razão destes motivos, o homem, através do direito, criou as pessoas jurídicas.

Estes entes intitulados pessoas jurídicas, são criados pela lei e constituídos pela união de pessoas que se esforçam para atingir algum objetivo em comum, mas a personalidade destas últimas não se confunde com a das primeiras, ou seja, são pessoas distintas cada uma com autonomia própria.

Quem melhor transmite a lição sobre este tema é Silvio Rodrigues:

A esses seres, que se distinguem das pessoas que os compõem, que atuam na vida jurídica ao lado dos indivíduos humanos e aos quais a lei atribui personalidade, ou seja, a prerrogativa de serem titulares do direito, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou pessoas morais (RODRIGUES, 2003, p.86, grifo do autor).

Pode-se concluir então, que as pessoas jurídicas são sujeitos de direitos e obrigações independentes de seus sócios, há uma distinção de personalidades, onde seus patrimônios não se confundem, há de se considerar que as

Pessoas jurídicas, portanto, são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil (RODRIGUES, 2003, p. 86).

Marcus Cláudio Acquaviva traz outro bom exemplo, para ele

Chama-se pessoa jurídica, coletiva ou moral o ente ideal, abstrato, racional, que, sem constituir uma realidade do mundo sensível, pertence ao mundo das instituições ou ideais destinados a perdurar no tempo. A pessoa jurídica pode ser formada por pessoas naturais [...] ou bens, no caso da fundação [...]. A pessoa tem existência que independe de cada um dos indivíduos que a integram, e seu objetivo é próprio, destacado da simples soma dos objetivos daqueles que dela participam (ACQUAVIVA, 1999, p. 531-532, grifo do autor).

1.2.A ORIGEM E A NATUREZA DA PESSOA JURÍDICA

Tudo o que a inteligência do ser humano concebe, todos os frutos e obras da sua intelectualidade tendem a evoluir, e não foi diferente com uma de suas maiores criações no ramo do direito, a pessoa jurídica.

O processo de evolução do que hoje se conhece por personalidade jurídica, passou do princípio da universalidade para o princípio da unidade. No primeiro, era considerado isoladamente o indivíduo que fazia parte de uma entidade, esta não possuía autonomia, ao passo que no segundo, a entidade já desfrutava de autonomia patrimonial.

Foram os direitos romano, germânico e canônico, os principais influentes da concepção que se tem hoje da personalidade jurídica, embora se desconhecesse inicialmente no direito romano, o conceito de pessoa jurídica.

1.2.1As pessoas jurídicas para os romanos

Os romanos somente tinham um conceito de pessoa jurídica no direito pós-clássico, mas esta já existia antes disso, sua existência, para eles não era desconhecida. Demorou a ocorrer, a desvinculação das pessoas naturais das pessoas jurídicas, pois os romanos idealizavam que o conjunto de bens ou o patrimônio pertencente a várias pessoas, não chegava a formar uma corporação, ou entidade idealizada, abstrata, mas sim, este patrimônio pertencia aos membros que constituíam este conjunto de bens, onde cada um era titular de uma parcela destes.

Os romanos somente conseguem ter uma idéia de corporação a partir do momento em que "[...] se admite uma entidade abstrata, com direitos e obrigações ao lado da pessoa física. Já no Direito clássico, os romanos passam a encarar o Estado, em sua existência, como um ente abstrato, denominando os textos de populus romanus." (VENOSA, 2001, p. 201, grifo do autor)

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Operou-se, então, um desenvolvimento teórico no sentido de distinguir-se a universitas dos singuli. O patrimônio passou a constituir propriedade da entidade, sem nenhuma relação de condomínio com os seus membros componentes. Definiram-se duas modalidades de pessoas jurídicas: as universitates personarum, representadas por agrupamentos de indivíduos, e as universitates bonorum,formadas pelos estabelecimentos, fundações, hospitais etc. Excluía-se a societas, negando-se-lhe personalidade, por ser ela encarada como um fenômeno puramente contratual, vínculo obrigacional entre os respectivos sócios, considerados os verdadeiros titulares dos direitos (SERPA LOPES, 1996, p. 358, grifo do autor).

Para os antigos romanos, havia duas categorias de pessoas jurídicas, embora estas denominações não fossem originariamente deles. Podemos citar as universitates personarum e rerum. As primeiras, denominadas também de corpus, ou universitas, possuiam uma personalidade e patrimônio próprios, distintos de seus integrantes. As universitates rerum eram fundações, formadas por bens, com fins determinados, embora os romanos de início desconhecessem o conceito de fundação, pois estas são "[...] os templos no direito clássico; no direito pós-clássico, são as igrejas, os conventos, os hospitais e os hospícios, além dos estabelecimentos de beneficência." (VENOSA, 2001, p. 202)

Merece destaque o posicionamento de Marçal Justen Filho, para ele

Duvida-se se o conceito de pessoa jurídica foi encontrado no direito romano.13 Retomado na Idade Média, a partir do trabalho de Sinibaldo de Fleshi (depois papa Inocêncio IV),14 a construção dogmática atingiu contornos mais ou menos definidos, com a concepção de que a pessoa jurídica era persona ficta. Tal significativa, segundo a grande maioria da doutrina atual, entendimento totalmente diverso daquele posteriomente consagrado por Savigni. A ficção desse não é a ficção dos canonistas e glosadores. Para estes, a fictio significava criação da mente humana (ou a existência no mundo das idéias); já para os ficcionistas do século XIX, a fictio da pessoa jurídica estava na sua ‘falsidade’ (JUSTEN FILHO, 1987, p.18, grifo do autor).

1.2.2A contribuição do direito germânico e canônico

Posteriormente, de uma forma mais lenta, ocorreu entre os germânicos o desenvolvimento da teoria da personalidade jurídica, passando-se novamente da universalidade para a unidade.

O Direito canônico também houve por contribuir para a formação da personalidade jurídica, como explica Lopes:

Todos os institutos da Igreja foram reputados entes ideais, fundados por uma vontade superior. Assim, qualquer ofício eclesiástico, dotado de um patrimônio, é tratado como uma entidade autônoma, e a cada novos ofícios criados correspondem outras tantas entidades independentes. Desse conceito surge o de fundação também autônoma, como o pium corpus, o hospitalis e a sancta domus. A universitas passa a representar um corpus mysticum, um nomem iuris (SERPA LOPES, 1996, p. 359, grifo do autor).

1.2.3.Pessoas jurídicas, principais teorias acerca de sua natureza jurídica

Os doutrinadores, no que alude à pessoa jurídica, formularam diversas teorias a fim de determinarem sua natureza jurídica, neste trabalho são citadas as mais importantes, são elas: a teoria da ficção legal, teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva, teoria da pessoa jurídica como realidade técnica e a teoria da instituição.

A teoria da ficção legal, afirma que é a lei, através de uma ficção, a criadora da personalidade jurídica, e que esta não tem existência real. A pessoa jurídica é uma ficção legal que visa atender os interesses das pessoas. Sustentada por Savigny, esta teoria teve maior relevância na segunda metade do século XIX.

No que se reporta à segunda teoria, esta sustenta que as pessoas jurídicas são entes reais, criados pela sociedade, com autonomia própria. A teoria provém do direito germânico e é sustentada por Gierke e Zitelmann.

A teoria da pessoa jurídica como realidade técnica, existe para suprir os interesses humanos de uma forma indireta.

O Estado, as associações, as sociedades existem; uma vez que existem não se pode concebê-los a não ser como titulares de direitos. A circunstância de serem titulares de direito demonstra que sua existência não é fictícia, mas real. Apenas, tal realidade é meramente técnica, pois, no substrato, visa à satisfação dos interesses humanos (RODRIGUES, 2003, p. 88).

Formulada por Hauriou, a teoria da instituição sustenta que "uma instituição preexiste ao momento em que uma pessoa jurídica nasce." (RODRIGUES, 2003, p. 88)

As pessoas jurídicas, para esta teoria, se dedicam a um determinado fim, o qual às vezes não pode ser conseguido pelo homem individualmente, há necessidade destes se unirem ordenadamente para obterem êxito no que pretendem.

1.2.4.A personalidade jurídica no Brasil

Até o início do século XX o direito brasileiro não reconhecia as pessoas jurídicas em seu ordenamento, nem mesmo o Código Comercial de 1850 às contemplava.

Foi somente o Decreto 1.102 de 21 de novembro de 1903, o qual instituí regras para o estabelecimento de empresas de armazéns gerais, determinando os direitos e obrigações dessas empresas, que introduziu no direito pátrio a expressão pessoa jurídica, concedendo esta personalidade às empresas de armazéns de que tratava.

Posteriormente, surgiu no ano de 1907, o Decreto 1.637, que reconhecia a personalidade jurídica dos sindicatos. O antigo Código Civil de 1916 tratava do assunto nos artigos 16 e 20. O atual Código de 2002 contempla a personalidade jurídica amplamente.

Quanto aos doutrinadores, foi Teixeira de Freitas, através do seu esboço de Código Civil, quem introduziu a teoria da personalidade jurídica, no direito brasileiro. Freitas "[...] apresentou a regulamentação das pessoas jurídicas, incluindo as sociedades na categoria de pessoas [...] (REQUIÃO, 1998, p. 347).

O artigo 17 do referido esboço prescrevia que as pessoas ou eram de existência visível, ou de existência ideal, que poderiam adquirir os direitos que eram regulados pelo então código, nos casos e pelo modo e forma que no mesmo se determinar.

Outros doutrinadores da época também se lançaram a estudar o tema, temos como exemplo J. X. Carvalho de Mendonça, o professor Porchat e Clóvis Beviláqua.

1.3 A DIVISÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS, DIREITO PÚBLICO E PRIVADO

De acordo com o critério utilizado pelo Código Civil brasileiro as pessoas jurídicas são divididas em duas grandes classes: pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado. As de direito público ainda subdividem-se em pessoas jurídicas de direito público interno e pessoas jurídicas de direito público externo.

O artigo 40 do Código Civil nos traz as pessoas jurídicas de direito público interno, são estas: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, Municípios, autarquias e outras entidades de caráter público criadas pela lei. No que se reporta às autarquias, temos como exemplo a OAB e o INMETRO, e quanto às entidades de caráter público criadas por lei, os partidos políticos são um exemplo clássico.

As pessoas jurídicas de direito público externo são de acordo com o artigo 42 do mesmo código: os Estados estrangeiros e as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público, exemplo destas últimas são organizações como a ONU e a Santa Sé. "A personalidade jurídica do estado, em direito das gentes, diz-se originária, enquanto derivada a das organizações." (REZECK, 1998, p. 155)

Quanto às pessoas jurídicas de direito privado, estas vem elencadas no artigo 44 do Código Civil. São as associações, fundações e sociedades, pertencem à autonomia privada, objetivam fins e interesses comuns de particulares.

1.4 REQUISITOS LEGAIS PARA A EXISTÊNCIA DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

São as normas ou atos jurídicos que tornam as pessoas jurídicas existentes do ponto de vista legal, e permitem, que elas possam realizar todos os atos que não lhes sejam vedados pela lei. Assim, as pessoas jurídicas, em seu próprio nome, poderão abrir contas correntes, contrair empréstimos etc.

Parafraseando Serpa Lopes (1996, p. 373), Existem três sistemas que vigoram acerca das condições para a existência das pessoas jurídicas:

1.º) sistema da concessão, onde há necessidade de autorização estatal para a aquisição da personalidade jurídica;

2.º) sistema misto, onde haverá necessidade de concessão estatal somente para determinada classe de pessoas jurídicas, este é o sistema adotado pelo direito brasileiro;

3.º) sistema da plena liberdade de formação de associações.

De acordo com o artigo 45 do Código civil, as pessoas jurídicas somente existem legalmente quando da inscrição do seu ato constitutivo no respectivo registro. Ainda determina o mesmo artigo que, poderá, antes ainda, ser necessária a autorização ou do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Desta feita, cabe ao estado a fiscalização das pessoas jurídicas de direito privado. As sociedades e associações, ao serem criadas, devem obedecer ao requisito do prévio registro formal, para o início da personalidade jurídica, para a publicidade de sua existência.

O ato de vontade das pessoas naturais na criação não é o bastante, no sistema, pois fica condicionado ao ato registral, que confere reconhecimento à nova pessoa jurídica (LOTUFO, 2003, p. 131).

O artigo 985 do nosso Código Civil, no que diz respeito à sociedade, normatiza que esta adquire personalidade jurídica com a inscrição dos seus atos constitutivos no registro próprio e na forma da lei, devendo-se ainda respeitar o que prescreve o artigo 1.150 do mesmo diploma legal.

É importante também ressaltar que o registro civil das pessoas jurídicas é disciplinado atualmente pelo Título III da lei de Registros Públicos, Lei n.º 6.015 de 31 dezembro de 1973.

Desta forma, são requisitos para se constituir uma pessoa jurídica, elementos jurídicos formais e materiais, além da licitude de seu objetivo ou fim.

Quanto aos requisitos formais, há necessidade da aquisição da capacidade jurídica na forma da lei, a qual será adiante estudada.

Quanto aos requisitos materiais, estes se fundam na vontade humana, onde se organizam bens ou pessoas com objetivo de criar uma entidade com personalidade distinta de seus sócios.

Por último temos o requisito da licitude, que se não for cumprido poderá ser causa da extinção ou dissolução da pessoa jurídica, conforme anuncia o Decreto-lei 9.085 de 1946.

1.5. CAPACIDADE E REPRESENTAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS

A capacidade apresentada pelas pessoas jurídicas advém da personalidade jurídica que a lei lhes confere. É portanto o ordenamento jurídico, que lhes outorga essa capacidade quando essas pessoas preenchem determinados requisitos.

A pessoa jurídica quando adquire capacidade

"[...] pode exercer todos os direitos subjetivos, com exceção dos próprios ao ente humano, como ser biológico, ou, por outras palavras, a pessoa jurídica tem capacidade para o exercício de todos os direitos compatíveis com a natureza especial de sua personalidade. [...] E quanto à capacidade, dentro dos limites próprios à sua natureza, ela é a mais ampla possível, não comportando quaisquer restrições (SERPA LOPES, 1996, p. 374).

O instante em que a pessoa jurídica registra o contrato constitutivo que lhe deu origem, na repartição competente, é o instante em que adquire a capacidade jurídica, adquire sua personalidade, o que a torna capaz de exercer os direitos que lhe são compatíveis.

O artigo 52 do Código Civil garante as pessoas jurídicas a proteção dos direitos relativos à personalidade, visto que não são admitidos a elas os direitos personalíssimos. Para exercê-los, entretanto, elas necessitam das pessoas físicas que as representam. Regra esta que vinha inserta no artigo 17 do Código Civil de 1916, e suprimida no atual.

Quanto à representação em juízo, esta é regulada pelo artigo 12 do Código de Processo Civil, o qual preceitua no seu caput que serão representadas em juízo, ativa e passivamente:

I.a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;

II.o Município, por seu prefeito ou procurador;

III.a massa falida, pelo síndico;

IV.as pessoas jurídicas, por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando, por seus diretores;

V.as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens;

VI.a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único);

§ 2.º - As sociedades sem personalidade jurídica, quando demandadas, não poderão opor a irregularidade de sua constituição.

§ 3.º - O gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial.

Como sabemos, a pessoa jurídica tem existência distinta de seus integrantes ou membros, e os atos do representante, quando atuar dentro dos limites da lei e do ato constitutivo, ficam vinculados à pessoa jurídica onde o representante atua. "Ultrapassados tais poderes, exime-se a sociedade da responsabilidade, cabendo ao representante que exorbitou responder pelo excesso." (RODRIGUES, 2003, p. 94)

1.6. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL

Adquirindo personalidade jurídica, adquire-se a autonomia patrimonial, que nada mais é do que a separação dos patrimônios dos sócios do das sociedades.

É uma proteção tanto para os sócios como para as sociedades, pois aqueles não respondem com seu patrimônio por dívidas destas, e estas resguardam seu patrimônio no caso de dívidas de um ou alguns dos sócios. O que não ocorre com as sociedades irregulares, as quais sem a devida personalidade jurídica, acabam por confundir seu patrimônio com o dos sócios, e estes, então respondem ilimitadamente pelas obrigações contraídas por aquelas.

Diferente também é a responsabilidade dos sócios das sociedades ilimitadas ou mistas. Nas primeiras, as sociedades em nome coletivo, todos os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações sociais, enquanto nas últimas, sociedades em comandita simples ou por ações, somente alguns respondem de forma ilimitada.

As pessoas jurídicas, validamente constituídas, respondem somente com seu patrimônio pelos atos praticados por seus administradores, desde que estes atos sejam válidos aos olhos da lei.

É esta autonomia, a patrimonial, um dos impulsores da economia moderna, pois se não existisse esta separação de patrimônios, pessoas, empresários, industriais, comerciantes etc., não se lançariam aos riscos que a conjuntura econômica atual oferece nos dias de hoje, é um fenômeno praticamente no mundo todo, onde pouquíssimas pessoas arriscariam seu patrimônio pessoal em algum negócio que não oferecesse cem por cento de certeza de retorno.

O artigo 596 do Código de Processo Civil, também preceitua que os bens do sócio não respondem pelas dívidas da sociedade, exceto nos casos previstos em lei, ainda afirma que quando demandado, o sócio tem o direito que exigir que primeiro sejam exauridos os bens da sociedade.

Mas o princípio da autonomia patrimonial tem suas limitações, e nos dias atuais está perdendo um pouco de seu prestígio, como nos adverte Fábio Ulhoa Coelho:

Em suma, observa-se certa tendência do direito no sentido de restringir ao campo das relações especificamente comercias os efeitos plenos das personalizações das sociedades empresárias. [...] O princípio da autonomia patrimonial tem sua aplicação limitada, atualmente, às obrigações da sociedade perante outros empresários. Se o credor é empregado, consumidor ou o estado, o princípio não tem sido prestigiado pela lei ou pelo juiz (COELHO, 2002, p.19-20).

Deste modo, quando os credores da sociedade não são outros comerciantes, empresários, bancos etc., o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica poderá restar abalado, dando ensejo à desconsideração da personalidade jurídica, objeto de estudo deste trabalho, que será analisada adiante nos seus pormenores.

1.7. EXTINÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS

De diferentes formas se extinguem as pessoas jurídicas de direito público e privado. As primeiras terminam da mesma maneira como foram criadas, "Logo, extinguem-se pela ocorrência de fatos históricos, por norma constitucional, lei especial ou tratados internacionais." (DINIZ, 1997, p.162)

Quantos às pessoas jurídicas de direito privado, com finalidade lucrativa, quando da sua dissolução, seus bens são repartidos entre os sócios na proporção de suas participações.

Silvio Rodrigues aponta que:

O Decreto-lei n. 9.085/46 trata da proibição de se registrarem pessoas jurídicas e de sua dissolução, se já registradas, quando têm por objeto fins ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral ou aos bons costumes (RODRIGUES, 2003, p. 98).

No que se reporta ao destino dos bens da pessoa jurídica, quando esta não tiver finalidade lucrativa, deve seguir o que rege seu estatuto, mas no caso de haver omissão "[...] deve-se examinar se os sócios adotaram alguma deliberação eficaz sobre a matéria. Se eles nada resolveram, ou se a deliberação for ineficaz, devolver-se-á o patrimônio a um estabelecimento público congênere ou de fins semelhantes." (RODRIGUES, 2003, p. 88)

Entretanto, deve-se seguir a regra do artigo 61, parágrafo 2º., do Código Civil, quando não for possível encontrar estabelecimentos nas condições de que trata o mesmo artigo, neste caso, os bens os bens da pessoa jurídica passarão a integrar o patrimônio da Fazenda pública.

1.8. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS JURÍDICAS

Diferentes são os tratamentos das responsabilidades civis extracontratuais que envolvem as pessoas jurídicas de direito público e privado. Não trataremos da responsabilidade civil das primeiras neste trabalho, pois somente nos interessa, para o melhor estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado.

Na esfera civil a pessoa jurídica de direito privado é responsável, contratual e extracontratualmente. O artigo 389 do Código Civil nos traz a hipótese da responsabilidade contratual, no caso de a pessoa jurídica se tornar inadimplente.

A questão da responsabilidade extracontratual é mais complexa e merece maior análise.

A responsabilidade decorrente de atos ilícitos praticados pelos representantes das pessoas jurídicas, quando esses causassem danos a outrem, antes de entrar em vigor o Código Civil de 2002, era vista pela jurisprudência de maneira diversa do que expressavam os artigos 1.521, 1.522 e 1.523 do antigo código.

Da combinação da leitura dos referidos artigos pode-se concluir que o ônus da prova, no caso de uma lide que tinha por objeto a reparação de um dano causado pelo ato do representante da pessoa jurídica, recaía sobre quem alegava o dano. Este deveria provar que a pessoa jurídica concorreu com culpa ou negligência para a ocorrência do evento danoso.

Porém, a jurisprudência da época dava interpretação diferente ao artigo 1.523 e se orientou por transferir o ônus da prova à pessoa jurídica, deveria esta então demonstrar que não concorrera com culpa ou negligência.

"Com efeito, essa jurisprudência, em vez de reconhecer a obrigação da vítima de demonstrar a culpa do patrão, do amo, do comitente etc., criava uma presunção de culpa, de onde decorre que seriam aquelas pessoas que deveriam provar sua não-culpa." (RODRIGUES, 2003, p. 95, grifo do autor)

Hoje, não mais prospera a presunção de culpa dos representantes da pessoa jurídica, pois o Código Civil em vigor não contém regra semelhante à do artigo 1.522 do Código de 1916. "[...] a responsabilidade das pessoas jurídicas por ato de seus administradores, quer se trate de sociedades, quer de associações, só emerge se o autor da ação demonstrar a culpa da pessoa jurídica, quer in vigilando, quer in eligendo." (RODRIGUES, 2003, p. 96, grifo do autor)

A responsabilidade da pessoa jurídica decorrente de dano ambiental não é objeto de estudo neste trabalho, no que diz respeito à pessoa jurídica, será estudada desconsideração de sua personalidade na Lei de Crimes Ambientais no item 4.4 do capítulo 4.

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Sobre o autor
Ronaldo Roberto Reali

Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau - FURB</p>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REALI, Ronaldo Roberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro: (disregard of legal entity). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 266, 30 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5008. Acesso em: 19 abr. 2024.

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