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O contrato de cartão de crédito à luz do Código de Defesa do Consumidor

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20/04/2004 às 00:00
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IV - AS RELAÇÕES JURÍDICAS: ASSOCIADO, EMISSOR, ESTABELECIMENTO, OPERADORA.

No magistério do mestre Waldirio Bulgarelli, "entre o banco e o titular do cartão entende-se, entre nós, que há um contrato inominado, misto, de abertura de crédito e de prestação de serviços", e complementa que "no Brasil, intervém no contrato-tipo não o banco diretamente, mas a chamada empresa emissora. Trata-se em regra de uma sociedade jurídica autônoma, embora ligada e dependente, em termos de grupo, direta ou indiretamente, dos bancos que patrocinam o cartão" (Contratos Mercantis, pág. 678).

Da utilização do cartão de crédito extraem-se quatro relações jurídicas distintas, cada qual interligada entre si. A primeira, que pode ser classificada como direta, estabelece-se entre o associado e a empresa emissora do cartão de crédito. Nela, considerando o estipulado no contrato de adesão, permanece o emissor responsável pelo pagamento das transações procedidas com o cartão pelo associado, até o quantum do limite de crédito contratado, pagando, para tanto, uma taxa anual para manutenção do sistema creditício.

A segunda relação é firmada entre o emissor e o estabelecimento comercial (fornecedor de bem ou serviço). O Banco ou empresa administradora do cartão de crédito, diretamente ou por meio de empresa terceirizada, se responsabiliza pelo pagamento das despesas realizadas pelos associados nas lojas credenciadas. Tal procedimento acaba por dificultar sobremaneira a as eventuais reclamações feitas por associados relativas aos produtos adquiridos, pois, como bem observa Nelson Abrão, "o portador não pode se opor a que o emissor pague o fornecedor", não podendo ele também "se recusar a reembolsar o emissor alegando as exceções que teria contra o fornecedor" (curso de Direito Bancário, 1988, pg. 114).

A outra relação jurídica decorrente do uso do cartão de crédito é aquela entre o associado e o estabelecimento comercial, sendo que esta não perde a sua característica essencial de compra e venda de bens ou serviços apenas pelo fato do meio utilizado para pagamento ter sido o cartão de crédito. Permanece, pois, como um contrato escrito ou verbal.

Há, ainda, a relação eventualmente instituída entre o emissor e uma empresa operadora ou, em se tratando de empresa não bancária, financiadora. A operadora é responsável pela organização do sistema como intermediária, devendo zelar pela captura, transmissão, processamento e liquidação das transações procedidas com cartões de crédito, e a ela está incumbida a função de filiar estabelecimentos comercias que comprometer-se-ão a aceitar os cartões sem efetuar acréscimos nos preços. Em contraprestação, receberá uma comissão dos estabelecimentos que pode variar entre 5 e 10% sobre o valor da transação.

Por sua vez, casos há em que o emissor não é uma instituição financeira, restando impedido de concretizar financiamentos com recursos próprios. Como decorrência, insere-se no sistema contratual do cartão uma empresa financiadora, que fornecerá o crédito necessário para manutenção da atividade econômica. Atualmente, apenas algumas poucas empresas socorrem-se desse artifício para obter crédito, já que a maioria dos cartões de crédito em circulação é do tipo bancários.

Apesar do cartão de crédito ser, no entendimento de Waldirio Bulgarelli, um negócio jurídico integrado por vários contratos, estes se unificam "pela finalidade proposta: permitir que o consumidor adquira de imediato, em determinados estabelecimentos comerciais ou de serviços, os bens e serviços de que necessita (…), fazendo-se necessária uma regulamentação abrangendo as ligações entre esses contratos, e conferindo, assim, legislativamente, a unidade que vem sendo imperfeitamente configurada pelos ajustes obrigacionais" (Contratos Mercantis, pág. 679/680).


V - O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

A Lei n. º 8.078, de 11 de setembro de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, é uma conquista recente, e não obstante seus dez anos de vigência, já serviu de modelo para proteção do mercado capitalista até mesmo em outros países, como a Holanda.

Nasceu como projeto de lei a ser elaborado pelo Conselho de Defesa do Consumidor, constituído antes da promulgação da Constituição de 1988, para amparar integralmente o consumidor dos malefícios advindos da sociedade de consumo moderna, principalmente na relação estabelecida junto ao fornecedor de produtos e serviços, já que este adquiriu, ao longo dos anos, o posicionamento de parte mais forte.

Tinha em vista o legislador, pois, ao elaborar o projeto de lei que se tornaria a codificação das normas de consumo, contrabalançar a relação estabelecida entre consumidor e fornecedor, cumprindo desta maneira o previsto no art. 5º, XXXII, da Carta Magna: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Até por isso, cuidou de definir o que é consumidor (art. 2º), fornecedor (art. 3º), produto (art. 3º, § 1º) e serviços (art. 3º, § 2º).

Todavia, como tudo o que é novo, demorou algum tempo para que os juristas apreendessem claramente o objetivo e o conteúdo do Código de Defesa do Consumidor, e até hoje a maior dificuldade vem sendo quanto à sua aplicabilidade ou não nos processos interpostos ante o Judiciário.

Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor

As relações entre usuários de cartão de crédito com as empresas administradoras e instituições financeiras passaram a chamar a atenção dos juristas brasileiros há pouco tempo, haja vista a rapidez com que foi implementado na sociedade de consumo, bem como a maciça divulgação e propaganda do produto e, conseqüentemente, a falta de regulamentação legal ante os novos problemas que lhes estavam sendo apresentada.

Isto porque a novidade trouxe consigo, como bem ilustrou o mestre Waldirio Bulgarelli em sua obra Contratos Mercantis, "uma operação que se efetiva através de assinatura pelo beneficiário de um impresso contendo, em letras minúsculas, as condições do negócio, e que, portanto, é um segmento importante do chamado direito do consumidor" (pág. 666).

Fato é que o próprio Código de Defesa do Consumidor não tratou de modo específico acerca do sistema de cartão de crédito e dos eventuais problemas que poderiam sobrevir, existindo, por conseguinte, a necessidade de uma regulamentação específica da matéria, já que a própria jurisprudência não tem se mostrado em uníssono. Neste sentido, há se ressaltar com louvor a iniciativa do Instituto dos Advogados do Brasil, que elaborou um projeto de regulamentação acerca da matéria, visando proteger principalmente o interesse do consumidor.

Nos dias de hoje, a jurisprudência dominante é no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável a todas as operações bancárias, como comprova o entendimento unânime da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o recurso especial de um banco contra devedores de financiamento de imóvel, em ação de revisão contratual fundada em correções abusivas após a alteração da moeda para o Real.

Logo em primeira instância foi decidida a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no contrato sub examine, acarretando em nulidade da cláusula que versava sobre a autorização irrevogável para o débito das prestações mensais em conta corrente, redução da taxa de juros para 12% ao ano e a multa, que era de 10% para 2%, manutenção da atualização mensal pela caderneta de poupança, e aplicação de juros moratórios de 1% ao ano.

Em recurso dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, que foi acolhido em parte, o relator do processo, ministro Barros Monteiro, asseverou que em se tratando "de mutuário que se dirigiu ao estabelecimento bancário a fim de obter financiamento para aquisição de bem imóvel, na qualidade, pois, de consumidor final, os bancos ficam submetidos ao Código de Defesa do Consumidor, como prestadores de serviços". Apesar desse posicionamento, o relator não se olvidou da jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, de que a taxa de juros de 12% ao ano limitada pela Lei de Usura não seria aplicável às operações provenientes de instituições financeiras.

Compartilhando do mesmo entendimento do eminente relator, o ministro César Rocha salientou: "O CDC incide sobre todas as relações e contratos pactuados pelas instituições financeiras e seus clientes, e não apenas na parte relativa à expedição de talonários, fornecimento de extratos, cobrança de contas, guarda de bens e outros serviços afins. As relações existentes entre os clientes e o banco apresentam nítidos contornos de uma relação de consumo".

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Depreende-se, portanto, que, em sendo o cartão de crédito um produto quase em sua integridade bancário, salvo aqueles emitidos por administradoras autônomas, as normas contidas no Código de Defesa do Consumidor são aplicáveis em suas operações e regulamentações.


VI - O TERMO DE COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA

Antes de analisar propriamente o Termo de Ajustamento e Conduta firmado entre o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e as Associadas da ABECS – Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, necessário se faz um breve relato de alguns de seus antecedentes.

Em 13 de março de 1998, a Secretaria de Direito Econômico, na atribuição de suas funções legais, editou a Portaria SDE n. º 004, em aditamento ao elenco do art. 51 da Lei n. º 8.078/90, e do art. 22 do Decreto n. º 2.181/97, com o fim de orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor quanto à determinação de cláusulas abusivas relativas ao fornecimento de produtos e serviços. Restaram nulas de pleno direito, dentre outras, as cláusulas contratuais que estabeleciam cumulativamente a cobrança de comissão de permanência e correção monetária e as que permitiam ao fornecedor emitir títulos de crédito em branco ou livremente circuláveis por meio de endosso na representação de toda e qualquer obrigação assumida pelo consumidor.

No mês de junho do mesmo ano de 1998, a Secretaria de Direito Econômico instaurou o Processo Administrativo n. º 08000.022668/96-44 contra várias empresas emissoras de cartões de crédito. Muitas foram as alegações feitas pelo Órgão, dentre elas, remessa de cartões aos consumidores sem prévia solicitação, existência nos contratos de cláusulas mandatos, constatação de desvantagem excessiva, etc.

Outro Processo Administrativo, desta vez de n. º 08012.006629/98-69, foi instaurado em 13 de outubro de 1998 pela Secretaria de Direito Econômico contra algumas empresas emissoras de cartão de crédito. Neste, fora declarada nula de pleno direito, com fulcro na Lei n. º 8.078/90 regulamentada pelo Decreto n. º 2.181/97, suspendendo seus efeitos, a cláusula mandato, bem como as demais cláusulas que:

  1. Estabelecessem multa moratória de 10% (dez por cento), incidente sobre o saldo devedor, por falta, insuficiência ou atraso de pagamento, que esbarram frontalmente com o disposto no art. 52, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, visto que a Lei n. º 9.298/96 limitou a aplicação daquelas multas ao percentual de 2% (dois por cento) do valor da prestação inadimplida ao dar nova redação ao aludido § 1º do art. 52;
  2. Determinassem multa convencional de até 20% (vinte por cento), incidente sobre o saldo devedor, aplicável cada vez que ocorrer o inadimplemento de qualquer cláusula ou condição que dê causa à rescisão do respectivo contrato, por colidir com o previsto no art. 917 do Código Civil;
  3. Estipulassem o pagamento de honorários advocatícios, ainda que em fase amigável, na qual há imposição de penalidade devida pelo associado no percentual de até 20% (vinte por cento) sobre o valor total da cobrança;
  4. Fixassem cobrança de honorários advocatícios pagos em razão de determinação judicial do débito, já que cabe apenas ao juiz arbitrar a adequada verba honorária ao caso específico;
  5. Delimitasse multa convencional de 50% (cinqüenta por cento) incidente sobre o valor da obrigação, por descumprimento das normas determinadas pelo Banco Central, nas situações do cartão de validade internacional.

Nesse contexto foi firmado o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta em 02 de Dezembro de 1998 entre o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e as Associadas da ABECS – Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, em decorrência da grande quantidade de procedimentos administrativos oriundos de reclamações feitas pelos associados no tocante ao comportamento na comercialização do cartão de crédito e seus serviços, bem como à regulamentação prevista nos Instrumentos de Contratos utilizados pelas Instituições Financeiras e Administradoras.

Teve por objeto manter, preservar, estabelecer e proteger as relações de consumo relativas à emissão e uso de cartões de crédito, porém, para melhor entendimento, preliminarmente faz-se indispensável tecer algumas considerações.

Independente da maneira com o qual o cartão de crédito é adquirido, o associado, ao aderir ao respectivo contrato, não tem prévia ciência das cláusulas que irão reger a relação junto ao emissor, uma vez que o Contrato somente é encaminhado por ocasião da emissão do plástico.

Por certo, muitas dessas reclamações seriam evitadas se o emissor remetesse a cópia do contrato ao futuro associado no momento em que houvesse a autorização expressa para emissão de cartão de crédito, o que não é feito.

Ainda, há vezes em que o cartão de crédito é emitido ao associado sem que este tenha autorizado expressamente ou solicitado o produto em decorrência de seu interesse.

Esse comportamento, como também algumas cláusulas inseridas nos Contratos de cartão de crédito, foi apontado pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, após análise dos procedimentos administrativos, como abusivas, considerando disposições da Lei n. º 8.078, de 11 de setembro de 1990, regulamentada pela Lei n. º 2.181, de 20 de março de 1997.

Diante disso, e permitindo a Secretaria de Direito Econômico o ajustamento de conduta, haja vista a fase em que se encontravam os aludidos procedimentos administrativos, restou firmado o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta. Nele, comprometeram-se as Associadas da ABECS a:

  1. Retirar, dos contratos vigentes e a viger, a cláusula pertinente à multa convencional cambial de 50% (cinqüenta por cento), quando descumpridas normas do Banco Central do Brasil e das Administradoras/Empresas, no uso do cartão de crédito internacional;
  2. Não encaminhar cartões de crédito sem prévia e expressa solicitação, ou sem prévia consulta do Emissor e expressa e comprovada concordância ao consumidor;
  3. Limitar, mesmo nos contratos em que ainda não esteja previsto este índice, a multa moratória a 2% (dois por cento) do valor da obrigação inadimplida, nos termos exatos do § 1º do artigo 52 da Lei n. º 8.078, de 11 de setembro de 1990, com a redação dada pela Lei n. º 9.298, de 1º de agosto de 1996. Esta disposição vai ao encontro do estabelecido no art. 9º da Lei de Usura, que prevê: "Não é valida a cláusula penal superior a importância de 10% do valor da dívida";
  4. Rever a cláusula referente aos honorários advocatícios em fase amigável, nos termos do inciso XII do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, e a conferir reciprocidade ao consumidor em relação ao ressarcimento dos custos da cobrança dos valores a que tenha direito;
  5. Adaptar os contratos a fim de que a parte sucumbente seja ela o consumidor ou o emissor, seja obrigada ao pagamento dos honorários advocatícios fixados pelo juiz, sem prefixação do percentual, conforme dispõe o art. 20 do Código de Processo Civil;
  6. Fazer prever em cláusula específica que a multa compensatória, no limite estabelecido pelo Emissor, somente poderá referir-se e ser devida no caso de inexecução total e cancelamento do respectivo contrato, obrigatoriamente constando a reciprocidade ao titular do cartão nos mesmos percentuais aplicados pelo respectivo emissor;
  7. Adaptar nos contratos entre os emissores e empresas e seus clientes a cláusula mandato, obrigando-se a divulgar nos extratos e faturas mensais enviadas aos titulares o percentual total dos encargos cobrados, não apenas quanto ao mês de referência, mas também no que concerne o mês subseqüente, permitindo ao consumidor saber com antecedência o percentual dos encargos de financiamento, e programar o pagamento de suas despesas ou procurar outras fontes de financiamento.

Quanto a este último ponto, claro está que os emissores deverão informar ao menos uma vez, que poderá ser na remessa do Contrato ou nos extratos e faturas mensais, as denominações dos itens que compõem o custo do financiamento, pois só assim o consumidor terá plena ciência do que eventualmente lhe será cobrado, não podendo escusar-se posteriormente de falta de conhecimento dos índices aplicados.

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Sobre a autora
Thais Brunner

Advogada/São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUNNER, Thais. O contrato de cartão de crédito à luz do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 287, 20 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5079. Acesso em: 23 abr. 2024.

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