Artigo Destaque dos editores

Preconceito sem cara:

cotas, racismo e preconceito

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

É difícil dizer da verdadeira intenção das pessoas, mas com certeza, poucos são os seres humanos que não desejam viver num mundo mais justo que o atual. Do pior criminoso ao mais honesto dos homens, feita esta pergunta, teríamos indiscutivelmente uma resposta em sentido afirmativo quase que unânime.

Mas por que a maioria das pessoas age de forma a contrariar essa intenção universal? Tal pergunta é de difícil resposta, mas arrisco-me a dizer que o sentimento universal de bem comum, apesar de presente em quase todos os seres racionais do planeta terra, exerce ainda menor influência nos atos da vida cotidiana do que o sentimento individualista, próprio do mundo capitalista atual. O resultado prático imediatista do ato individual sempre se sobrepõe ao resultado a longo prazo, porém eficaz, do ato coletivista.

Temos hoje em voga a questão do racismo, do preconceito e das cotas no Brasil. É consenso geral entre pessoas de bom-senso, que vivemos em um país de desigualdades, onde o preconceito e o racismo estão, há muito, incutidos no cerne das relações interpessoais pátrias. No entanto, quando se fala em reparação pelos mais de 300 anos de escravidão, injúria, opressão e discriminação, ou em tentativas de inclusão social do negro, o sentimento egoísta individual e o medo de ter que ceder quaisquer direitos em favor de uma parcela oprimida da população, falam mais alto.

Há algum tempo, não me lembro ao certo quando e onde, tive oportunidade de conhecer a teoria de um brilhante autor o qual dizia que o problema da igualdade é que todos só a desejam com relação a quem está em situação melhor do que a sua. Tal colocação é fantástica e completamente atual. Como dizia Luther King JR., ninguém deseja ceder direitos aos injustiçados, sem que esses lutem por eles. As pessoas desejam, sim, aumentar quaisquer direitos já conquistados e nunca ceder em favor dos menos favorecidos, quando tal ajuda implique em ter que dividir direitos.

A história nos mostra que a mesma situação já ocorreu na maioria dos países do mundo. Por isso soa tão mal, em uma avaliação superficial, qualquer proposta de ação afirmativa. Essa é a luta que a ação afirmativa trava diariamente contra o individualismo egoísta e em prol de uma sociedade mais justa.

Sabemos que o maior problema a ser enfrentado no combate à discriminação racial no Brasil está no formato covarde como ela aqui se apresenta (ou se esconde). O direito à igualdade é amplamente protegido na Constituição da República em vários de seus dispositivos (art. 3º, incisos: I e IV, art. 4º, incisos: II e VIII, art. 5º e outros) o que não garante, no entanto, a tão sonhada justiça social almejada por alguns poucos constituintes e pela maior parte do povo brasileiro.


COMPROVAÇÃO DA SITUAÇÃO DE DESIGUALDADE

É clara e evidente a situação de desigualdade em nosso país. Alguns dados são alarmantes, no entanto, muito pouco divulgados. O movimento 3 de fevereiro (criado em função do assassinato brutal do estudante negro paulista Flávio Ferreira em São Paulo, por policiais) aponta alguns exemplos da real situação do negro no Brasil:

1- Perfil dos ingressantes na Universidade de São Paulo:

80,4% Brancos

67,8% Escolas Particulares

92% Acesso livre a internet

76,2% Não trabalha

69,6% Fez cursinho pré-vestibular

(fonte: Pró-reitoria de graduação da USP, Fuvest e Vunesp/2004.)

2-Cursos com maiores proporções de negros e pardos:

40% História

39,6% Geografia

35,4% Matemática

34,4% Letras

32,2% Pedagogia

(fonte: Inep/MEC e Pnad 2002 IBGE.)

3- "Nos quatro últimos anos, 91% das crianças que foram adotadas no Rio de Janeiro tinham até 4 anos e pele clara..." (fonte: Folha de São Paulo, março de 2004.)

4- 91% dos jovens negros do Estado de São Paulo já foram abordados pela Polícia. (fonte: Datafolha, 2004).

5- O índice de discriminação racial e o preconceito de cor por parte da polícia é maior do que dos seguintes quesitos institucionais: escola, trabalho, saúde e lazer. (fonte: Fundação Perceu Abramo, 2003.)

Alguns dados do Dieese (não os mais recentes, mas ainda atuais), também devem ser aqui disponibilizados.

No momento da realização da pesquisa:

1- Algo em torno de 2% dos alunos das universidades brasileiras eram negros;

2- Quase 70% dos pobres eram negros ou pardos.

3- A média da população brasileira ficava em 63º lugar em qualidade de vida, sendo que a do mesmo brasileiro, negro, ficava em 120º(igualado à média de países como Zimbabwe e Lesoto na África).

4- Em Belo Horizonte, a taxa de desemprego era de 13% para brancos e 17,8% para negros.

5- O salário real dos negros em BH era de R$466,00, o que corresponde a 65% do salário do trabalhador não negro que recebia R$718,00.


ARGUMENTO PARA DISCRIMINAR

Um dos principais argumentos utilizados pelos grupos contrários à criação de política de cotas e à ação afirmativa, é que tais políticas contrariam o princípio da igualdade. Seria desigual separar cotas para negros, uma vez que todos devem competir em iguais condições. Com base em todos os ítens acima expostos, seria plausível argumentar que o negro está competindo em condições de igualdade com o branco? A melhor conclusão a que podemos chegar com base em tais dados, é que a suposta igualdade, tão defendida pelo cidadão branco, está sendo utilizada somente para justificar, perpetuar e aumentar esse abismo de desigualdade social existente em nosso país.

O verdadeiro teor do princípio da igualdade, expressamente previsto em nossa Carta Constitucional, garante a proibição do tratamento desigual entre pessoas que se encontrem em condições iguais. Não proíbe, contudo, o tratamento diferenciado de um grupo de pessoas que se encontrem em situações desiguais, como forma de se amenizar ou diminuir diferenças e injustiças. É o caso da reserva preferencial para maiores de 60 anos, de lugares em ônibus, como previsto no Estatuto do Idoso e a autorização por lei, de espaços disponíveis em coletivos, para os deficientes. Caso tal discriminação fosse vedada pela Constituição da República, o Estado estaria proibido de criar quaisquer benefícios aos idosos, aos deficientes, aos índios, às mulheres e às crianças o que, diga-se de passagem, levaria a conclusões as mais absurdas. Seria inadmissível, contudo, a criação, pelo Estado, de um tributo direcionado somente aos advogados que vistam terno preto, sendo que os demais advogados estariam livres do mesmo. Nesse caso estaríamos diante de uma afronta ao princípio constitucional da igualdade.

O Estado está autorizado, sim, a criar diferenças entre pessoas que se encontrem em situação desigual, desde que a criação de tais diferenças seja de interesse público e atinja a finalidade precípua do Estado que é promover o bem comum. O negro, assim como o deficiente, a mulher, a criança e o idoso, tem garantido o direito de proteção diferenciada pelo Estado, por se encontrar, hoje, em sua grande maioria, em situação de hipossuficiência social.


CONCEITOS

Como forma de entender o problema, devemos entender alguns conceitos básicos relativos ao tema.

A discriminação pode ser positiva ou negativa, dividindo-se, esta última, em direta ou indireta. Entende-se por positiva a discriminação que regula positivamente o sistema econômico/social de forma a amenizar as diferenças existentes em determinado grupo, país ou região. Como exemplo bastante simplificado, temos a intervenção do Estado na economia, criando, através de Leis, benefícios e incentivos fiscais para as pequenas empresas, como forma de garantir a sobrevivência dessas no mercado, para que não sejam engolidas por multinacionais. Existe no caso uma situação desproporcional clara, onde é evidente que, se não houver intervenção Estatal, predominará a injustiça. Quando a pequena empresa atinge o patamar de média ou grande empresa, podendo assim concorrer de forma justa no mercado e sem que seja prejudicada, o Estado retira gradualmente o incentivo, deixando que a mesma se desenvolva de forma mais independente.

A Ação Afirmativa é outro exemplo de discriminação positiva e tem o mesmo fundamento do acima aduzido, uma vez que defende a implementação de políticas públicas compensatórias visando a equilibrar as desigualdades sociais gritantes e, dessa forma, atender às finalidades sociais do Estado Democrático de Direito. O que nada mais é do que fazer prevalecer o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.

A discriminação negativa é aquela que prejudica determinado grupo ou cidadão pela criação de situações injustas. Pode ser encontrada em duas formas: direta ou indireta. A discriminação negativa direta é aquela exercida por meio da adoção de regras que estabelecem distinções através de proibições. É o preconceito expressado por meio de normas legais ou sociais. Como exemplo poderíamos citar a colocação de uma placa em prédio residencial dizendo ser proibida a entrada de negros nos elevadores sociais. Já a discriminação indireta é aquela que se apresenta em situações aparentemente neutras, mas que notadamente remetem a desigualdades. Esta última forma é tão ou mais danosa que a primeira e é, atualmente, a mais comum em nosso país. Se no mesmo prédio citado no exemplo anterior, não existisse a aduzida placa, mas se os moradores, veladamente, se recusassem a entrar no elevador por causa da presença de um negro, ali, sim, teríamos um exemplo de discriminação indireta.

A discriminação negativa é considerada um segundo estágio do preconceito. Temos por preconceito a formação de idéia de inferioridade ou incapacidade de determinado indivíduo ou grupo, sem necessidade de ser externado para se configurar. Já a discriminação racial ocupa o topo na escala dos atos de intolerância social. Elaé a materialização dos preconceitos e é composta por atitudes de segregar, distinguir, subjugar, vedar, impedir, dificultar, preterir pessoas em seu processo de desenvolvimento pleno como seres humanos.

A discriminação é de mais fácil detecção e combate do que o preconceito. Tanto o racismo quanto o preconceito têm efeitos sociais destrutivos incalculáveis. A forma indireta de discriminação, tão presente no inconsciente do povo brasileiro, parece-nos ser mais perigosa e devastadora do que a direta. Isto porque torna invisível o agente causador do dano. Sabemos que o preconceito está vivo, está ali, agindo por meio da discriminação, mas não podemos identificá-lo claramente, para combatê-lo de forma mais veemente.


EFEITOS DO RACISMO

Quem nunca passou pela situação constrangedora de um dia entrar em uma loja qualquer e ser mal atendido pelo simples fato de não estar bem vestido? Tal sensação, que a maioria dos leitores brancos desse artigo teve o desprazer de sentir algumas poucas vezes na vida, é engolida quase que diariamente por quase todos os negros de nosso país, onde quer que se encontrem e pelo simples fato de serem negros. Não se pode mensurar o efeito devastador de tal ataque diário à dignidade de um homem.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Para se ter uma idéia da capacidade devastadora do racismo, recente pesquisa demonstrou nos EUA que, hoje, naquele país, os negros vivem cerca de 20% menos do que os brancos, devido ao estresse diário a que se submetem, em razão de toda discriminação sofrida.

É nesse sentido o estudo da professora Maria Inês da Universidade Federal de Mato Grosso, que demonstrou já em 1995, com sua tese de doutoramento "Racismo e Saúde", os efeitos devastadores das desigualdades étnicas. Em sua pesquisa, a professora relatou que a projeção da expectativa de vida do brasileiro feita pelo IBGE, para o ano de 1995, era de 64 anos para os homens e 70 anos para as mulheres. No entanto, em seu trabalho, a professora demonstra que, na cidade de São Paulo, os negros não chegam a atingir essa média. Segundo ela, 63% dos homens negros morrem antes de completar 50 anos. E a mulher negra, que deveria ter expectativa de vida maior do que a dos homens, tem na verdade mortalidade proporcional à do homem branco, sendo que 40% delas morrem antes dos 50 anos.


ORIGEM DO MODELO MODERNO

O modelo atual de discriminação, imposto pela Europa aos demais países do mundo, tem sua origem na procura por mão de obra escrava para sustentar o modelo colonialista então vigente na época dos descobrimentos. Com o apoio de alguns segmentos da Igreja Católica (Padre Vieira dizia que ser negro e cativo era estar em "estado de pecado permanente"), das leis e com a posterior ascensão das teorias evolucionistas do século XIX, o racismo foi se tornando um instituto cada vez mais estruturado e defendido mundialmente. Peter Magabune, fotógrafo que foi preso, torturado e morto por ter registrado imagens do apartheid na África do Sul, assim definiu o contexto de difusão das idéias racistas:

"O conceito de raça criado na Europa foi arbitrariamente definido e utilizado para dividir a humanidade segundo critérios de inferioridade-superioridade. Uma vez determinada a posição das raças "inferiores", a ciência, o direito, a religião e a opinião pública legitimaram seu status. Em pouco tempo, toda uma cultura organizada em torno de práticas de exclusão e repressão racial era legitimada, a necessidade de associar cor da pele e fisionomia tornou-se uma obsessão crescente para justificar o genocídio, a escravidão e o colonialismo [1]."


INFLUÊNCIAS NO BRASIL

Seguindo tal tendência européia, mas já no contexto histórico brasileiro, o francês Joseph Gobineau (um dos pais do racismo moderno, que influenciou diretamente o nazismo e o facismo com seu ensaio pseudocientífico: "A Desigualdade das Raças Humanas"), chega ao Brasil ainda no Império, para exercer aqui a função de embaixador de seu país. Tornando-se grande amigo de D. Pedro II, defendeu duramente a tese de que nosso país não poderia se desenvolver, devido ao enorme contingente de indivíduos pertencentes a "raças inferiores". Essa orientação racista foi adotada e enunciada de forma clara pelo Imperador. Tal tese, apesar de sua completa inconsistência científica, exerceu influência marcante na forma de pensar da sociedade brasileira. Estava descoberta, então, pela classe dominante brasileira, mais uma justificativa para a existência do maior e mais perverso dos crimes contra a humanidade: a escravidão.

Após proclamar a República, em 1889, Deodoro da Fonseca tomou medidas para estimular a imigração européia. Uma de suas intenções com tal medida, foi tentar um "embranquecimento" da população. O Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que regulamentava a introdução de imigrantes no Brasil, proibiu a entrada de africanos e asiáticos no país. O destino dos que já se encontravam em nosso país foi assim definido por Paulo Prado: "Já com um oitavo de sangue negro, a aparência africana se apaga por completo".

Já na chamada "Era Vargas", Getúlio assinou um Decreto, em 18 de setembro de 1943, onde prescreve claramente: "Atender-se-á na admissão dos imigrantes à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência européia".

Institutos nefastos como os acima citados ainda por muito tempo se mantiveram em nosso ordenamento, a exigência, por exemplo, de registro dos templos de candomblé junto às autoridades policiais foi necessária na Bahia até 1976.

Ocorre que, como foi bem lembrado pela Ilma. professora Celene Fonseca em "O Descobrimento que não houve", a maioria dos povos europeus foram escravos dos romanos. E os romanos também foram escravos de outros povos. Conclui dizendo que hoje, como vencedores, europeus e americanos, ditam a história. Dessa forma, aprendemos indiretamente na maioria das nossas escolas que a escravidão se iniciou com os negros, que a Europa já nasceu gloriosa e que o 3º mundo, sempre será terceiro mundo, independente dos rumos que resolva tomar.

Disse, corretamente, Celene Fonseca que, com o Brasil inserido no contexto global da história humana, não deve haver sequer lugar para sentimentos de inferioridade; o que devemos, ao contrário, é lutar para combater o etnocentrismo europeu e seu principal braço ativista, o racismo.


LUTHER KING

Movimentos de resistência contra a dominação sempre existiram e passaram a se multiplicar e a ter expressão em todo o mundo. Vários nomes se destacaram ao longo da história, na luta contra a discriminação, dentre eles, citaremos o de Martin Luther King Jr.

Luther King foi grande porque traçou como limite de sua luta a paz mundial. Homens como ele não nascem a todo momento e poucas são as gerações que tiveram a sorte de ter presenciado em vida a luta de pessoa tão esclarecida e de tamanho grau de consciência política e humana.

Na ocasião do recebimento do Prêmio Nobel da Paz, em 10 de dezembro de 1964, ele assim expressou seus objetivos:

"Eu tenho a audácia de acreditar em um mundo onde pessoas de todos os lugares do mundo possam ter três refeições por dia para seus corpos, educação e cultura para suas mentes e dignidade, igualdade e liberdade para suas almas. Eu acredito que o que o homem egoísta pôs no chão, o homem do bem pode reconstruir. Eu acredito que um dia a humanidade irá se curvar perante o altar de Deus, triunfante sobre a guerra e o derramamento de sangue, e a salvação não violenta dos bons costumes irá então ditar as regras da terra." [2]

A primeira atuação de Dr. King na luta pelos direitos civis nos EUA, ocorreu em defesa de uma respeitada senhora negra de sua comunidade que foi presa por se recusar a ceder seu lugar no ônibus a um branco que não tinha onde se assentar. De acordo com a lei daquele estado, quando um branco entrasse em um ônibus coletivo e não houvesse lugar para ele se assentar, os negros que estivessem acomodados deveriam se levantar para dar seu lugar a ele. Dr. King organizou então uma manifestação, onde convenceu toda a comunidade negra a não mais utilizar o transporte coletivo, até que as leis fossem modificadas. Muitos seguiam caminhando ou de carro para seus trabalhos o que causou enorme prejuízo às empresas de transporte, que foram obrigadas a ceder, pressionando o estado a revogar tal lei.

"A prova de fogo para se medir o caráter de um homem não é saber onde ele se encontra nos momentos de conforto, tranqüilidade e conveniência, mas sim onde ele está nos momentos de mudança, tensão, conturbação e controvérsia. O verdadeiro vizinho irá arriscar sua posição social, seu prestigio e até sua vida para o bem estar dos outros. Nos lugares perigosos e nos caminhos inseguros, ele irá ajudar algum homem ferido, ou machucado a se levantar para uma vida mais nobre e digna." [3]

Ao questionar esse tipo de lei, ML foi chamado de desordeiro, agitador, etc. No entanto, respondeu às criticas dizendo que apesar dessas leis pregarem a discriminação, a constituição americana garantia a ele o direito à igualdade. Ele não seria, portanto, obrigado a seguir leis que contrariassem a Constituição. Se tivesse de respeitar alguma lei, essa lei seria a constituição. Citou Santo Agostinho que dizia que uma lei injusta não seria uma lei realmente. A lei justa seria a que segue princípios morais ou de Deus, qualquer lei que degrade um ser humano injustamente, para ele, não poderia ser chamada ou obedecida como lei.

Com apropriada razão, ele esclarece que uma injustiça em algum lugar do país, será sempre uma ameaça à justiça de todo o país. Para ele, as pessoas estariam amarradas em uma veste única do destino e todos os cidadãos americanos estariam de tal maneira entrelaçados que, o que afeta a um diretamente, estará sempre afetando a todos indiretamente.

Foi na ocasião de sua prisão por outro protesto pacífico em Birmingham, sul do EUA, que Luther King Jr. escreveu a carta "The Negro is Your Brother", onde descreveu a filosofia do movimento criado por ele naquele país. Afirmou nessa ocasião que a verdadeira "paz social" não poderia ser encontrada naquela sociedade onde não existissem tensões ou conflitos sociais, mas, sim, naquela que reconhecesse e privilegiasse a verdadeira justiça social entre seus cidadãos. Ausência de conflitos e silêncio social nunca foram, para ele, sinônimos de justiça social.

Os negros americanos propuseram-se enfrentar o problema racial de forma organizada, aberta e direta. O inimigo nos EUA, tornou-se então, na maioria dos casos, um alvo visível, que começou a ser devidamente combatido. Ao contrário do que acontece aqui no Brasil, onde as pessoas disfarçam todo o seu preconceito sob uma fina máscara de democracia racial, elementos históricos e culturais levaram os afro-descendentes da América do Norte ao confronto direto contra esse terrível mal.

No Brasil, a inquietação social criada pelos movimentos dos "sem teto" e "sem terra" vem nos lembrar, diariamente, que, apesar da falta de conflitos étnicos de maiores proporções, estamos ainda longe do chamado estado de "paz social".

Ainda para refletirmos, o maior líder negro americano, nessa brilhante obra escrita a mão em uma cela de cadeia, revela de forma convincente, intrigante e surpreendente, não serem a "Ku Klux Klanner" ou a "White Citzens Councillor" os piores inimigos do movimento negro americano e sim, aqueles cidadãos brancos, moderados, que dão maior atenção e importância à "ordem" em suas cidades do que à "verdadeira justiça".

Indignado, ele completa seu pensamento dizendo que não suporta ouvir das pessoas de boa conduta, que elas concordam com os argumentos do movimento negro, mas que não concordam com seus métodos não violentos e com o momento da ação, repetindo sempre para os oprimidos: "esperem uma oportunidade melhor para agir", como se pudéssemos marcar hora para a libertação de um ser humano que se encontra acorrentado e acuado em seu perverso cativeiro social.

Segundo ML, nenhum movimento pode esperar por uma tabela de horários dada pelo opressor para reivindicar direitos. Esse "espere" soa como "nunca" porque para ele, justiça adiada por muito tempo é justiça negada. Dizia que, pior do que ter de suportar as ofensas e conviver com elas e com a falta de compreensão declarada das pessoas de má índole, é ter de conviver com o silêncio das pessoas de boa índole.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Guilherme Guimarães Sant´Ana

Advogado,especialista em Direito Tributário pela Escola Superior da OAB/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANT´ANA, Guilherme Guimarães. Preconceito sem cara:: cotas, racismo e preconceito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 427, 7 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5652. Acesso em: 24 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos