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Cuidado, legislador ao volante!

13/02/2017 às 08:46
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Expõe-se o anacronismo e falta de coerência técnica do legislador ao implementar várias alterações, de cunho criminal, no Código de Trânsito, no decorrer dos quase 20 anos de sua promulgação.

Ao iniciar o texto com tal frase conotativa se pode observar como anda nosso legislador quando se trata das alterações perpetradas em nosso jovem Código de Trânsito (CTB), instituído pela Lei 9.503/97, que está à beira de completar seus esquizofrênicos 20 anos de existência, por conta de anacrônicas emendas.

Várias foram as alterações efetuadas no texto do CTB, algumas de pouca relevância prática na esfera criminal, área a que nos cingiremos, pois não se pode olvidar que nosso famigerado código mescla matéria penal, administrativa e cível.

No âmbito penal, podemos citar várias inovações em crimes de grande relevância no dia a dia da persecução penal, como as dos arts. 302, 303, 306 e 308 do citado codex.

Com o fim de se demonstrar a falta de critério do legislador que, ao invés de se utilizar das premissas criminológicas e orientações político criminais, vale-se do seu mister constitucional apenas como forma de resposta falaciosa e imediata à sociedade, passaremos a analisar o art. 306 do CTB, o qual trata sobre um dos mais corriqueiros delitos perpetrados em nosso país, a condução de veículo automotor sobre a influência do álcool.

Iniciaremos com o texto original do art. 306, editado em 1997, como segue:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. [1] 

Mesmo com uma perfunctória análise jurídica, já se observa que o legislador elegeu como padrão para o tipo penal a espécie de crime de perigo concreto. Ou seja, com a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, condicionou sua aplicação à ocorrência de um fato externo materialmente demonstrado para a correta subsunção do fato à norma e consequente incidência do tipo, o que, na prática, incentivou vários agentes de trânsito a usarem em seus depoimentos, como justificativas das prisões por ele efetuadas, os famigerados ziguezagues “flagrados”. Essa prática acabou gerando inúmeras discussões durante a aplicação do instituto, redundando na absolvição de muitos acusados, devido à fragilidade da comprovação das imputações, as quais, infelizmente, seriam apenas as primeiras em razão da carente técnica legislativa.

Entretanto, em 2008, com o falacioso pretexto de melhor regulamentar o texto, que sabemos ser uma forma dissimulada de promoção pessoal, por meio da lei 11.705, altera-se o tipo normativo do artigo 306, ex vi:

Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:[2]  

No novo texto, em suma, é retirada a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, alterando, por consequente, sua natureza jurídica para crime de perigo abstrato, pois a simples comprovação do novo elemento normativo do tipo, consistente na “concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”, já era suficiente à comprovação material da infração penal.  

Apesar de haver supressão de um elemento do tipo concernente à comprovação do perigo que, em tese, acabaria com muitas discussões que favoreciam os acusados, a aplicação não ficou mais fácil, pois uma nova barreira legal foi criada. Tal barreira é nada mais que a inserção do elemento normativo consistente na comprovação do nível de concentração de álcool, criando-se, assim, uma dificuldade a mais na comprovação material do delito, a qual foi regulamentada por meio do decreto 6.488 de junho de 2008, determinando a forma com que seria aferida, ou seja, por exame de sangue ou teste em etilômetro.

Estes procedimentos, que bem sabemos, vão de encontro ao princípio do “nemo tenetur se detegere” e apenas poderão ser realizados com a aquiescência daquele que foi flagrado em situação que presuma ter ele ingerido álcool. Denota-se, portanto, que a implementação, por conseguinte, acabou frustrando a suposta “ratio” da alteração, a qual, a princípio, era a maior efetividade da aplicação do referido tipo penal, porém, como um veneno sem antídoto, tornou-a aos acautelados que se negavam à execução dos testes, forma de escapar à punição.

Contudo, a saga do legislador não acaba por aí. Em 2012, com a edição da lei 12.760, seguido a conhecida fúria lefigerante que lhe rende holofotes, o legislador, com novo texto falacioso consistente no recrudescimento das punições, altera mais uma vez o artigo 306, ex vi:

 Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:   

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 § 1o  As condutas previstas no caput serão constatadas por:

 I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou        

   II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.           

§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova

§ 3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia ou toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.[3]

Aqui, como na alteração perpetrada em 2008, se observa pontos anacrônicos se pensarmos que a retórica dos legisladores consiste, como mais uma vez frisado, no recrudescimento e melhor aplicabilidade do instituto.

O primeiro ponto foi nada mais que introduzir no texto legal as disposições constantes no decreto 6.488/2008, acrescentando-se, em especial no § 2º, outros meios em que as provas podem ser produzidas que, convenhamos, demonstram pouquíssima técnica jurídica. Exemplo disso é citar após os testes de etilômetro e toxicológico o termo perícia, dando a entender não serem aqueles constituídos por provas técnicas periciais, demonstrando-se, no mínimo, uma tautologia jurídica. Mas, pior, quando depois de dar tanta ênfase à técnica pericial, como se no mundo prático forense se desse o referido valor à palavra das testemunhas que no passado demonstrou-se pífia, é esta novamente inserida, seguida da repetida e impensada expressão “outros meios de prova em direito admitidos”, como se houvesse permissão para utilização no ordenamento de provas ilegais que não se constituíssem no âmbito jurídico.

O segundo ponto, ainda mais grave, surge após todos os episódios anacrônicos e contraproducentes até então consignados, pois insere agora o legislador novo elemento normativo do tipo, qual seja, a alteração da capacidade psicomotora em razão da ingestão do álcool ou outra droga.

Apenas para lembrarmo-nos, sem a intenção de aprofundamento do tema, daquelas lições básicas e incipientes do direito penal, como a obediência ao princípio da legalidade e subprincípio da taxatividade para a punição de determinada conduta, os quais condicionam a aplicação da regra aos elementos constantes no tipo penal incriminador e que se constituem, inclusive, direito fundamental do cidadão frente à força do Estado que não deve ser desrespeitado.

Voltemos; Ora, assim, se inserido novo elemento normativo no tipo penal, deve ele, obrigatoriamente, ser demonstrado, sob pena de atipicidade formal. Desta feita, ante tal análise, podemos novamente visualizar àqueles já aqui nominados como acautelados, nova possibilidade de desconstituição do tipo penal e consequente absolvição da conduta, ante a falta da correta subsunção normativa.

Apenas para exemplificar esta situação, imaginemos o conduzido que ingere bebida alcóolica, é flagrado na direção de veículo automotor, porém se nega à execução do teste do etilômetro, mas, orientado, solicita a realização do teste clínico que, com supedâneo no art. 184 do CPP, não lhe poderá ser negado pela autoridade policial, sendo, ao final, não constatada a alteração da capacidade psicomotora. Haverá, por conseguinte, atipicidade da conduta, pois ausente elemento normativo do tipo necessário à sua caracterização, resultará na sua imediata liberdade, mesmo que os demais elementos de constatação -testemunhas, vídeos ou os famigerados outros meios de provas admitidos– demonstrem a embriaguez.

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Para finalizar a saga do legislador, demonstrando-se sua dificuldade em elaborar um tipo incriminador eficaz para o delito, admitindo assim sua ineficiência, resolve tentar sanar suas falhas por vias transversas, ou seja, atacando a conduta pela via administrativa. Para tanto, por meio da recente lei 13.281 de 04 de maio de 2016, efetua mais uma inovação no CTB com vistas a coibir a prática delituosa em comento:

Art. 277.  O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência. [...]

§ 3º  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165-A deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.   

Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:         

Infração - gravíssima;  

Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.[4]

O que se observa agora é que resolve o legislador determinar punição administrativa severíssima, violando flagrantemente o princípio do “nemo tenetur se detegere”, pois conforme pacificamente balizado pela doutrina, não só o direito de permanecer calado disposto no art. 5º LXIII da CF constitui o “nemo tenetur”, mas a vedação de qualquer ação ativa imposta ao preso contrária à sua vontade, o que redunda em mais um grande equívoco do legislador que age no afã de tentar corrigir seus erros pretéritos, cria novas premissas legais viciadas.

Por derradeiro, ante os argumentos supramencionados, fica a dúvida: em que mão mesmo quer andar o legislador? Tem mesmo a intenção de recrudescer a punição penal? A resposta, em verdade, a todos que conhecem minimamente nosso sistema normativo é clara e dispensa ser consignada. Então, cuidado!!!, pois o legislador tem carta branca, não apenas para dirigir, mas para sua função precípua, inovar o ordenamento jurídico.


Notas

[1] BRASIL Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet - planalto.gov.br 

[2] BRASIL Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet - planalto.gov.br 

[3] BRASIL Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet - planalto.gov.br 

[4] BRASIL Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet - planalto.gov.br 

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Sobre o autor
Marcelo Ricardo Colaço

Mestre em Desenvolvimento e Sociedade (Uniarp). Especialista em Ciências Criminais (Uniderp-Anhanguera). Especialista em Docência Superior pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp)- Campus Caçador. Possui graduação em Direito pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (2011). Professor no programa de Pós-Graduação da UNOESC- Campus Videira/SC, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Professor no programa de Pós-Graduação da UNIGUAÇU- Campus União da Vitória/PR, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Foi Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe- Campus Caçador. Professor das matérias de Direito Constitucional e Direito Processual Penal no curso preparatório para concursos Club da Aprovação. Delegado de Polícia na Secretaria da Segurança Pública e Defesa do Cidadão de Santa Catarina. Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=E5C7415590A02F62DF8172B528F6925B E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLAÇO, Marcelo Ricardo. Cuidado, legislador ao volante!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4975, 13 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55726. Acesso em: 18 abr. 2024.

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