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Direito Contratual e Constituição

01/08/2000 às 00:00
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Todos sabemos que o Estado moderno passou por três fases. Está vivendo sua terceira fase e não sabemos até onde irá e seria difícil uma análise profunda nesse momento, diante da reação que está sofrendo do neoliberalismo triunfante. Em sua primeira fase, o Estado moderno viveu, acima de tudo, uma preocupação com a unificação nacional, e, consequentemente, com a unificação do Direito, superando os localismos jurídicos. O Direito privado dos contratos, das obrigações, não se tinha definido com muita clareza em relação ao Estado. Será na segunda fase do Estado moderno, que é o Estado liberal, ocorrida ao longo do século passado e início do século XX, que o contrato assume o modelo que passou a se considerar clássico. Nesse período, definem-se os contornos do contrato que aprendemos nas nossas escolas e imaginamos que ainda aplicamos nos dias atuais, fundado na autonomia individual. No campo constitucional, voltou-se essencialmente para a organização do Estado, para a delimitação do poder político (primeiro segmento), e para os direitos e garantias individuais, de natureza negativa (segundo segmento). O contrato passou a ser o instrumento por excelência de realização dos interesses individuais, contendo-se o Estado em limites estritos.

O contrato, a propriedade, a família eram os grandes ausentes do processo inicial de constitucionalização. Mas seriam eles realmente ausentes ou seriam particularmente o contrato e a propriedade os destinatários desta demarcação de espaço ao Estado que ocorreu justamente no Estado liberal?

É no século XX, após a Primeira Grande Guerra mundial, que surge o tratamento dado nas Constituições ao terceiro segmento, a saber, a inserção da ordem econômica e social. O que vai, portanto, caracterizar no plano jurídico, particularmente no nível constitucional, o chamado Estado Social, é o fato da inserção da ordem econômica e social na organização política das sociedades. A ordem econômica e social voltou-se a delimitar o poder econômico. Portanto, a primeira fase do constitucionalismo e a fortiori, do chamado Estado liberal, é a preocupação em delimitar o poder político. O mais amplo espaço para a atuação dos indivíduos, da autonomia privada, da liberdade contratual, da exaltação da ação livre das pessoas; portanto, a preocupação é demarcar o Estado. O Direito público surgiu nessa época, não voltado ao interesse público, mas sim ao interesse individual; por isso os ausentes eram os principais destinatários dessa primeira fase do constitucionalismo.

O Estado Social avançou no sentido de delimitar o poder econômico e consequentemente regular o contrato e, sobretudo, a propriedade. Seu objetivo é a regulação da atividade econômica. A atividade negocial está inserida na atividade econômica, isto porque é nesta atividade que vamos encontrar a propriedade dinâmica, como objeto de circulação de bens e riquezas. As Constituições passaram a estabelecer as garantias do direito de propriedade individual, observadas as limitações que nela estão consignadas e que a lei prescrever; do mesmo modo o contrato. Assim, surge nas Constituições uma preocupação em assegurar a chamada livre iniciativa. Mas seria a livre iniciativa o fundamento da liberdade contratual? Certamente que não. Se a Constituição afirmasse categoricamente a liberdade contratual, qualquer lei que limitasse essa liberdade seria inconstitucional. Uma coisa é liberdade de empreendimento, outra coisa é liberdade contratual. O Conselho Constitucional francês, há poucos anos, enfrentou esse problema que parecia estar resolvido há duzentos anos atrás. Considerou a Corte que determinada lei, que delimitou a liberdade contratual e autonomia da vontade individual, não violou o princípio da liberdade de iniciativa, assim entendida como liberdade de empreendimento ou de organização da atividade econômica.

Na fase do Estado liberal foram construídos os três grandes princípios que nos acostumamos a tratar, que aprendemos e ensinamos, equivocadamente, como se eles permanecessem prestantes a resolver as situações negociais que estamos vivenciando neste final de século. Esses princípios regulam a relação negocial clássica, que se dá pela manifestação de vontade livre de quem propõe e a manifestação livre de quem aceita. Portanto, o acordo, o consentimento, é o substrato a que se voltam esses princípios, que são: o princípio da autonomia da vontade, o princípio da relatividade subjetiva e o princípio da obrigatoriedade, ou seja, para celebrar contratos, as pessoas são livres, o que se acorda se torna obrigatório para as partes e não ultrapassa as pessoas das partes do negócio jurídico. Na época em que vivemos, esses princípios não mais conseguem ser respostas adequadas. O atual estágio de complexidade das relações negociais nos convida a repensar, a afirmar outros princípios, ao lado desses ou em contraposição a esses, que melhor possam explicar os fenômenos negociais do final do século XX.


Mas o quê, afinal, vai caracterizar esses contratos do modelo contemporâneo? São contratos de massa, despersonalizados, contratos que não mais defluem das manifestações de vontade livres, não se originando da igualdade formal das partes. Distanciando-se da liberdade e da igualdade formais das partes, seria outra categoria ou talvez o contrato renascido, a partir de pressupostos diferentes. Nunca se contratou tanto, nunca se usou tanto essa forma de relação jurídica, como nesse final de século. Há situações que nos chamam a atenção e nos fazem indagar se ainda estamos diante do contrato. Imaginemos o contrato em que quarenta milhões de brasileiros estão inseridos, que são os contratos de seguro-saúde; nestes, a impessoalidade da relação se dá sobretudo em face daquele que necessita do serviço e não pode realizar o contrato que, segundo o modelo que as grandes codificações estabeleceram, que pressupõe a livre manifestação de vontade, a liberdade de escolher o contratante, o tipo contratual e o conteúdo contratual. O que se tem hoje nessas relações de massa é a sujeição do sujeito contratual ao regulamento negocial, que, se formos ver, são praticamente codificações privadas, embora ainda recebam o nome de contrato, mas é um contrato onde apenas a pessoa o firma com sua assinatura e escolhe o tipo de seguro. Este contrato não consegue mais se enquadrar em nenhum dos princípios referidos, particularmente no princípio da autonomia da vontade, que determina a regra de ouro da interpretação dos contratos, que é a do artigo 85 do Código Civil, da primazia da vontade ou da intenção comum, que o intérprete há de extrair da declaração. Mas como ele poderá extrair uma intenção comum de um ato que foi predisposto, que passou a existir no mundo jurídico independentemente de estar integrado a um contrato individual, concreto? E que permite, inclusive, a um membro do Ministério Público instaurar um inquérito civil para evitar que aquele instrumento contratual seja adotado nas relações de massa, porque contém cláusulas abusivas? Essas cláusulas não resultaram ainda de contrato concreto, e podem, portanto, ser controladas preventivamente.

Esses fenômenos da atualidade se afastaram gradativamente do modelo liberal, que é um modelo que ainda imaginamos deva ser adotado e que se reduz às relações ditas paritárias entre aquele que exerce atividade - outro conceito que ingressa atualmente com força para compreensão do direito contratual – e lança produtos e serviços no mercado de consumo, e o consumidor. Então, se quero vender meu relógio usado para outra pessoa, ainda estou sob a incidência do Código Civil, que é direito comum. Todavia, se exerço uma atividade, que deve ser entendida como um complexo de atos teleologicamente ordenados, já não incide o Código Civil, mas a legislação de proteção do consumidor. A regra de ouro de interpretação, nesses casos, é a expressa no Código do Consumidor, que é a interpretatio contra stipulatorem. Dela deflui o princípio que cada vez mais assumiu o lugar e se contrapõe ao princípio da autonomia da vontade, que é o princípio da equivalência. Quando falo em submissão nas relações contratuais, significa que, ao invés de olhar o sujeito concreto da relação contratual, o direito moderno deve olhar o contratante médio, típico, e portanto, abstrato. É neste sentido que vai a rehumanização do direito contratual, que é a busca de proteção e de garantia do exercício da cidadania, porque o direito do consumidor é hoje uma das dimensões da cidadania.

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Há pouco, no Painel da manhã, afirmou-se que o neoliberalismo voltou a propagar a tese da mão invisível do mercado, que é o retorno ao Estado mínimo. Hoje, na verdade, o que temos é uma transformação do Estado social, sobretudo da década de 90 para cá, convertendo-se de um Estado empreendedor em um Estado regulador. Mas, quando ele se transforma em Estado regulador não perde sua natureza de Estado social, que é o Estado que se caracteriza justamente pela intervenção legislativa, judiciária e administrativa. Hoje, muito mais, temos que dizer que o que está se percebendo, na transformação do direito contratual, é a chamada mão visível do Estado, que passa a controlar o mercado. Como compatibilizar esse fenômeno com o discurso neoliberal, que aponta para o Estado mínimo, ou seja, o Estado que não regula? É nesta situação própria que a evolução do Direito transparece com regulações que são típicas desta virada de século, como: controle do mercado, legislação de livre concorrência, tutela do consumidor, afirmação e busca da qualidade dos produtos e serviços. Isso tudo se faz mediante a afirmação do Direito. Vejam o paradoxo: o paraíso do neoliberalismo, que são os Estados Unidos, é o berço da legislação mais decisiva de proteção à livre concorrência e à tutela do consumidor. O fenômeno próprio do Estado social é a tutela da parte mais fraca da relação, é dizer, o contratante que a lei presume mais fraco, ou seja, o rico que pega um produto no supermercado que pode lesar sua saúde está na mesma situação de hiposuficiência do pobre, que comprou o mesmo produto. Por isso que, ao invés de consentimento, o Direito aponta para outras categorias, tais como: o dever de informar, que gera responsabilidade pré-contratual, que os nossos Códigos tradicionais não cuidam, nem mesmo o Projeto do Código Civil. Essas situações fazem com que todos nós repensemos nossas bases conceituais, para a realização do Direito de modo geral.

Se compararmos os princípios do Estado liberal com os princípios que estão presentes no Estado social contemporâneo, veremos que aqueles pouco têm a ver com essas situações. Não se fala apenas de contratos de adesão a condições gerais, mas dos contratos massificados. A realidade deste final de século é a da população explodindo, no mundo inteiro, de intensificação do processo de urbanização. O Brasil está virando o século com três quartos da população vivendo em cidades, ou seja, com outros valores, outros conceitos, submetida a situações de massificação em que a liberdade é a liberdade apenas de obter um produto ou um serviço que esteja posto no mercado e nisso está reduzida a possibilidade de escolha. Cogita-se, para o campo do Direito contratual, de algo como condutas equivalentes à aceitação. Melhor seria afastar a equivalência com a aceitação e entender essas condutas como suficientes para estabelecer conseqüências contratualiformes. Esses novos princípios, que estão marcando muito mais fortemente a natureza e a essência dos contratos são: o princípio da função social, da igualdade material, da boa-fé objetiva e da equivalência contratual. Ou seja, superamos o plano do contrato liberal que é baseado na igualdade formal, portanto, na abstração dos sujeitos, e agora o direito contratual se volta para verificar, efetivamente, qual a força ou o poder de cada parte contratante. Por isso que o princípio da função social supera a função individual que esteve presente no modelo liberal. Além da função individual, que evidentemente continua, nenhum contrato pode ser admitido pelo Direito, se lesar os interesses e valores constitucionalmente estabelecidos, como por exemplo o da justiça social, que é o macro princípio estabelecido no artigo 170 da Constituição. Ele não está posto ali por acaso. É uma justiça promotora - ao contrário da justiça dos gregos, que é a justiça comutativa, que foi sempre chamada "a justiça própria dos contratos" e reabsorvida no modelo liberal - que leva em consideração a desigualdade real das pessoas. Por isso que a Constituição, em dois momentos, tanto no artigo primeiro quanto no artigo 170, se refere à necessidade de redução das desigualdades econômicas e sociais. Nenhuma atividade negocial pode ser realizada em afronta ao princípio da justiça social, que contém necessariamente conceitos indeterminados, que vão ser preenchidos em cada momento pela mediação concretizadora do julgador, que seja capaz de captar os valores de uma determinada sociedade.

Se é assim, como podemos pensar em um caminho de retrocesso? Seria possível imaginarmos hoje um direito contratual que afastasse a proteção ao consumidor? Seria, no mínimo, uma agressão à evolução histórica, uma desconsideração à realidade social. Não é um juízo de valor, porque nada tem a ver com aquele sujeito soberano de sua vontade. O consumidor como rei do mercado nunca existiu; o que lemos nas páginas da literatura é a história da exploração da liberdade, no sentido de subjugar os mais fracos. Aquela famosa frase está sempre presente em nossas mentes: "Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei [agora muito mais a Constituição] liberta". Isso porque a Constituição incorpora os princípios gerais, que deixaram de ter a natureza da Lei de Introdução ao Código Civil, de princípios supletivos, após a lei, e os costumes. Converteram-se em normas de conformação do sistema, hierarquicamente superiores, condicionando o conteúdo dos direitos infraconstitucionais. Nesse nível são os princípios da função social, da vedação a abusos do poder econômico, da regulação da atividade econômica entre outros. Aliás, como dizem os professores Fachin e Tepedino, a Constituição hoje é o centro unificador do direito privado. Apesar do poder planetário das empresas, só as Constituições dos países são capazes de assegurar esses valores como o da dignidade da pessoa humana.

O discurso neoliberal é a-histórico, o que temos cada vez mais é o advento do direito novo, acima de tudo como expressão da realidade social e dos valores que a sociedade está perseguindo

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Direito Contratual e Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/563. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado em palestra proferida pelo autor na II Conferência dos Advogados do Estado do Paraná, promovida pela OAB-PR, em Curitiba, em 12.08.1999. O texto, extraído de gravação, foi revisto pelo autor.

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