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Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.

Paralelo com os direitos fundamentais da vida, da liberdade e da autonomia da vontade privada e com os direitos da personalidade no novo Código Civil

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5. IMPEDIMENTO DE ACESSO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Sendo o último tópico relacionado neste trabalho, é inevitável a abordagem aos Direitos da Personalidade, dantes tocados, en passant, e que fazem referência direta ao ser humano que nasce com vida, o que já constitui, de per si, outro grave cerceamento de direito conseqüente da decisão vergastada. O impedimento de nascer que o Estado opôs ao nascituro, exterminando qualquer possibilidade de adquirir sua personalidade jurídica e, consectariamente, os direitos aos quais se referem, é mais uma ininteligência inquietante.

O Estado não pode ser opositor da convivência humana nem predador do bem-estar social. Ao Estado cumpre, sobretudo, a defesa dos interesses sociais, transindividuais, coletivos, difusos e individuais homogêneos, além de seus interesses em manter a pacificação social. Decisões nefastas, como as que aqui se estuda, causam comoção social, provocam distúrbios e discórdia entre os seres governados, porque mexem com sentimentos internos de tônica filosófica, sociológica, religiosa, propiciando uma perigosa quimera em relação a um Estado desidioso e sem compromissos com as bases sólidas do direito positivado.

Se há garantias pétreas de direitos como à vida, à personalidade, por que desrespeitá-las? Por que o Estado se lança em busca de uma involução jurídica, quando séculos foram trespassados em busca da evolução, do progresso? Os direitos de personalidade são inatos ao ser humano, têm relação direta com a existência humana e somente a ela se referem. O que pretende o Estado tornando inacessíveis tais direitos a certas pessoas?

Pode até surgir a pergunta: mas por que tratar dos direitos da personalidade, quando o direito em pauta é o da vida, uma vez que, sem esta, tudo mais perde o sentido? A resposta é que a conjuntura é propícia, pois o intuito é provar o efeito em cadeia que a decisão do ministro Marco Aurélio de Mello provocará em breve, se já não o está provocando neste exato momento.

Deflagrada a ordem do "aborto vinculante" (46), certamente os demais direitos perdem a veia de discussão, mas não inibem o alerta que fazemos quanto ao montante de direitos que foram atingidos, dentre eles os da personalidade. Mas, para que se tenha uma mínima idéia de quão devastadora a alteração provocada na cadeia de direitos com o ato decisório, peguemos o exemplo citado por Carlos Roberto Gonçalves (47) que se encaixa perfeitamente ao caso do aborto anencefálico:

"Se, por exemplo, o genitor, recém-casado pelo regime da separação de bens, veio a falecer, estando vivos os seus pais. Se o infante chegou a respirar, recebeu, ex vi legis, nos poucos segundos de vida, todo o patrimônio deixado pelo falecido pai, a título de herança, e a transmitiu, em seguida, por sua morte, à sua herdeira, que era sua genitora. Se no entanto, nasceu morto, não adquiriu personalidade jurídica e, portanto, não chegou a receber, nem transmitir a herança deixada por seu pai, ficando esta com os avós paternos."

É inevitável não lembrar, pelo exemplo exposto, das frases ditas sobre quando o homem resolve brincar de Deus: o futuro é totalmente deletado, mesmo não sendo passado, nem tendo evoluído ainda do presente.

5.1. Início da personalidade jurídica: nascimento com vida

Desde os primórdios (embora nem sempre de forma clara) (48), o direito construiu a existência de atributos personalíssimos do indivíduo, carreados a outros de natureza imaterial, que acompanham o ser desde o seu nascimento até sua morte e, em alguns casos, com projeção pos mortem. São os chamados Direitos da Personalidade, em contra ponto aos Direitos Patrimoniais. Ainda que admitindo a curta sobrevida do bebê anencefálico, tal como afirmado na decisão, o direito que este teria em relação à personalidade jurídica, que adquiriria em ato contínuo ao nascimento, é inexpurgável. Para relacionar alguns deles, à guisa de reflexão, citamos: direito ao nome, à vida privada, à honra, à imagem, à moral, ao corpo (49), direitos de sucessão e herança, paternidade, maternidade, convivência familiar, alimentos, credo, incluindo o batismo (para os filhos nascidos em família cristã), dentre outros tantos atributos tidos como intransmissíveis, irrenunciáveis, absolutos, imprescritíveis, vitalícios e incondicionais. Tudo isto foi conspurcado do anencéfalo, por uma simples assinatura, unilateral, em papel timbrado, da casa tida como guardiã dos direitos constitucionais.

Diz o Novo Código Civil brasileiro, verbis:

"Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". - grifo nosso -

Caio Mário da Silva Pereira (50) esclarece que o início da personalidade jurídica do indivíduo, para o atual direito brasileiro, tem um momento certo, um marco zero que é quando a criança é separada biologicamente do ventre materno, desfazendo a unidade biológica, constituindo, mãe e filho, dois corpos, com vida orgânica própria. Carlos Roberto Gonçalves (51), completando o raciocínio, lembra que é indiferente que o cordão umbilical tenha sido rompido, contrariando o entendimento de Washington de Barros Monteiro e Pacchioni (52). É assim o momento do nascimento com vida coincidente ao do início da personalidade, não sendo coincidentes quando se tratar de expulsão provocada por meios abortivos, pelo que não se tem mais a figura do nascituro, e, sim, a do natimorto, do qual não cuida o direito. (53)

A imposição do nascimento com vida reflete uma obviedade: a de que só aos vivos interessa a tutela jurídica do Estado. A vida aqui será comprovada pela respiração do bebê, medida de qualquer forma, hoje mais modernamente, através de aparelhos ou da experiência clínica dos médicos, pois nem sempre foi assim (54). O choro da criança normal, que antigamente era o resultado natural do nascimento com vida, não será ouvido com o ser anencefálico. Neste aspecto, foi inteligente o legislador, que pela experiência humana contemplou formas menos provincianas, talvez inspirado em relatos outros de casos semelhantes aos dos anencéfalos.

Questão importante para o caso em estudo é a observância de que, para o direito nacional (diferentemente de alguns alienígenos, como veremos), não interessa quanto tempo sobreviveu a criança, pois basta a primeira respiração para que se componha o surgimento do ser e da personalidade jurídica. Novamente recorremos às lições de Carlos Roberto Gonçalves (55):

"Muitas vezes torna-se de suma importância saber se o feto, que morreu durante o parto, respirou e viveu, ainda que por alguns segundos (...) Essa constatação se faz, tradicionalmente, pelo exame clínico denominado docimasia de Galeno. Baseia-se essa prova no princípio de que o feto, tendo respirado, inflou de ar os pulmões. Extraídos do corpo do que morreu durante o parto e imersos em água, eles sobrenadam. Os pulmões que não respiram, ao contrário, estando vazios e com as paredes alveolares encostadas, afundam. A medicina tem hoje recursos modernos e eficazes, inclusive pelo exame de outros órgãos do corpo, para apurar se houve ou não ar circulando no corpo do nascituro."

Desta forma, cai por terra qualquer afirmação, como a feita no r.decisum de que não adiantaria nascer o anencefálico pois não duraria mais do que algumas horas. Lembremos o que disse o ministro: "a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto". Alguém tem que alertar ao STF de que estas pequenas horas de vida são suficientes para conceber os direitos da personalidade ao anencefálico!

5.2. A não exigência da forma humana e da viabilidade do nascido

Outra justificativa utilizada na decisão que conflita com o direito moderno, ainda remonta aos idos tempos do direito medieval. Diz a temerária decisão: "(...) diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia a dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar". Mas qual é o prejuízo que pode causar ao direito um ser deformado? Nenhum! É carecedor dos mesmos benefícios jurídicos dos seres normais! Alguém precisa avisar ao STF que o direito brasileiro não discerne seres perfeitos e imperfeitos! Recorra-se agora à lição de Washington de Barros Monteiro (56):

"Perante o nosso Código, qualquer criatura que provenha da mulher é ente humano, sejam quais forem as anomalias e deformidades que apresente, como o monstrum vel prodigium do direito romano."

Se fora buscar no antigo direito a tese que pretendera usar como fundamento da decisão abortiva, o MM julgador constitucional encontrou, pois lá trás, bem longe das vistas do direito moderno é que estão as razões coincidentes que justificam o aborto.

O NCC preconiza o termo: "Toda pessoa" para aludir quem são sujeitos de direitos e obrigações, sem, entretanto, fazer qualquer exigência quanto à forma que possuem. Neste sentido, como assevera a corrente doutrinária dominante (57), o Brasil seguiu os passos de países como Portugal, Suíça, Alemanha, Itália, Argentina, Japão, dentre outros contemporâneos direitos (à exceção da Espanha, Bélgica e França, que exigem a forma ou a viabilidade do feto conforme seguiremos demonstrando). O nascido vivo é "pessoa natural" suplantada que está a antiga terminologia discriminatória de "pessoa física" que causava a falsa impressão de que a pessoa nascida tinha que apresentar a forma física de um ser humano e também por desprezar as qualidades morais e espirituais do homem (58). Assim, não importa o fato de o anencefálico ser fisicamente deformado. As garantias jurídicas da personalidade lhe serão atribuídas normalmente.

Entretanto, se o magno juiz se inspirou no direito francês, belga ou espanhol para suplantar o direito nacional, também não faz o menor sentido em nosso mundo jurídico, porque pregamos diferentemente o direito e, o comparado, só se aplicaria, em última instância, quando lacunoso o nosso ordenamento jurídico a despeito do tema, o que não é.

Louis Josserand (59), comentando a atribuição da personalidade no direito francês, preconiza:

"A personalidade humana tem como ponto de partida o nascimento; é este um princípio tradicional que se justifica por si mesmo (...), Porém, o nascimento não basta sempre para conferir a personalidade ao novo ser – é também necessário que nasça vivo e, ademais, que nasça viável (...) A criança deve nascer viável, ou seja, com aptidão para vida; deve ser vitae habilis. Se não for assim, não será levado em conta o fato de que haja vivido durante certo tempo, algumas horas ou alguns dias. Seu falecimento teria, de certo modo, um efeito retroativo, de sorte que nenhum direito recaíra sobre si durante o tempo em que viveu."

Igualmente, o direito belga versa a matéria, assim traduzidas nas palavras de Henri de Page (60):

"Para as pessoa físicas, a personalidade começa com o nascimento. Mas o fato material do nascimento não é suficiente para tal. Duas condições são requisitos para dar abertura à personalidade jurídica: que o infante nasça vivo e viável."

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As palavras de Josserand e Henri refletem um direito europeu fragmentário e conservador, a exemplo do espanhol, que exige a forma física humana do novo ser. Este entendimento, como vimos, não é encampado pelo nosso direito, aliás, tão repudiável que a própria conjuntura civilística européia tratou de repudiar, já que são critérios abomináveis também no direito italiano, alemão, português, húngaro, inglês, suíço, dentre outros. Desta forma, em que pese o esforço argumentativo contido na decisão que deferiu o aborto do anencefálico, não vemos nenhuma base sustentável para tal, tendo ferido profundamente uma gama insubstituível de direitos, dentre eles, os da personalidade.


6. UMA ÚLTIMA ANÁLISE DA DECISÃO JUDICIAL

Por tudo que expusemos neste pequeno ensaio jurídico (no qual, de forma alguma, embora aparente, pretendemos desafiar o comando normativo judicial), restou claro que o aspecto material da decisão não foi dos mais bem elaborados, sendo mesmo para ser esquecido, pois perfila o leque de impropriedades jurídicas das quais fizemos referência no início deste trabalho. De sorte que a decisão é apenas monocrática e que a esperança reside no parecer contrário da Procuradoria Geral da República e da não confirmação por parte do colegiado.

6.1. Aspectos de ilegalidade: via processual incorreta

Como visto, a medida permeia a zona cinzenta da ilegalidade e a permissividade dada pelo artigo 128 do Código Penal Brasileiro, mas nem de longe comparável. O aborto nos casos de estupro ou de extrema necessidade pelo eventual risco de vida, só se justifica, conforme abordado, pela autorização prévia da mãe e por ser o único meio possível para evitar o mal maior, caso contrário, veda-se qualquer hipótese, pela exegese dos artigos 125 ao 127 do Código Penal.

Os médicos, por sua vez, também se encontram impedidos de laborarem tal ato, quer por terem prestado juramento perante seu conselho de classe e assumido um compromisso ético (61); quer por um dever legal, pelo convênio firmado pelo Brasil junto à Organização Mundial da Saúde, que na Declaração de Genebra de 1948, adotou o princípio: "Manterei o máximo respeito à vida humana, desde o momento da concepção e, ainda que sob ameaça, não usarei dos meus conhecimentos médicos contrariamente às leis da humanidade".

Mas o ponto fulcral da ilegalidade reside na forma e no meio empregados para concessão da ordem em tela. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, como o próprio nome sugere, é instituto jurídico utilizado quando não há cumprimento de algum preceito fundamental. A alegativa feita pela autora da ação foi a de que a proibição de aborto nos casos de bebês anencefálicos laborava contra preceitos fundamentais como a dignidade humana, liberdade e autonomia, como já vistos. Um absurdo sem precedentes! Preceito fundamental está descumprindo é a medida concedida que viola o direito à vida garantido na Constituição Federal.

De mais a mais, cumpre observar que a Lei nº 9.882/99 que instituiu a ADPF regulamenta que somente a maioria dos ministros poderá conceder liminar, in verbis:

"Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental".

No caso em comento, a decisão foi monocrática. As únicas exceções previstas para a concessão da medida pela verve de um só ministro estão contidas no parágrafo 1º do aludido artigo:

"§ 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno".

Nenhuma das exceções contempla-se neste caso, pois: 1) não é situação de extrema urgência, ao contrário, o debate sobre o direito à vida deve ser questão laborada e muito bem costurada; 2) não é caso de perigo ou lesão grave, salvo o viés da própria concessão que irá levar à gravidade ao perigo, por autorizar o aborto; e 3) também não é o caso de recesso, pois o STF entrou de férias somente no dia 02 de Julho e a decisão foi proferida em 1º de Julho. Portanto, a decisão proferida liminarmente, de soslaio, por juiz monocrático, ultrapassa os limites da legalidade, chegando mesmo à arbitrariedade.

6.2. Aspectos de inconstitucionalidade

Finalmente, há flagrante desrespeito da Constituição na concessão ora estudada. Sem pretender remoer o que já dissemos no item 3, faltou ao ente ministerial o controle de constitucionalidade que sobra em situações outras, quase desnecessárias. A ação perpetrada sequer era para ser admitida por planejar contra princípio fundamental já garantido na Constituição Federal. O direito brasileiro é uníssono e tem como primazia a própria Constituição, coluna de sustentação de todo o ordenamento jurídico. Se desrespeitada, cai por terra todo o resto do direito positivado, pela abertura propiciada. André Ramos Tavares (62), a propósito do tema, admoesta:

"O conjunto de normas constitucionais forma um sistema, que no caso é, necessariamente, harmônico, ordenado, coeso, por força da supremacia constitucional, que impede o intérprete de admitir qualquer contradição interna".

E completa José Afonso da Silva (63):

"A rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição. Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade (...)"

A concessão da ordem abortiva é a medida certa para abrirem-se os precedentes de desrespeito às normas infra-constitucionais, já que não se respeita a própria Constituição. Este aspecto de inconstitucionalidade da medida, se confirmada pelo Pleno, fatalmente abalará a visão jurídica do Estado Democrático de Direito ostentada pelo Brasil.

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Sobre o autor
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale. Aborto eugênico: alguns aspectos jurídicos.: Paralelo com os direitos fundamentais da vida, da liberdade e da autonomia da vontade privada e com os direitos da personalidade no novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5622. Acesso em: 19 abr. 2024.

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