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Considerações sobre o ciclo completo de polícia

17/02/2017 às 15:30
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Analisa-se em que consiste o ciclo completo de polícia e o prejuízo que representa a concentração em um único órgão de todas as atribuições de polícia.

As atribuições dos órgãos policiais, quanto ao tema segurança pública, são bem traçadas pelo texto constitucional. O dispositivo contido no art. 144 da Lei Maior não deixa qualquer margem a dúvidas. Em termos sucintos e inequívocos, incumbe à Polícia Civil a função de polícia judiciária e a investigação dos ilícitos penais, atribuições também dispostas no art. 4º do Código de Processo Penal. À Polícia Militar cumpre o papel de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública.

Em dias atuais, em que as mais variadas instituições e entidades públicas perdem credibilidade e confiabilidade em decorrência de casos de corrupção e por arbitrariedades cometidas no desempenho de suas funções, sobrepesando-se à ampla divulgação pelos sistemas de comunicação das deficiências dos órgãos a quem compete à segurança pública (deficiências às quais não são restritas a nosso país, estendendo-se, inclusive, por muitas das nações onde vigora o aludido ciclo), ganha força o discurso dos defensores do conceito de ciclo completo da(s) polícia(s).

Sem permitir que falsos eufemismos venham a contaminar minhas palavras, antes de minha explanação que se seguirá, de antemão, expresso meu pensamento, asseverando que um discurso pró ciclo completo parece-me conveniente àqueles que são ávidos por um poder sem qualquer espécie de limitação e sedentos pela implementação de um sistema propício à impunidade dos agentes estatais.

Temerária é a quantidade de propostas de emendas constitucionais que tramitam pelas casas legislativas do âmbito federal discorrendo sobre o assunto, demandando a alteração de dispositivos de nossa Lei Maior, em especial, dos dispositivos atinentes ao Capítulo da Segurança Pública. Dentre as PECs, podemos citar as de nº 431/2014, em tramitação conjunta com a 423/2014, assim como a de nº 51/73, em tramitação conjunta com a 73/2013.

A título exemplificativo, se aprovada, a PEC 431/2014 acrescentaria o parágrafo 11 ao art. 144, da CF, com o seguinte teor:

 “Art. 144...

§ 11. Além de suas competências específicas, os órgãos previstos nos incisos do caput deste artigo, realizarão o ciclo completo de polícia na persecução penal, consistente no exercício da polícia ostensiva e preventiva, investigativa, judiciária e de inteligência policial, sendo a atividade investigativa, independente da sua forma de instrumentalização, realizada em coordenação com o Ministério Público, e a ele encaminhada.”.

A Proposta de Emenda constitucional cujo teor foi, parcialmente, acima transcrito, ao menos não defende a tese da reunião de todas as atribuições de polícia (preventiva, ostensiva, investigativa, judiciária e de inteligência) por um único órgão, aberração jurídica, que é trazida por outras PECs de conteúdo similar.

Ora, se há aqueles que já vislumbram como inconstitucional a investigação efetivada por membros do Ministério Público, alegando que não foi essa a atribuição que lhes foi delineada por nossa Lei Fundamental, o que diremos então da função investigativa ficar a cargo de Policiais Militares (oficiais e praças), que não, necessariamente, possuem a formação técnico-jurídica para presidir um procedimento investigativo, no qual se deve pautar pela observância de dispositivos insertos no diploma processual penal e em legislação extravagante diversificada.

Vou mais a fundo: os adeptos da “doutrina” do ciclo completo entendem que a mesma polícia (externada por um ou mais órgãos, predomina entendimento de que seja por apenas um) também atenderia determinada ocorrência e seria a responsável pela sua formalização.

Pois bem, questiono como alguém, sem possuir o bacharelado em Direito, poderia tipificar com precisão a conduta praticada pelo agente infrator, sem se olvidar dos ditames do Código Penal, do Código de Processo Penal e de legislação esparsa, no que diz respeito às formas privilegiada, qualificada, circunstanciada e tentada de um mesmo ilícito, ao arbitramento de fiança, à representação pela decretação de prisão temporária e preventiva, à representação pela quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico e telemático, e à prisão em flagrante, atribuições tão somente cabíveis a um Delegado de Polícia. Aliás, não só a isso o policial sem a pertinente formação teria que se atentar, mas também a entendimentos doutrinários e jurisprudenciais quase que infindáveis a respeito de um mesmo tema. 

E se fosse cometido um abuso de autoridade por parte do agente que faz o primeiro atendimento da ocorrência? Quem apuraria? O próprio agente ou um de seus colegas da corporação? O próprio policial que comete abuso de autoridade receberia atribuição de colher elementos de prova para fomentar o procedimento investigativo? Responder afirmativamente a tais indagações me parece ilógico.

Os que assim se posicionariam poderiam, seguindo a mesma linha de raciocínio, asseverar que um mesmo órgão, além de ficar incumbido do ciclo completo, poderia fazer as vezes das figuras do Promotor de Justiça e do Juiz de Direito, acusando e condenando o infrator. Com isso, afirmo, sem maiores delongas, que a Polícia Militar não está preparada para assumir funções de polícia investigativa, judiciária e de inteligência policial. Caso isso ocorra, o que estará em cheque é a permanência de nosso Estado Democrático de Direito, além de toda a sistemática garantista dos direitos fundamentais.        

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         Mister ressaltar, ainda, que compartilho do entendimento dos autores que enxergam nos dispositivos constitucionais que abordam a segurança pública verdadeiras cláusulas pétreas/núcleos constitucionais intangíveis, ou seja, inatacáveis por PEC, por trazerem à tona um dos direitos individuais de maior relevância, o da segurança (art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, CF).        

Vejo como adequado o conceito de ciclo completo trazido pela Lei Estadual nº 11.370/2009, do estado da Bahia, definição distinta do que a indicada nas PECs acima mencionadas e diversa da conceituação aplicada por boa parte dos ávidos defensores do ciclo:    

“Art. 5º...

Parágrafo único: O ciclo completo da investigação policial inicia-se com a notícia-infração, desdobrando-se em ações continuadas e articuladas, inclusive de natureza cartorial, visando à formalização das provas e a minimização dos efeitos dos delitos, incluindo-se as pesquisas técnico-científicas, concluindo-se com definição da autoria e materialidade.”.

Conclui-se, portanto, através de rápida análise do conceito supra, que a Policia Civil já desempenha o seu ciclo completo, isto é, o ciclo completo de polícia judiciária.   

Por derradeiro, acredito que tal debate tem que, brevemente, se encerrar com a solução plausível, ou seja, a não implantação do ciclo completo de polícia, pelo menos, não da maneira que pretendem que seja instituído. 

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Sobre o autor
Renne Müller Cruz

Delegado de Polícia em São Paulo. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a obtenção de Nota Máxima pela Defesa da Dissertação: "O descompasso entre o princípio da intervenção mínima e a Lei das Contravenções Penais".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Renne Müller. Considerações sobre o ciclo completo de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4979, 17 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54027. Acesso em: 19 abr. 2024.

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