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Inquérito policial: ato discricionário ou vinculado?

03/07/2004 às 00:00
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A persecução penal, no Brasil, quando houver crime de ação pública incondicionada, nortear-se-á pelos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade [1], dentre outros. Isto porque o tempo verbal do núcleo de um dos tipos processuais que informam a matéria - art. 5º do CPP – é o futuro jussivo (imperativo). Diz o dispositivo: "(...) Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado (...) [2]". Proclama também o mesmo Diploma Legal: "Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar os autos de inquérito."

Como conseqüência, não tem a autoridade policial nenhuma discricionariedade na instauração do procedimento [3]. O poder exercido naquele momento é vinculado, ou seja, não se levará em consideração aspectos de conveniência ou de oportunidade [4]. Trata-se, como se vê, de exercício de poder/dever. Poder não no significado de faculdade, mas com o de que somente aquela poderá praticar o ato; e dever no sentido de que, presentes os pressupostos, deve a instância ser instaurada. E uma vez iniciada, não mais poderá ter seu curso elidido pela mesma autoridade.

Uma das razões a inspirar o dispositivo em comento é a de que impossibilite ele dúvidas em relação à lisura dos comportamentos. Se não houvesse a obrigação de instaurar o inquérito (poderia ser também o caso de termo circunstanciado, ou de procedimento para apuração de ato infracional), por parte do seu titular, quando fosse o caso, ficaria aquele sujeito às mais esdrúxulas especulações: ora a de que estivesse protegendo apaniguados ou obtendo algum tipo de vantagem; ora a de estar perseguindo desafetos.

O pressuposto para a instauração do inquérito policial, como quer Flávio Meirelles Medeiros, com o que concordamos inteiramente, é a mera suspeita "de ocorrência de fato dotado de tipicidade". [5] Nada importa constate-se, ao depois, não haver crime, por ocorrência de causa justificante ou exculpante: a pressuposição do inquérito não é o delito, mas a mera adequação do fato - de maneira formal e material - à lei penal (tipicidade). Nesta sede, não se demanda a existência de indícios de autoria: ainda que não se tenha idéia de quem seja o autor, obviamente deve o procedimento ser iniciado, até para que se lhe descubra a identidade. Mais: a própria existência do fato típico pode e deve, se for caso, posteriormente ser negada (na fase do relatório [6], não havendo indiciamento, não agora!), por ausentes os seus demais elementos: conduta dolosa ou culposa, resultado e nexo causal (estes últimos nos crimes materiais) [7].

Entrementes, a tipicidade a que nos referimos - a qual é a única aceitável num Estado Democrático de Direito -, para além de formal (mera subsunção à descrição legal), há também de ser material, ou seja, deve haver real lesividade ao bem jurídico tutelado. Nessa senda, não são sequer típicas condutas, v.g., como a do médico, nas intervenções cirúrgicas regularmente realizadas; as lesões esportivas ocorridas no contexto do esporte; a colocação de brincos, piercings, e outros que tais, quando consentida por pessoa capaz; a subtração de um refrigerante, por um empregado, a uma família abastada, etc [8]. É que, nesses casos, os bens jurídicos - a integridade física e o patrimônio - não são substancialmente agredidos. No último exemplo, acrescente-se a lembrança da parêmia latina a iluminar o constitucional princípio da ofensividade [9]: minima non curat praetor (o juiz não se preocupará com ninharias).

Como se vê, tais fatos estão fora do contexto que interessa ao moderno Direito Penal.

Não sendo o caso, isto é, presente a tipicidade, em seus dois aspectos (formal e material), como antes dito, a inauguração da instância é impositiva.

Nada mais estapafúrdio, portanto, do que as chamadas "indagações policiais", ocorrentes em determinadas delegacias de polícia, as quais não são sequer autuadas, não têm as páginas numeradas e estão, por isso mesmo, extra-oficiais: não existem no mundo jurídico. Ora, o inquérito policial já é uma investigação preliminar, eis que "procedimento administrativo pré-processual" [10], mera peça de informação, de cunho inquisitorial [11], a balizar eventual propositura de ação penal.

Assim, de duas uma: ou a autoridade policial entende não ser caso de persecução penal, a qual deve acontecer somente como ultima opção (ultima ratio [12]), quando houver uma agressão típica intolerável aos bens juridicamente protegidos (tipicidade formal e material), ou decide por investigar o fato, neste caso, de forma legal, transparente e oficial.

Sobre tais procedimentos ao arrepio da lei, algumas inferências podem ser feitas:

As peças da investigação não são autuadas para que, havendo solicitação de vista dos autos, por parte da defesa, possa a autoridade policial sacar parte dos documentos (não existe ordem de paginação, porque não estão as folhas numeradas) e oferecer ao advogado do investigado somente o que àquela convier.

Outra possibilidade é a de que o caráter extra-oficial seja mantido até que esteja o inquérito praticamente concluído, oportunizando a que o delegado o instaure (com data anterior) e produza o relatório de encerramento num mesmo momento, de molde a que os dois procedimentos guardem entre si o interregno legal: 10 dias com réu preso e 30 quando solto (art. 10 do CPP).

Por fim, tal desrespeito poderia dar ensejo se pensasse tivesse lugar nos distritos policiais justamente o que quis o Legislador evitar: o favorecimento de protegidos e/ou a obtenção de vantagens oriundas de "acertos", pelos agentes públicos.

Como se vê, nenhuma razão justifica tal conduta ilegal. Se pretende o presidente do inquérito a este cobrir com o sigilo, cumpre que o requeira ao Poder Judiciário, não que o decrete arbitrariamente, ao seu talante. A Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), no seu art. 7º, XIV, afiança tenha o advogado pleno acesso aos autos, inclusive "podendo copiar peças e tomar apontamentos." A segunda hipótese constitui infração administrativa, passível de correição; a última é crime - prevaricação - previsto no art. 319 do CP.

De outra parte, como não têm os policiais civis, salvo no caso dos delegados de polícia, a obrigatoriedade de possuir graduação em Direito, daqueles não se exige, obviamente, o conhecimento técnico a permitir possam julgar se estão ou não presentes as condições para instauração da persecução penal. Tal mister é exclusivo da autoridade policial. Assim, qualquer ocorrência pela população trazida ao distrito policial deve ser registrada para, posteriormente, ser submetida ao titular da DP, a fim de que este delibere sobre ser ou não caso de se formar o inquisitório.

Para ilustrar, citamos a Portaria 273/01, da Chefia de Polícia do RS, vigente e válida [13]:

"Art. 2º. Os Boletins de Comunicação de Ocorrência e documentos que aludam à notícia de fatos não criminais, após despachados pela Autoridade policial, serão arquivados na secretária do órgão, na pasta/arquivo própria, em ordem de numeração interna/ano, atendendo-se fins do controle interno e externo;"

Ainda:

"Art. 4º. Havendo notícia de infração penal, a Autoridade Policial, conforme a hipótese legal, determinará a imediata instauração do procedimento Policial competente (Inquérito Policial, Termo Circunstanciado, Procedimento de apuração de Ato Infracional)."

Em suma: qualquer procedimento contra o cidadão, levado a efeito nas delegacias de polícia, mesmo a mera intimação para depor como testemunha - posto que também esta gera uma obrigação -, fora de um regular e convenientemente instaurado inquérito policial é ilegal e, como tal, merece ser repudiada e conduzida ao crivo dos órgãos competentes.


Notas

1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. São Paulo. Saraiva. 2001. Pg. 65.

2 TORNAGHI, Hélio. Comentários ao código de processo penal.Vol. 1, Tomo 1.Revista Forense. Rio de Janeiro. 1956. Pg. 142.

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3 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O ato administrativo de instauração do inquérito policial, in Estudos jurídicos em homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo. Rev. dos Tribunais. 1992. Pg. 163.

4 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo Saraiva, 1989. Pgs 78 e 79. Diz o autor: "Assim, vinculação ou atribuição vinculada é a atuação da Administração Pública em que a lei não lhe permite qualquer margem de liberdade para decidir ou agir diante de um caso concreto. Sabe-se que se está diante de uma atribuição dessa natureza em razão do enunciado legal, consubstanciado nas expressões: será concedido, será outorgado, ou de outra da mesma índole." (sem grifo)

5 ___Do inquérito policial. Livraria do advogado editora. Porto Alegre. 1994. Pg. 37

6 LOPES JR. Aury. Sistemas de investigação preliminar. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2001. Pgs. 178 e ss.

7 Sobre os componentes no fato típico: REALE JR, Miguel. Teoria do Delito. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1998.Pg. 30; COELHO, Valter. Teoria geral do crime. Sergio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre. 1991. Pgs. 31 e 32; e LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal. Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre, 1987. Pg. 37.

8 GOMES, Luiz Flávio, Na virada do milênio, o quê herdamos e o quê deixaremos para as futuras gerações nas ciências criminais, in www.ibccrim.org.br, 24.12.2000, referindo-se à chamada "tipicidade conglobante" (Zaffaroni).

9 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. Não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria). Funções político-criminal e dogmático-interpretativa. O princípio da ofensividade como limite para o ius puniendi. O princípio da ofensividade como limite ao ius poenale. Ed. Rev. dos Tribunais. S. Paulo. 2002. Pg. 59.)

10 LOPES JR. Aury, ob. citada, pg. 33.

11PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais penais. 2ª edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2001. Pgs. 123 e ss.

12GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. Introdução a seus fundamentos teóricos; introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95 – Lei dos juizados especiais criminais. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo.1997. Pgs.312 e ss.

13 FERRAJOLI, Luigi. "O Direito como sistema de garantias". In: OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades (org.). O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, pp. 90-91. Ver também FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón - Teoria del garantismo penal. Editorial Trotta, Madrid, 2001.

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Sobre o autor
César Peres

Advogado criminalista em Porto Alegre (RS). Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA de Gravataí (RS). Especialista e Mestre em Direito. Presidente da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul (Acriergs).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, César. Inquérito policial: ato discricionário ou vinculado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 361, 3 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5381. Acesso em: 6 mai. 2024.

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