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A injustiça causada pela não uniformização das decisões judiciais

05/03/2017 às 08:38
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O Poder Judiciário, enquanto sistema criado com o objetivo de promover a justiça social, tem gerado prejuízos para alguns e favorecido outros em situações semelhantes, em razão das muitas decisões colidentes proferidas em casos análogos.

 Objetivando resguardar o “justo”, são previstos na lei critérios abstratos e objetivos para o seguimento de cada procedimento judicial, com vistas a proporcionar a cada jurisdicionado as mesmas chances de êxito ao exercitar o seu direito de ação.

As ações são distribuídas nas comarcas ou circunscrições judiciárias abstratamente competentes para julgá-las e não o sendo, deverão ser redistribuídas para os locais que a lei define como habilitados a processá-las.

Ocorre, ainda, que nos locais onde há uma pluralidade de varas de mesma competência, o processo, uma vez protocolado, será distribuído para qualquer destas, com o objetivo de evitar que o agente público possa, de qualquer forma, favorecer uma das partes processuais e abale a igualdade material objetivada pela lei, pois uma distribuição processual ao arbítrio das partes faria com que as ações fossem entregues aos juízos que parecerem mais convenientes aos agentes públicos.

É sabido que, apesar de todos os critérios de impessoalidade que regem o sistema judiciário, não é possível que todas as ocorrências fáticas sejam previstas, sendo inalcançável a situação de absoluta uniformidade jurisprudencial, de forma que a jurisdição sempre terá elementos de subjetividade, advindos da cognição pessoal dos sujeitos responsáveis pela prolação da decisão. Bem como, a jurisdição está guiada pela efetividade material dos ditames normativos, tendo como regra o resguardo às possíveis situações de inferioridade processual dos litigantes, fato este que demanda uma análise concreta da situação.

Ademais, o órgão judicial está vinculado à livre apreciação motivada das lides, podendo, desde que de forma fundamentada, decidir livremente as questões que lhe são postas. Dessa forma, ainda que em uma mesma circunscrição judiciária, podem ocorrer decisões contraditórias para casos semelhantes.

Segundo o art. 93, IX, da CF, todas as decisões proferidas em processo judicial ou administrativo devem ser motivadas, sendo obrigatória aos julgadores a tarefa de exteriorização das razões de seu decidir , com a demonstração concreta do raciocínio fático e jurídico que desenvolveu para chegar às conclusões contidas na decisão (Assumpção, 2015, página 134). 

Conforme disposição legal, não podem as autoridades dotadas de jurisdição se manterem inertes diante da omissão legislativa, portanto deverão necessariamente decidir a lide com o uso das técnicas de integração da lei, fato este que amplia bastante as possíveis resoluções das lides e torna bem mais extensiva a interpretação da lei.

A Carta Magna, claramente adepta das teorias neoconstitucionalistas, veda que os órgãos julgadores sentenciem mediante a mera subsunção da norma ao caso concreto, vez que a adoção das teorias absolutamente positivistas impediria a aplicação dos diversos princípios expressamente dispostos na CF/88 e poderia acarretar a violação de direitos básicos dos cidadãos com a justificativa de que se estaria em estrito cumprimento das disposições legais.  

A percepção de que a norma é o resultado da interpretação (em outras palavras, a tomada de consciência de que o discurso do legislador não é suficiente para guiar o comportamento humano, tendo em conta a sua dupla indeterminação-textos são equívocos e normas são vagas) abriu espaço para que se pensasse na decisão judicial não só como um meio de solução de determinado caso concreto, mas também como um meio para promoção da unidade do direito. (MARINONI, ARENHART, MITIDIERO, 2015, página 868). 

Surgem assim dois problemas: o poder judiciário, enquanto sistema criado com o objetivo de promover a justiça social, tem gerado prejuízos para alguns e favorecido outros em situações semelhantes, em razão das muitas decisões colidentes proferidas em casos análogos; já a segunda problemática se consubstancia na aparente invasão de uma função privativa do poder legislativo, vez que ao decidir extensivamente as lides, o judiciário promove a regulamentação de fatos de competência legislativa.


A criatividade das decisões proferidas pelo poder judiciário

A atividade jurisdicional está vinculada ao princípio do livre convencimento motivado, que se qualifica, principalmente, pela possibilidade de exercício do poder decisório com ampla liberdade, desde que os fatos e fundamentos que embasam o pronunciamento judicial sejam motivados. Esta feição, que defere tamanha liberdade de atuação ao juízo, não torna este ofício arbitrário, de forma que são definidos, em contra partida, mecanismos de controle de legalidade, entre eles, o duplo grau de jurisdição.

No exercício de seu poder/dever de dizer o direito ao caso concreto, o juízo está sempre adstrito às normas arbitradas pelo Poder Legislativo, que é o competente para elaborar normas processuais. Porém, nem todas as normas dispostas na legislação processual apresentam definições jurídicas precisas, sendo notória a existência de cláusulas gerais, que se qualificam por termos genéricos, de definições vagas, que carecem de efetivação no caso concreto pelo aplicador do direito.

A existência das cláusulas gerais se justifica, principalmente, pela impossibilidade de que o legislador consiga prever abstratamente todas as situações fáticas advindas das relações havidas entre os sujeitos jurídicos.  

As cláusulas gerais têm um sentido dinâmico, o que as diferencia dos conceitos legais indeterminados, construções estáticas que constam da lei sem definição. Desse modo, pode-se afirmar que, quando o aplicador do direito cumpre a tarefa de dar sentido a um conceito legal indeterminado, passará ele a constituir uma cláusula geral (TARTUCE, 2015, página 17). 

Cada situação concreta contém certas especificidades e mostra-se impraticável a previsão de todas as possibilidades, sendo imprescindível o abandono parcial do padrão estritamente legal, de tal sorte que a atividade judicante tem sido dirigida a buscar a efetividade material das normas legais, empenhando-se em abstrair o sentido contido no núcleo essencial da norma.

 A mera subsunção da norma de direito material ao caso concreto não é hábil a solucionar todas as demandas levadas ao juízo e, não podendo declinar do exercício da incumbência que impõe o poder jurisdicional, há a inevitável necessidade de que o juiz exerça atividade criativa.  

É indiscutível que a existência de cláusulas gerais reforça o poder criativo da atividade jurisdicional. O órgão julgador é chamado a interferir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da solução de problemas concretos que lhe são submetidos (DIDIER JR, Fredie, 2015, páginas 50 e 51). 

Além disso, o Novo Código de Processo Civil reconhece a plena possibilidade de julgamento com base nas cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, exigindo a devida fundamentação pelo julgador em casos tais. (TARTUCE, 2015, página 18) 

Além das questões que o órgão responsável pela produção normativa entendeu que devem ser normatizadas genericamente, com alto grau de abstração, existem, ainda, as omissões legislativas, que impõem que o juízo faço uso das ferramentas de integração, e consequentemente , também resulte em situações jurídicas, produto da criação do órgão julgador.

A dependência à cognição própria de cada órgão julgador ocasiona instabilidade jurídica e como resposta a esta problemática os tribunais emitem enunciados que demonstram a forma com que interpretam determinadas temáticas, que são as chamadas súmulas vinculantes, com o objetivo de impor uma previsibilidade mínima aos pronunciamentos jurídicos. Possuem o objetivo de limitar a existência de decisões contraditórias para demandas análogas e encerrar a chamada “justiça de loteria”.

Entretanto, as súmulas ordinárias não têm o condão de vincular a atividade jurisdicional, por não terem atributos de lei.

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A Emenda Constitucional 45/2004 introduziu no ordenamento jurídico as súmulas vinculantes, que por terem força de lei em sentido amplo, vinculam a atividade do poder judiciário e da Administração Pública, sem, contudo, atingirem a atividade propriamente legislativa.

As súmulas vinculantes, emitidas pelo plenário do STF, pacificam diversas questões controvertidas nos tribunais, entretanto, não encerram o problema das decisões judiciais contraditórias.

Não se pode desconsiderar que a atividade criativa do judiciário é limitada, pois a função legislativa não é atribuição deste Poder e qualquer ato judicial apto a invadir as competências outorgadas constitucionalmente a outro poder será absolutamente inconstitucional, por controverter a necessária separação dos Poderes do Estado.

Por conseguinte, tem-se que os órgãos judiciários não podem, quando provocados, quedarem-se inertes, sendo vinculados a se pronunciarem acerca da questão, contudo, se não houverem definições precisas na norma legal ou contiverem pontos omissos acerca da temática, surgirá a necessidade de uma atuação judicante criativa, de forma a produzir a necessária solução da lide.             


Notas

[1] Movimento de reforma jurídica embasado na efetivação material das normas legais;

[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes


Referência

Didier JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Processo de Conhecimento e Procedimento Comum. Volume I. 17ª Edição. Salvador. Editora JusPodvm, 2015.

Didier JR, Fredie. Braga, Paulo Sarno. De Oliveira, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Processo de Conhecimento e Procedimento Comum. Volume II. 10ª Edição. Salvador. Editora JusPodvm, 2015.

Didier JR, Fredie. Da Cunha, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnações às Decisões Judiciais e Processos nos Tribunais. Volume III. 13ª Edição. Salvador. Editora JusPodvm, 2016. 

Marinoni, Luiz Guilherme. Arenhart, Sérgio Cruz. Mitidiero, Daniel. Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. Volume I. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2015.

Marinoni, Luiz Guilherme. Arenhart, Sérgio Cruz. Mitidiero, Daniel. Curso de Processo Civil: Tutela dos Direitos Mediante Procedimento Comum. Volume II. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2015.

Marinoni, Luiz Guilherme. Arenhart, Sérgio Cruz. Mitidiero, Daniel. Curso de Processo Civil: Tutela dos Direitos Mediante Procedimentos Diferenciados. Volume III. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2015.

Tartuce, Flávio. O Novo CPC e o Direito Civil: Impactos, Diálogos e Interações. São Paulo. Editora Método, 2015.

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Sobre a autora
Samara Mariz de Paiva Martins

Advogada, inscrita na OAB/DF sob o número 54.074, estudiosa da área processual, com vasta experiência no atendimento à jurisdicionados hipossuficientes, atuou como advogado dativo na segunda vara de entorpecentes de Brasília e atualmente desenvolve estudo focado nos efeitos da Ação Rescisória a partir do trânsito em julgado progressivo do decisório, bem como milita na Área do Direito de Família.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Samara Mariz Paiva. A injustiça causada pela não uniformização das decisões judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4995, 5 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56156. Acesso em: 24 abr. 2024.

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