Capa da publicação Descriminalização do aborto até a 12ª semana: uma leitura conservadora dos direitos fundamentais e da ADPF 442
Artigo Destaque dos editores

O grito silencioso dos inocentes:

Uma leitura conservadora dos direitos fundamentais e da ADPF 442 que pretende descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação

Leia nesta página:

Ou o Parlamento resgata a sua missão institucional de instância pública de deliberação da sociedade, ou será atropelado por outras instituições e será desprezado pela sociedade.

1. Cuida-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL “indicando como preceitos violados os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, todos da Constituição Federal (art. 1º, incisos I e II; art. 3º, inciso IV; art. 5º, caput e incisos I, III; art. 6º, caput; art. 196; art. 226, § 7º), para que seja declarada a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal (Decreto-Lei no 2.848/1940).”

2. Os preceitos alvejados possuem a seguinte redação:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

3. Segundo o requerente os aludidos preceitos violam os seguintes dispositivos constitucionais:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

.............

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

..........

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

........

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

4. O requerente postulou a concessão de medida cautelar:

111. Apresentados os elementos que configuram a probabilidade do direito e o perigo do dano que autorizam a tutela de urgência, com base no art. 5º, caput, §3º da Lei n. 9.882/99, pede-se que seja concedida medida liminar para suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os artigos 124 e 126 do Código Penal ora questionados a casos de interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez. E que se reconheça o direito constitucional das mulheres de interromper a gestação, e dos profissionais de saúde de realizar o procedimento.

5. Alfim, o requerente suplicou:

(a) a notificação do Congresso Nacional para que preste informações, com base nos art. 5º, §2º, e art. 6º, da Lei n. 9.882/1999;

(b) a promoção da oitiva do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, com base nos art. 5º, § 2º, e art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.882/1999;

(c) a confirmação da medida liminar e, no mérito, a procedência da presente Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental para que, com eficácia geral e efeito vinculante, esta Suprema Corte declare a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas, por serem incompatíveis com a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres e a promoção da não discriminação como princípios fundamentais da República, e por violarem direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento.

6. Logo na introdução de seu petitório, o requerente formulou algumas indagações:

6.1. Os arts. 124 e 126 do Código Penal se justificam diante de preceitos constitucionais?

6.2. Qual a razoabilidade constitucional do poder coercitivo do Estado para coibir o aborto?

7. Para justificar a sua postulação, o requerente aduziu:

7.1. A criminalização do aborto e a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida;

7.2. A criminalização do aborto afeta desproporcionalmente mulheres negras, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos, onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros do que aqueles utilizados por mulheres com maior acesso à informação e poder econômico, resultando em uma grave afronta ao princípio da não discriminação;

7.3. A criminalização do aborto também afronta o objetivo republicano de promoção do bem de todos, ‘sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’;

7.4. A negação do direito ao aborto pode levar a dores e sofrimentos agudos para uma mulher, ainda mais grave e previsíveis conforme condições específicas de vulnerabilidade que variam com a idade, classe, cor e condições de deficiência de mulheres, adolescentes e meninas;

7.5. Constitui tortura a negação de serviços de saúde reprodutiva, como o aborto, em que profissionais de saúde em situação de autoridade sobre mulheres impõem-lhes sofrimento em razão de discriminação, na medida em que a decisão por não seguir uma gestação contraria a expectativa de maternidade compulsória associada às mulheres;

7.6. A coerção punitiva tem efeitos não só no senso de integridade, mas também na ocorrência de mortes evitáveis e morbidade, isto é, danos à saúde física e mental das mulheres;

7.7. A criminalização do aborto viola o direito ao planejamento familiar, que se constitui direito fundamental por ser fundado diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana e é infringido quando uma mulher é impedida de tomar uma decisão reprodutiva relevante e crucial;

7.8. Impedir às mulheres o efetivo controle sobre a própria fecundidade e a possibilidade de tomar decisões responsáveis sobre sua sexualidade, sem risco de sofrer coerção ou violência, a criminalização do aborto configura-se violação do direito fundamental à liberdade e aos direitos sexuais e reprodutivos;

7.9. A criminalização do aborto viola a previsão de direitos sexuais e reprodutivos em compromissos assumidos internacionalmente, ao não permitir às mulheres viver a sexualidade livre de coerção, discriminação ou violência, decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos, e gozar do mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva;

7.10. A criminalização do aborto também afronta o princípio da igualdade de gênero, decorrente do direito fundamental à igualdade e do objetivo fundamental da República de não discriminação baseada em sexo, uma vez que impõe às mulheres condições mais gravosas, inclusive perigosas à sua saúde, para a tomada de decisões reprodutivas, desproporcionais em comparação com as condições para a tomada das mesmas decisões por parte dos homens, que não são submetidos à criminalização e as consequências da coerção penal nas condições de exercício de seus direitos a uma vida digna e cidadã;

7.11. No direito comparado houve revisão constitucional do aborto em diferentes países democráticos, com a transferência do litígio político das instâncias político-legislativas (Parlamento) para as Cortes;

7.12. Nos Estados Unidos, no caso Roe vs. Wade, a Suprema Corte decidiu que a mulher possui, com lastro no direito de privacidade, e se estiver até o terceiro mês de gestação, o direito de abortar. No caso Doe vs. Bolton, a Suprema Corte admitiu o direito ao aborto, independentemente do marco temporal, se o procedimento fosse necessário para proteger a saúde das mulheres. No caso Casey, a Corte rejeitou o marco temporal trimestral como parâmetro para as garantias constitucionais do direito ao aborto e sua substituição pelo parâmetro de proibição aos ‘obstáculos indevidos’ ao direito ao aborto;

7.13. Na Alemanha, a Corte reafirmou que o aborto é uma prática indesejável e que as mulheres têm, por regra, o dever de prosseguir com a gestação, mas não deveriam ser punidas em caso de aborto no primeiro trimestre, se o Parlamento adotasse um esquema regulatório para preservar o desenvolvimento do feto;

7.14. Ainda na Alemanha, o padrão regulatório considerado constitucional deveria incluir aconselhamento com informações sobre educação sexual e planejamento familiar, programas de assistência social e apoio para acesso a moradia, educação e formação profissional às mulheres, de maneira a constituir estratégia não penal do Estado para cumprir o dever de proteção ao direito à vida e proteção ao feto. Uma das características da questão do aborto na Corte alemã é a centralidade do princípio da dignidade humana (não apenas neste caso, mas em várias outras questões constitucionais no país), mas também a imposição de condicionalidades às mulheres, como aconselhamento compulsório e tempo de espera entre a decisão e o procedimento;

7.15. Na Colômbia, a Corte tornou o aborto um direito constitucional em três causas: se a vida ou a saúde da mulher estiver em perigo; se a gravidez for resultado de estupro ou incesto; se a malformação fetal for incompatível com a sobrevida extrauterina do feto;

7.16. No Brasil, na ADPF 54, o STF reconheceu como válida a antecipação terapêutica do parto na hipótese de o feto padecer de anencefalia; na ADI 3.510, o Tribunal entendeu como válidas as pesquisas com células-tronco embrionárias, forte na tese de que o embrião humano “in vitro” não é pessoa humana; E no HC 124.306, a Primeira Turma do STF acompanhou o voto do ministro Luís Roberto Barroso no sentido da inconstitucionalidade da criminalização do aborto voluntário nos primeiros 3 meses de gestação;

7.17. A legitimidade das decisões do STF não se assenta na representação política, mas na sua representação argumentativa, vinculada ao princípio da dignidade da pessoa humana para a garantia de projetos de vida plurais e razoáveis, como sucedeu, por exemplo, no julgamento da ADPF 132 que reconheceu a união civil de pessoas do mesmo sexo;

7.18. A dignidade da pessoa humana foi o princípio de fundamento convocado para o enfrentamento da questão do aborto em diferentes Cortes Constitucionais;

7.19. Somente humanos podem ser qualificados como pessoas constitucionais. Não basta o pertencimento à espécie humana, isto é, o valor intrínseco do humano, mas o estatuto de ‘pessoa humana’ para a imputação de direitos fundamentais;

7.20. A condição existencial do embrião ou feto é ontologicamente dependente da integridade física e mental da mulher que o gesta;

7.21. O estatuto de pessoa constitucional inicia-se no nascimento com potência de sobrevida, mesmo com auxílio de complexas tecnologias biomédicas;

7.22. Embrião ou feto é criatura humana com valor intrínseco, mas sem o estatuto de pessoa constitucional – por isso, sua proteção é infraconstitucional. Embriões e fetos humanos pertencem à espécie humana, podendo se referenciar a eles demandas concretizáveis com o nascimento, como o de futuros direitos patrimoniais;

7.23. Na questão do aborto, a autonomia é a proteção à intimidade moral de cada mulher sobre sua vida reprodutiva, isto é, o reconhecimento de sua capacidade ética de guiar-se por seu projeto de vida individual;

7.24. Porque somente mulheres engravidam, o direito ao aborto é uma condição de possibilidade para o exercício da cidadania de cada mulher;

7.25. A gravidez coercitiva, isto é, ‘a maternidade compulsória’, representa um regime injusto de controle punitivo com potenciais efeitos disruptivos ao projeto de vida das mulheres;

7.26. Dada a desigualdade de renda, cor e região da sociedade brasileira, as mulheres brancas, de renda mais alta, do sul e sudeste do país exercem sua autodeterminação quanto ao aborto, mesmo em contexto de ilegalidade, seja pelo acesso aos serviços de saúde em outros países ou por métodos clandestinos mais seguros. Se as vantagens de classe favorecem a autodeterminação das mulheres de maior renda, às pobres resta o aborto realizado em condições muito inseguras ou a maternidade compulsória. A criminalização do aborto também tende a ser particularmente disruptiva aos projetos de vida das mulheres jovens: no nordeste brasileiro, por exemplo, a taxa de gravidez na adolescência é uma das mais altas da América Latina, e a maternidade compulsória tem consequências imediatas para a realização de várias capacidades das mulheres jovens, como escolarização, trabalho e lazer;

7.27. Em determinadas circunstâncias, as negações de aborto podem causar dores ou sofrimentos agudos para a mulher, adolescente ou menina, que chegam ao patamar de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Esta dor pode ser física ou mental, e em certos casos é previsível;

7.28. Os dados empíricos sobre os efeitos da criminalização mostram que a lei penal não impede que abortos sejam feitos e, injustamente, força as mulheres comuns à ilegalidade e aos riscos da clandestinidade, favorecendo um mercado desregulado e arriscado de medicamentos e clínicas inseguras;

7.29. A inadequação da criminalização do aborto para fomentar os fins visados: a) não se promove o valor intrínseco do humano no embrião ou o feto; b) o aborto é um evento reprodutivo que tem início muito precocemente na vida reprodutiva das mulheres, ainda na adolescência; c) a criminalização impede que a assistência ao aborto seja um momento de educação para o planejamento familiar e prevenção para futuros abortos; d) a criminalização favorece um mercado clandestino de medicamentos ou clínicas, amplificando os riscos à saúde e vida das mulheres. Em uma perspectiva nacional, as taxas de morbimortalidade materna e o número de internações em hospitais para curetagens uterinas pós-aborto são evidências sistemáticas dos riscos impostos às mulheres pela ilegalidade do aborto no Brasil;

7.30. Tão importante quanto a superação do teste da necessidade é a evidência de que os países de legislação protetiva aos direitos das mulheres apresentam taxas decrescentes de aborto em série histórica, ou mesmo mais baixas quando comparados aos países com legislação mais restritiva. Isso significa que é com a descriminalização do aborto e com as ampliações nas políticas de planejamento familiar que mais eficazmente pode se proteger o valor intrínseco do humano;

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7.31. O aborto, se for realizado no primeiro trimestre da gestação, é um procedimento seguro, com menos de 0,05% de risco de complicações que exijam atenção hospitalar. No entanto, o estigma da criminalização do aborto alcança os serviços de saúde sexual e reprodutiva das mulheres de modo geral e assim amplia os riscos de saúde e a sujeição a tratamentos humilhantes e degradantes às mulheres que realizam o aborto ilegalmente e procuram os serviços de saúde para assistência pós-aborto. A Pesquisa Nacional do Aborto 2016 mostrou que 67% das mulheres que confirmaram ter abortado em 2015 precisaram ser internadas, o que representa um intenso processo de adoecimento desnecessário, humilhação e sofrimento às mulheres, além de impacto nos recursos públicos de saúde;

7.32. A inadequação da criminalização não se expressa apenas na incapacidade da lei em coibir a prática e proteger o valor intrínseco do humano no embrião ou feto, mas nos efeitos injustos para situações em que há excludente de punibilidade pelo Código Penal.

7.33. Praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime.

8. Após esgrimir esses argumentos, o requerente concluiu pela incompatibilidade da criminalização do aborto voluntário, nas primeiras 12 semanas de gestação, com a Constituição da República de 1988. Sem embargo dos judiciosos argumentos manejados, os fundamentos normativos constitucionais evocados não servem para infirmar a validade dos preceitos legislativos impugnados.

9.De início, convém não acolher o requerimento da concessão da medida cautelar, uma vez que os preceitos legislativos atacados foram editados em 7.12.1940, portanto, há quase 70 anos. Isso, por si só, é motivo mais do que suficiente para afastar os alegados “perigo na demora” e “fumaça do bom direito”. Ademais, cuide-se que nos processos relativos ao “feto anencefálico” (ADPF 54) e às “pesquisas com células-tronco” (ADI 3.510), o Tribunal acionou o instituto da “audiência pública”. A gravidade daquelas questões, como a desta, reclama o acionamento desse relevante instrumento da jurisdição constitucional, segundo o disposto no art. 6º, §1º, Lei 9.882/1999.

10. O tema “vida” (e seus correlatos “aborto”, “eutanásia” etc.) é de grande relevância para a sociedade brasileira. E, com a devida vênia, as clivagens sociais e morais decorrentes dessas questões merecem um amplo debate dos múltiplos setores interessados, de modo que a solução seja a mais democrática e republicana possível. A vida, a liberdade e a dignidade são os nossos pilares e sustentáculos fundamentais.

11. Tenha-se que na formulação das normas e das políticas públicas todos os interessados devem participar desse processo social e estatal. Ninguém deve ser alijado, nenhuma visão deve ser desprezada. A pluralidade deve ser a diretiva que legitima a decisão política e pública que impactará nas escolhas individuais. A censura ideológica (crenças ou valores) deve ser afastada. A busca da melhor solução deve permitir o mais amplo debate, levando-se a sério os argumentos dos que têm interesse na causa.

12. Daí que a laicidade do Estado não impede que as concepções morais, filosóficas e religiosas dos indivíduos e dos grupos sociais sejam levadas em consideração no processo de formulação de normas e de políticas públicas. As instituições públicas são laicas, mas não são inimigas das crenças e credos (morais, filosóficos, ideológicos ou religiosos). A legislação questionada não foi produzida por “sacerdotes”, mas foi editada pelo então Presidente da República. E nesse particular, à luz dos paradigmas coletivos coevos, a decisão de proteger o nascituro era moralmente aceitável, socialmente justificável, politicamente conveniente e juridicamente válida. E, com a devida vênia, os paradigmas contemporâneos conduzem à mesma solução política.

13. Com efeito, é ocioso dizer, mas viver em sociedade implica “ônus” e “bônus”. Viver e conviver em sociedade significa pautar as condutas e comportamentos não apenas segundo os próprios desejos (interesses ou vontades), mas segundo as legítimas e lícitas autorizações normativas. Daí que nas sociedades decentes e civilizadas as pessoas não fazem apenas o que querem ou que desejam fazer, mas devem fazer aquilo que estejam autorizadas a fazer, sob o risco de incidirem em consequências normativas negativas. Nessa perspectiva, toda pessoa sensata realiza uma ponderação de “ônus” e “bônus”, e verifica se os “ônus” socialmente impostos e suportáveis são válidos, aceitáveis, justificáveis e razoáveis. E se os “bônus” compensam os “ônus”.

14. Em sociedades democráticas e republicanas, as escolhas dos “bônus” e dos “ônus” sociais para os indivíduos e para a coletividades são realizadas na competente arena pública: o Parlamento. Este deve ser composto dos legítimos representantes de todo o povo. Legítimos porque eleitos pelo voto popular, após um processo político-eleitoral. E de tempos em tempos, a sociedade pode submeter ao Parlamento uma rediscussão dos “bônus” e “ônus” coletivos e individuais.

15. Outra característica das sociedades decentes e civilizadas consiste na crença de que os direitos não decorrem de favores ou de concessões que os mais fortes ou mais poderosos realizam em favor dos mais fracos ou vulneráveis, mas resultam da evolução dos valores éticos e sociais, significando um processo de amadurecimento dos indivíduos e da coletividade. E, nas sociedades decentes e civilizadas, os desejos, as liberdades e os direitos das pessoas estão vinculados a um conjunto de deveres, obrigações e responsabilidades, que devem ser reciprocamente considerados.

16. Nessa toada, raros são os temas relevantes excluídos do domínio público, ou que estejam restritos ao exclusivo domínio privado. Um exemplo, em nossa sociedade, consiste no direito de se casar ou de não se casar. Ninguém deve ser constrangido a se casar ou a permanecer casado. Todavia, uma vez que os indivíduos resolvem se casar ou resolvem se divorciar, há uma “intromissão” do Estado, regulando as normas relativas a casar ou a se divorciar. A questão das relações sexuais é outro tema de domínio privado, mas que a depender das circunstâncias e das consequências pode atrair o interesse social e a intervenção normativa estatal.

17. Cuide-se, por exemplo, o disposto no mencionado § 7º do art. 226, CF (Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas), que utiliza os vocábulos “dignidade da pessoa humana”, “paternidade responsável”, “planejamento familiar” e “livre decisão do casal”.

18.Com efeito, no momento em que duas pessoas livres e responsáveis resolvem manter relações sexuais, dessas relações podem resultar várias consequências, inclusive a possibilidade real de uma gravidez. Se as relações sexuais ocorreram de modo livre, sem constrangimentos, mas fruto da autonomia da vontade e dos desejos dos indivíduos envolvidos, e dessas relações vier a suceder a concepção de um filho, essa questão sai do domínio exclusivamente privado e alcança as galas de tema do domínio público. Daí porque o ordenamento jurídico passa a regular as relações familiares, com especial proteção normativa para os indivíduos mais vulneráveis: os nascituros, as crianças, as mulheres, os idosos etc.

19. O ordenamento brasileiro fez uma opção preferencial pelos mais vulneráveis, especialmente por aqueles que nada têm e nada possuem, sequer a consciência de sua existência e de sua dignidade, como sucede, por exemplos, com os nascituros, com as crianças em tenra idade, e com as pessoas que perderam a consciência e a razão. Essa ética humanista não se restringe apenas aos seres humanos. Alcança a proteção normativa destinada à fauna e à flora, aos rios, mares, lagos, lagoas, bem como aos patrimônios históricos, arqueológicos e culturais. Isso tudo porque os seres humanos (e humanizados) são capazes de atribuir sentido e valor aos seres, às pessoas, às coisas, aos animais, à flora, aos eventos e acontecimentos. A capacidade de atribuir sentido e valor, inclusive ao que não é humano, humaniza e dignifica o homem e a humanidade.

20. Tenha-se, por exemplo, o fato de que o nosso ordenamento atribui sentido e valor aos cadáveres ou às sepulturas, inclusive protegendo a sua simbologia e a sua religiosidade, como revelado nos arts. 209 a 212 do Código Penal. Ora, se os cadáveres e as sepulturas são dignos de proteção normativa porque não seriam os seus opostos fáticos e simbólicos, no caso os nascituros e os úteros maternos?

21. Pois bem, a partir da força dos valores éticos compartilhados pelas gerações brasileiras, o tema da concepção e da proteção normativa do feto ou do nascituro recebeu um sentido jurídico-normativo específico. A pauta de valores predominantes conduz à proteção do feto, que segundo a ética humanista possui alto significado para a sociedade. Proteger normativamente o nascituro consistiu em uma escolha política e social da coletividade brasileira. Reitera-se: a eventual modificação desse padrão valorativo e dessa regulação normativa das condutas deverá ser realizada pelo Parlamento, tendo em vista a relevância social dessa questão e o impacto cultural dessa eventual modificação de padrões normativos, com a devida vênia.

22. Com efeito, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, três são as hipóteses normativas autorizadoras do abortamento voluntário (art. 128, I e II, CP): a) gravidez resultante de estupro; b) risco de morte da gestante; e c) hipótese de feto anencefálico, por força da decisão do STF nos autos da ADPF 54.

23. A primeira excludente da ilicitude (gravidez resultante de estupro) visa não impor à mulher o dever de prosseguir com uma gestação que não deu causa, pela qual é absolutamente irresponsável, e como tal não poderia arcar com as consequências dos crimes e das responsabilidades alheias. O ordenamento jurídico decidiu não atribuir consequências normativas negativas à mulher gestante que não deu causa à gravidez resultante de estupro. O legislador optou pela dignidade e autonomia da vontade da mulher em desfavor da expectativa de nascer do feto concebido em ato criminoso: o estupro. Essa opção política tem sido compreendida como razoável e aceitável.

24. A segunda excludente da ilicitude (risco de morte para a gestante) visa não impor à mulher o sacrifício heroico que resultaria na sua própria morte. Nessas dramáticas situações, há o conflito entre o direito de viver da mãe e a justa expectativa de nascer do filho. O nosso sistema optou por não atribuir consequências normativas negativas para a mulher e para o médico que pratica o aborto nessas circunstâncias dolorosas. O heroísmo é um valor social desejável, mas não pode ser um valor jurídico-normativo vinculante, pois exigiria uma ética sobre-humana ou quase divina. E das pessoas humanas não se pode exigir comportamentos sobre-humanos ou divinos, mas tão somente condutas humanas, demasiadamente humanas.

25. A terceira excludente de ilicitude (o princípio normativo estabelecido no julgamento da ADPF 54) decorreu do fato de que o feto anencefálico não tem viabilidade de vida (intra e extra-uterina), de sorte que sequer poder-se-ia falar em abortamento, mas em extração de “natimorto” do útero materno, ainda que esse natimorto o fosse do ponto de vista cerebral. Mas o anencefálico não foi considerado sequer como nascituro, pois, diante de sua inviabilidade biológica não se cuidaria de aborto. O aborto pressupõe a interrupção da gravidez que resultaria no nascimento com vida de um bebê. O aborto provoca a morte do nascituro. Se o feto já é um “natimorto”, de aborto não se cogita, com a devida vênia.

26.Isso significa que o ordenamento brasileiro, à luz dos valores intersubjetivos compartilhados coletivamente, já tem dado um devido e adequado tratamento para essa delicada questão individual que tem repercussões sociais, pois esse tema não é um “indiferente” normativo à comunidade, visto as implicações e repercussões éticas dos valores morais e sociais decorrentes das escolhas individuais, que exigem a sua normatização pública. Nessa perspectiva, os indivíduos podem até pautar as suas condutas e comportamentos por suas subjetividades, mas sempre tendo em perspectiva as autorizações normativas vigentes em uma determinada comunidade. Com maior rigor a situação das autoridades públicas. Estas não podem decidir lastreadas apenas nas suas particulares subjetividades, mas devem considerar as intersubjetividades coletivas que restaram objetivadas nos textos normativos (Constituição e Leis). O que dá autoridade a quem exerce o poder é a submissão milimétrica às leis da República. O legítimo poder da autoridade está no direito. E só nele. Nas sociedades decentes e civilizadas, não há salvação para a autoridade que age fora do direito (ordenamento jurídico).

27. Cuide-se, também, que as preocupações do requerente em relação ao encarceramento das mulheres que venham a voluntariamente praticar o aborto não se sustentam. É que nos termos do art. 44, caput e itens, Código Penal, as penas restritivas de direitos substituem as privativas de liberdade em várias hipóteses, como no caso de a pena privativa ser inferior a quatro anos. Nos termos do art. 124, CP, a pena é de detenção de um a três anos. Nos termos do art. 126, CP, a pena é reclusão de um a quatro anos. Logo, nenhuma gestante que venha a incidir na hipótese do art. 124, CP, deve ser encarcerada. E os outros que tenham provocado o aborto, com o consentimento da gestante, também não deverão ser encarcerados. Se acaso for menor de 14 anos, será estupro presumido. Se for maior de 14 e menor de 18, a conduta constitui ato infracional. Daí que o receio de encarcerar ou do aumento da população carcerária não encontra apoio no ordenamento jurídico. A prisão não é (e não deve ser) o destino da mulher (adulta, menina ou moça) gestante que voluntariamente aborta. Ela deve ser cuidada e protegida. A mulher que não quer continuar com uma gravidez ou que abortou deve ser acolhida pelos profissionais de saúde, física ou psíquica, jamais por policiais, promotores, juízes ou “carcereiros”.

28. Sucede, todavia, que o sistema jurídico há de ser coerente e harmônico. E, como alegado na petição inicial, e confirmado pela prática jurisprudencial do STF, não há direitos absolutos, pois todos devem ser contextualizados, inclusive o direito à vida (intra ou extra-uterina), que pode ser excepcionalizado normativamente, como ocorre, por exemplo, com a pena de morte (art. 5º, XLVII, “a”, CF) ou mesmo com as autorizações cometidas no Código Penal para o abortamento lícito (art. 128, CP). De mais a mais, nos termos dos arts. 21 a 25, Código Penal, o próprio ordenamento autoriza, excepcionalmente, a atribuição de outras consequências para condutas ordinariamente imputadas como ilícitas, como ocorre, por exemplo, em face do estado de necessidade, da legítima defesa ou do estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, dentre outras hipóteses legalmente estabelecidas.

29. E ainda no plano da coerência e da sistematicidade do ordenamento jurídico, o Código Civil (Lei 10.406/2002), no art. 2º, prescreve que “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Se o Código Civil garante desde a concepção os direitos do nascituro, induvidosamente está o de nascer e de existir fora do útero materno, inclusive para que possa usufruir dos direitos regulados pela legislação civil. Mas o próprio ordenamento jurídico autoriza a excepcionalização desse direito de nascer, como sucede nas citadas hipóteses do Código Penal. Todavia, quem estabelece os fins (usufruir e exercer direitos civis) deve viabilizar os meios (proteger o direito de nascer).

30. Na mesma toada o Artigo 4, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que dispõe que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Recorde-se que esse mencionado Pacto foi promulgado pelo Decreto n. 678/1992. E o STF editou a Súmula Vinculante n. 25 (é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito). Pois bem, a edição dessa SV 25 decorreu dos julgamentos dos Habeas Corpus ns. 87.585 e 92.566, e dos Recursos Extraordinários ns. 466.343 e 349.703, nos quais o STF entendeu pela supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, com força normativa suficiente para afastar a incidência de preceito constitucional expresso.

31. Ora, se o STF acolheu a supralegalidade normativa do Pacto de San José para afastar a incidência de preceito constitucional, em sede de prisão civil do depositário infiel, com muito maior razão terá para admitir a validade do Código Penal no tópico que protege normativamente o direito de nascer do feto, que está em harmonia com o citado Pacto de proteção aos direitos humanos. Há mais. Nesse citado Pacto de San José a “pena de morte” somente deve ser autorizada excepcionalmente em face de criminosos que cometeram delitos gravíssimos. Ou seja, nem os criminosos devem ser condenados à morte, salvo situações excepcionais. No caso brasileiro, a pena de morte somente será autorizada em caso de crimes de guerra (art. 5º, XLVII, a, CF). O nascituro será destinado à morte ou a não nascer sem ter cometido crime algum, mas porque se tornou indesejável? Seres indesejáveis serão exterminados? Os interesses da gestante devem prevalecer sobre os direitos do nascituro, sobretudo o de nascer? O ordenamento jurídico já fez a sua opção. Essa opção pode ser revista? Se sim, somente o Parlamento teria autoridade para isso.

32. Continuando essa linha argumentativa no plano da coerência sistemática do ordenamento jurídico, deve-se recordar o disposto na Lei 9.263/1996, que regulamenta o art. 226, § 7º, CF, no tocante ao planejamento familiar. Nessa aludida Lei 9.263/96 há vários preceitos relevantes para os cuidados relativos à gestação, maternidade e planejamento familiar, incluindo o tema da esterilização voluntária. Essa Lei, no art. 10, § 5º, exige, para a esterilização, o consentimento expresso do cônjuge na hipótese de sociedade conjugal. Se acaso for acolhido o pedido da inicial será exigida a autorização do cônjuge ou do pai para a prática do abortamento?

33. Para o requerente a tipificação penal do abortamento não é medida normativa eficaz para evitar a prática do aborto. Com o devido respeito, qualquer jejuno jurídico sabe que as leis penais, por si só, não evitam o cometimento dos crimes nem a prática de condutas ilícitas. As leis penais servem para atribuir consequências normativas (sanções) àqueles que, dolosa ou culposamente, infrinjam os comandos legais. E pedagogicamente servem para dissuadir àqueles que eventualmente escolham infringir as leis. E também para demonstrar quais são os valores éticos mais caros e relevantes para uma determinada sociedade. As leis, sobretudo as penais, veiculam muitas simbologias. A mensagem simbólica do ordenamento jurídico consiste em acentuar sobrevalor da vida humana, em qualquer estágio ou em qualquer grau.

34. No específico caso do aborto, a pretensão não é punir nem encarcerar a abortante. Mas demonstrar que a vida de um nascituro humano é sagrada, não no aspecto religioso, mas no aspecto de sua especial transcendência. Somente em situações excepcionais se admite o sacrifício de uma vida humana, seja de uma pessoa seja a de um feto. Há de prevalecer a inviolabilidade da vida, salvo nas expressas e específicas autorizações normativas. Essa tem sido a opção social e política de nossa legislação.

35. Tenha-se que a proteção normativa dos direitos fundamentais visa equilibrar (ou diminuir) as diferenças fáticas entre as partes envolvidas. No caso da relação fática entre a gestante e o nascituro, a parte que merece proteção, por ser a mais fraca, é o feto, ser absolutamente frágil e inocente, e totalmente dependente de sua nutriz. Se o direito fundamental visa servir de escudo dos mais fracos contra a supremacia dos mais fortes, a opção moralmente correta da legislação deve ser no sentido da proteção do valor “possibilidade de nascer” do feto em face dos interesses de não continuar a gestação da mulher. O feto é insofismavelmente mais fraco que a gestante. O dano morte é superior ao dano de uma gestação indesejada, com o devido respeito.

36. Sem maiores esforços, à luz da Constituição e das Leis, o ordenamento jurídico tende a proteger os mais fracos ou vulneráveis nas relações fáticas ou jurídicas: os filhos menores em relação aos pais; os idosos em relação aos não idosos; os portadores de deficiência em relação aos não portadores; os cidadãos em relação às autoridades; a proteção normativa da fauna e da flora etc. A razão de ser dos direitos fundamentais consiste em valorar os interesses dos vulneráveis em relação àqueles que sobre eles tenham poder fático ou jurídico. No presente caso: os fetos são mais vulneráveis que as gestantes, por isso merecem especial proteção. A indiscutível autonomia da mulher, nesse caso, deve ceder à possibilidade de nascer e de existir do feto. O feto é dependente da mulher, mas não é coisa disponível. É ser dotado de essencial dignidade, merecedor de proteção normativa.

37. Pretende o requerente que o STF reconheça a descriminalização do aborto na hipótese de a gestação até a 12ª semana de existência, sob a justificativa de que essa é a tendência no direito comparado (legislação e jurisprudência) da maioria das democracias ocidentais e que essa descriminalização atenderia aos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como da proporcionalidade e da razoabilidade. Malgrado os esforços argumentativos, e sem embargo da experiência de outras respeitáveis nações, essa demarcação temporal (12ª semana de gestação) não é extreme de controvérsias, inclusive no campo das ciências biológicas, que dizer do campo das “ciências sociais ou morais”. Assim, se o Estado brasileiro for modificar a sua orientação normativa, deverá fazer por intermédio de sua competente instância pública: o Parlamento, onde já tramitam projetos legislativos sobre o tema.

38. Nada obstante a alta qualidade e honorabilidade dos ministros do STF, Suas Excelências são possuidores de notável saber jurídico. O saber jurídico é saber parcial, restrito ao campo do Direito. A questão do aborto não é apenas uma questão jurídica. É uma questão complexa, que envolve aspectos sociais, morais, políticos e “científicos”. O locus estatal para essas complexidades e para a busca dos consensos possíveis e desejáveis é o Parlamento, cuja legitimidade democrática decorre do voto popular e da múltipla representação dos plurais interesses e valores de uma sociedade. Repisa-se: a sociedade brasileira optou por proteger os interesses dos nascituros. Se acaso houver mudança de orientação, essa alteração deve ser feita via debate político-parlamentar, com a devida vênia. Mas o conflito está posto perante o STF. Essa controvérsia consiste em verificar se a legislação que protege a possibilidade de nascer e de existir do nascituro deve prevalecer sobre os interesses da gestante.

39. Nada obstante os esforços argumentativos do requerente, entre o sacrifício da existência de um nascituro e o sacrifício dos interesses (ou desejos ou vontades) da gestante, a opção que melhor atende à moralidade social e à ética política, é aquela que preserva a expectativa de nascer do feto (ou de existir fora do útero do nascituro) em desfavor dos interesses da mulher, salvo nas hipóteses normativas já enunciadas. Não se deve ignorar as angústias e os sofrimentos das gestantes que não desejam prosseguir em uma gravidez, mas o valor social protegido é a vida do nascituro. A gestante deve merecer cuidados e atenção, e o Estado, a sociedade e a família devem amparar a maternidade de todas as mulheres, sejam ricas ou pobres, brancas ou negras, crentes ou ateias, porque toda gestante é portadora de algo sagrado: a vida. E o útero materno é templo merecedor de reverência. A mulher deve ser protegida e acolhida, jamais acossada. Mas a vida do nascituro deve prevalecer sobre os interesses das gestantes.

40. Por esse motivo, as entidades públicas de saúde no Brasil, especialmente o Ministério da Saúde, devem ter programas específicos de proteção e promoção da mulher e da gestante, inclusive com atuação educacional, com cartilhas e com orientações para práticas contraceptivas, dentre elas, por exemplo, com a denominada “pílula do dia seguinte”. O Estado deve acolher todas as mulheres, com especial atenção às gestantes. Eis porque a própria Constituição estabelece uma série de preceitos protetivos da maternidade e das crianças: art. 7º, XII (salário-família), XVIII (licença à gestante), XIX (licença paternidade), XX (proteção ao mercado de trabalho da mulher), XXV (assistência gratuita aos filhos e dependentes em creches ou pré-escolas, desde o nascimento); art. 201, II (proteção à maternidade, especialmente à gestante); art. 203, I e II (proteção e amparo à família, à maternidade e às crianças); art. 208, I, IV, VIII (educação pública). A Constituição optou pela proteção da vida das crianças, desde a concepção, por isso o amparo às mães e gestantes.

41. Nada obstante, o requerente menciona trágicos números sobre a situação de mulheres que procuram abortar clandestinamente, mormente aquelas pertencentes a extratos sociais mais vulneráveis. Malgrado esses terríveis dados alegados, isso, por si só, não é razão suficiente para decretar a invalidade dos preceitos impugnados, porque não é o Estado nem as leis que constrangem às mulheres às práticas abortivas clandestinas e arriscadas. Com efeito, o sistema público de saúde deve oferecer alternativas que visam incentivar métodos contraceptivos, inclusive com a “pílula do dia seguinte”, como já aludido e com uma série de programas de amparo à mulher gestante. Se essa mulher decidiu correr riscos pondo a sua saúde em perigo, mesmo tendo à sua disposição a rede pública de amparo, não pode isso ser utilizado como justificativa para a invalidade do preceito, com a devida vênia.

42. O requerente aduz que a gestante que não está autorizada a abortar é vítima de maus-tratos ou de tortura. Com o devido respeito o argumento não se sustenta nem deve ser levado a sério. Comparar a insatisfação de uma gravidez a um ato de tortura ou de maus-tratos é desprezar essas vis condutas desumanas. Recorde-se o disposto no art. 1º da Convenção contra a Tortura (Decreto n. 40/1991):

1. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüências unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

43. As dores ou sofrimentos das gestantes que não estejam autorizadas a abortar decorrem de legítimas e lícitas consequências normativas. Não é tortura nem é tratamento degradante ou desumano. Mas a sociedade deve discutir esse tema. Nas democracias republicanas que se revelam sociedades civilizadas e decentes nenhum assunto é tabu inviolável e que não possa ser objeto de debates, deliberações e rediscussões permanentes. Por isso que de tempos em tempos há eleições. Eis o papel do Parlamento: ser a instância pública de diálogo sobre os temas mais importantes para a coletividade, pois ele – o Parlamento – deve ser a “caixa de ressonância” da sociedade (maiorias e minorias).

44. E o caráter contramajoritário da jurisdição constitucional na proteção dos direitos fundamentais das minorias ou dos vulneráveis? Que as mulheres são “minorias” políticas, no sentido de sua sub-representação político-eleitoral, é fato. Mas isso não quer dizer que os seus direitos estejam sendo violados por causa dessa sub-representação eleitoral. Não há nenhuma evidência da relação direta entre “representação político-eleitoral” e a imediata criação de direitos, com a devida vênia. A função contramajoritária é para proteger os direitos fundamentais dos mais vulneráveis. Quem é a parte mais vulnerável da relação entre o nascituro e a gestante? A resposta é fácil: o nascituro. Portanto, se houver direitos fundamentais de vulneráveis que merecem ser protegidos pela jurisdição constitucional contramajoritária, não são os supostos direitos das mulheres, mas os direitos do nascituro. Mas, com o devido respeito, não há direito fundamental ao aborto, salvo nas hipóteses já autorizadas.

46. O argumento segundo o qual o aborto realizado até a 12ª semana de gestação é seguro, por si só não convence. Se acaso a ciência evoluir e criar condições de que o aborto realizado até a 40ª semana de gestação tornar-se-á 100% seguro, nem por isso essa prática deve ser autorizada, com a devida vênia. A proteção normativa da vida deve ser viabilizada desde a concepção, e não apenas a partir da 12ª semana de gestação. Esse perigoso argumento pragmático da segurança do abortamento até a 12ª semana de gestação não derrota o argumento moral da defesa do direito de nascer do feto. O pragmatismo encontra o seu limite na moralidade, com a devida vênia. Daqui a pouco, por uma questão de pragmatismo, também se defenderá a extinção ou eliminação de outros indesejáveis?

47. Tenha-se, também, que o tema do aborto não deve ser utilizado como revanchismo racial (brancas versus negras), ou econômico (ricas versus pobres), ou de gênero (homens versus mulheres). Essa questão é sensível e diz respeito ao valor vida em conflito com o valor autonomia da vontade. Não se trata de uma “guerra”, mas de contraposição de visões éticas e de interesses sociais. Mas se a sociedade pretende rever os seus padrões normativos, que o faça via Parlamento, onde estão os representantes do povo escolhidos pelos eleitores. O que se está em debate, além dos sagrados direitos dos nascituros e das legítimas pretensões das gestantes, consiste estabelecer qual a ética pública que nos pautará: a da liberdade com responsabilidade, ou a da liberdade inconsequente. Essa pauta deve ser discutida no Parlamento, com a devida vênia.

48. Com todos os defeitos, deficiências e disfuncionalidades do Parlamento, dos partidos, dos políticos e da Política, é possível de tempos em tempos “premiá-los ou puni-los”, mas em relação aos magistrados, mormente os do Supremo Tribunal Federal, não há nada que possa ser efeito, exceto suportar o peso de suas decisões, sejam em que sentidos forem. Os políticos podem ser responsabilizados; os magistrados não. Desconfiar dos políticos é desconfiar dos eleitores. Confiar cegamente nos magistrados, por mais qualificados técnica e moralmente que sejam, é optar por um “elitismo aristocrático” incompatível com o modelo de democracia escolhido por nossa sociedade. Platão propôs “reis filósofos”. Se mantivermos essa orientação seremos governados por “sábios juízes”. E por mais sábios e honrados que sejam, os juízes não são legítimos governantes do povo em uma democracia, com a devida vênia.

49. Provocar o STF é uma estratégia política válida, sobretudo daqueles setores da sociedade que desejam mudar os “ônus” e “bônus” coletivos ou individuais, mas que não possuem força de mobilização política suficiente para tanto. Mas cabe ao próprio Tribunal verificar se agirá como “instância de direito” ou se como “instância de interesses políticos e sociais”. Quem se limita é o próprio STF estabelecendo quais são as questões que julgará e quais as soluções jurídico-normativas que dará nas demandas que lhe forem submetidas. Mas esse “vácuo” tem um responsável: o Parlamento. Ou o Parlamento resgata a sua missão institucional de instância pública de deliberação da sociedade, ou será atropelado por outras instituições e será desprezado pela sociedade. O Parlamento deve se impor politicamente e deve atuar nos temas socialmente relevantes, com a devida vênia.

50. Ante esse quadro, entendemos que os preceitos legislativos impugnados estão em sintonia com a Constituição brasileira e com os padrões morais predominantes de nossa sociedade. Mas se essa legislação for incompatível com os atuais valores éticos de nossa sociedade, que seja modificada no Parlamento, com a vênia de quem pensa em sentido contrário, pois não há direito constitucional fundamental da mulher gestante de abortar até a 12ª semana de gravidez, salvo nas hipóteses normativas já existentes, vez que a proteção normativa à vida se inicia desde a concepção, e não a partir da 12ª semana da concepção.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O grito silencioso dos inocentes:: Uma leitura conservadora dos direitos fundamentais e da ADPF 442 que pretende descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5015, 25 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56724. Acesso em: 17 abr. 2024.

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