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Tropeços e descompassos da operacionalização da execução penal.

Considerações sociojurídicas sobre os dilemas do sistema penitenciário brasileiro

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13/04/2017 às 09:40
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A suposta crise do sistema penitenciário reflete a falta de clareza na (re)definição dos objetivos contemporâneos da pena privativa de liberdade.

Resumo: Tomando como gancho os acontecimentos sangrentos nos presídios do sudeste - SP em 2001, norte/nordeste do país: Pedrinhas (MA) em 2013, Anísio Jobim-AM e Alcaçuz-RN em 2017, o artigo propõe trazer elementos históricos e sociojurídicos para subsidiar a discussão acerca da problemática carcerária, enfocando suas complexidades, seus atores, dilemas, descaminhos, ações e discursos. Sobretudo os descompassos existentes entre os órgãos de segurança pública e os de execução penal quando o assunto versa sobre as competências e prerrogativas de tais órgãos sobre o sistema penitenciário.

Palavras-Chave: Sistema Penitenciário. Execução Penal. Lei de Execução Penal


“Para que os assassinos desapareçam é preciso que o horror pelo sangue vertido se acentue nessas camadas sociais donde provêm os assassinos; mas para que isto aconteça é necessário que a sociedade global se ressinta do mesmo modo” DURKHEIM, Émile (1995).

No que tange a discussão sobre segurança pública em 2017, a grande mídia, para “deleite” coletivo, invadiu os lares nacionais oferecendo um inusitado cardápio: Imagens espetacularizadas de assassinatos com requinte de crueldade, regidas à banalização da vida humana, mediante cenas de corpos mutilados e decapitados, mesmo que dentro dos domínios do aparato repressivo do Estado. No fundo, a visão estarrecedora alimenta a nossa convicção de que a culpa por nosso fracasso, por nossa insegurança é das ditas “classes perigosas”, formada por aqueles que deles abriríamos mão de bom grado; identificados como o grupo de excluídos que a sociedade enxerga como incapacitadas para a reintegração e classificados como não assimiláveis, porque não saberiam se tornar úteis nem depois de uma "reabilitação". (Bauman, 2009)

Destarte, a dita e mal dita hemorrágica crise penitenciária nas versões São Paulo (2001[1]), Pedrinhas/Maranhão (2013)[2], Anísio Jobim/Amazonas (2017)[3] e  Alcaçuz - Rio Grande do Norte (2017)[4] tornou-se prato indigesto oferecido e festejado pela sociedade brasileira,  e, como de praxe, impregnado de forte verniz maniqueísta, escamoteado sob as trincheiras das soluções extremistas: radicalismo dos direitos humanos x radicalismo do estado policialesco. Não sem razão, o inconsciente coletivo foi impregnado depressivamente por uma onda de choque, pavor e pânico contra as “classes perigosas” especialmente na representação “ganges prisionais”.

Dos fatos apresentados temos que o ente estatal, na figura do Poder Executivo, do alto de sua estrutura de legitimidade de quem reivindica o monopólio de uso da força e da violência (WEBER, 1974 apud PORTO, 2000), tem pousado para os selfies midiáticos como um grandiloquente atabalhoado que declara controle da situação, mas, em verdade, é visto com desconfiança quando o assunto versa sobre a necessária retomada do controle dos presídios.

Destaque-se que a retomada do controle envolve a salvaguarda da massa carcerária contra a nociva influência das intituladas lideranças carcerárias nos moldes de disputa por controle territorial das gangs prisionais, conforme sinalizado pelo pesquisador Fernando Salla, pra quem as rebeliões, além de denunciarem condições precárias de encarceramento que continuam a predominar no Brasil, têm revelado uma baixa capacidade do Estado em controlar a dinâmica prisional, em fazer valer princípios fundamentais de respeito à integridade física dos indivíduos presos, permitindo que grupos criminosos imponham uma ordem interna sobre a massa de presos (SALLA, 2006, p. 04).

Deste cenário, os fatos prisionais batizados de “crise” ao menos desnudou o discurso que até então revestia a execução penal daquela vistosa toga de integridade.  E, olhando mais de perto, o tratado que pugnava pelas consecuções das políticas de segurança patrocinada pelo poder executivo, com ações proativas de reinserção social do apenado, fez-se letra morta, papel rasgado e vilipendiado, testemunhado publicamente mediante show televisivo. Enfim, poderes judiciário e executivo, mesmo que, na condição de réus soltos, são comparsas e respondem como coautores da crise prisional.

Por outro lado, além do sentimento de pesar pelas vítimas efetivas da tragédia, sem entrar no mérito do debate sintetizado na dicotomia: vítimas do estado x “bandido bom é bandido morto”, vale ascender a luz do alerta vermelho contra a nocividade da glamorização das imagens de sangue vertido e cabeça decepada, pois a massificação dos fatos como espetáculo midiático, retroalimenta a violência, banaliza a vida humana e, consequentemente, naturaliza o assassinato.

Neste contexto, todo cidadão, eu, você e, sobretudo o brasileiro de baixa renda, que vive e sobrevive num ambiente desprovido da retaguarda social e de segurança do estado, é o refém e provável próxima vítima fatal deste lapso de retrocesso social rumo à barbárie. O que fazer?... Eis a questão.  Em análise preambular algumas interrogações são pertinentes.

 I – Qual é de fato o papel social da instituição prisional na contemporaneidade?

II – Qual a função e coparticipação da União frente aos dilemas carcerários dos Estados?

III – A contenção e neutralização dos lideres das facções prisionais através dos presídios federais tem se mostrado uma política assertiva?

IV – A quem cabe equacionar o persistente descompasso e “atropelos” de prerrogativas entre os órgãos de Segurança Pública e os Órgãos Estaduais de Execução Penal[5], quando o assunto é administrar, supervisionar, operacionalizar, fiscalizar e jurisdicionar o sistema penitenciário?

V – Qual é o horizonte ou ponto de chegada deste superencarceramento (fruto de decisão política) considerando que tal tendência não é acompanhada por criação de vagas prisionais (também fruto de decisão política) e, que ainda inviabiliza as garantias das condições materiais e de salubridade mínimas àquele sob a responsabilidade tutelar do Estado?

VI - A quem, verdadeiramente, interessa a privatização/terceirização do sistema penitenciário?  

VII - Quais estratégias, políticas e iniciativas estão sendo construídas para mitigar o efeito deletério das gangues prisionais, tanto intra como extramuros dos presídios brasileiros?

VIII – Qual estrutura e condições de trabalho o estado brasileiro tem conferido aos agentes penitenciários para consolidar, tanto a garantia da ordem carcerária, como a articulação do apenado entre os diversos setores responsáveis pelas assistências (jurídica, religiosa, educacional, social, material e à saúde), estabelecidas como direito do preso[6] pela Lei de Execuções Penais?

IX – São razoáveis as condições de trabalho destinadas aos Profissionais Técnicos do Sistema Penitenciário?

X - Quais ações de reinserção social com alcance extramuros são garantidas como retaguarda e  apoio mínimo fundamental ao retorno positivo do egresso ao seu bairro, comunidade etc.?

Evidentemente não se intenciona esgotar o assunto, longe disso, a proposta é fornecer, instrumentos técnico/analíticos para que, à guisa da problematização,  indagações sejam reformuladas em prol de interlocução mais proativa da sociedade com os órgãos responsáveis pela segurança pública/penitenciária.

Sobre o superencarceramento

É questionável a decisão de se encarcerar o individuo alcançado pelo chicote punitivo do estado numa cela de presídio, sem a garantia dos requisitos basilares para o preso tirar[7] sua cadeia, leia-se: condições de alocação da cela, salubridade, etc., dentro dos parâmetros arquitetônicos estabelecidos pelo CNPCP[8] para a acomodação de pessoas presas, face ao sucateamento das unidades prisionais e o comprovado descumprimento sistemático do Estado na prestação daquelas assistências ao preso conforme art. 10º da LEP - Lei de Execuções Penais, a saber: “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. (Art. 10 da LEP).

Embora o dilema do superencarceramento envolva os três poderes e diretamente o Executivo,  pesa contra Judiciário, além das responsabilidades fiscalizatórias sobre a gestão dos presídios, a sua inação para desburocratizar o emaranhado protocolar/administrativo no qual tramitam as solicitações de benefícios jurídicos do preso (consagrados pela LEP) e que repercutem diretamente na atenuação do tempo de permanência do individuo atrás das grades, quer seja: progressão de regime, a saída temporária, a remição, o livramento condicional, o indulto e a comutação da pena[9].

Ora tais benefícios que estabelecem uma saudável rotatividade dentro dos estabelecimentos, e, consequentemente, contribuem positivamente contra o inchaço prisional é proveniente, conforme a Magistrada da II Vara de Execuções Penais de Salvador, de uma racionalidade punitiva ineficiente na gestão da pena privativa de liberdade com destaque para a não utilização da interoperabilidade tecnológica, no que tange a atuação de forma integrada dos sistemas diferentes dos diversos órgãos de execução penal para o combate à violência institucional e a garantia dos direitos da pessoa presa, evitando-se o retrabalho (dos Santos, 2016). Enfim, a ausência de interoperabilidade tecnológica é uma das razões da letargia no julgamento por parte da magistratura, considerando que a espera fora dos padrões de razoabilidade, inibe a rotatividade penitenciária, mantém a superlotação prisional, reforça o descrédito dos prisioneiros para com o sistema de justiça e, por assim dizer, potencializa a influência das gangues prisionais sobre a massa carcerária.

Quanto à  terceirização/privatização das unidades prisionais

Da análise dos indicadores que medem os quesitos de segurança, os de reinserção social positiva e os de diminuição da reincidência delituosa apresentados pelas unidades privatizadas/terceirizadas (apelidadas de Cogestão ou de PPP - Parceria Público-Privada) percebe-se a ausência de avanços quando se compara os resultados apresentados pela cogestão com os números das unidades administradas pela gestão plena.

Foi, de certa forma, motivados por esta frustração que os EUA iniciaram um processo de revisão da política de privatização dos presídios, vide a postura crítica da subsecretária de Justiça norte-americana do governo Obama (2009/2016), Sally Yates[10], que classificou negativamente os serviços prestados pelas unidades prisionais privatizadas nos EUA quando comparados aos serviços prestados pelas unidades prisionais administradas pelo governo.

"Não oferecem o mesmo nível de serviços correcionais, programas e recursos, não apresentam redução significativa de custos e não mantêm o mesmo nível de segurança e proteção”. (SALLY YATES, 2016)

Ora, a otimização dos indicadores de segurança, somada a de reinserção social positiva com os de superação da reincidência, se caracterizam a condição sinequanon para a celebração de contrato entre o Estado e o ente privado, mas, segundo o professor da USP - Universidade de São Paulo, Laurindo Dias Minhoto, a realidade da cogestão, cujo slogan é “menos custo, mas eficiência”,  aponta caminho inverso.

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As prisões privadas não são menos onerosas para estados e contribuintes nem tampouco operam em níveis minimamente aceitáveis de eficiência. Ao contrário, ao configurar um contexto institucional avesso a estratégias de reabilitação de detentos, o funcionamento concreto das prisões privadas vai desmanchando qualquer aparência de efetividade de metas e indicadores de qualidade fixados em contratos de gestão MINHOTO, 2017

Isto posto, cabe indagar quem são os maiores beneficiados, já que, absolutamente, não é o servidor penitenciário, não é a sociedade e, sequer, o encarcerado.

Considerações sobre o  Agente Penitenciário  a população carcerária e os objetivos da instituição prisional

Se o sistema penitenciário faz parte do aparato de segurança do Estado, dentro das prerrogativas modernas de encarceramento humano que abdica do artifício da vingança e estabelece a punição dentro dos marcos de justiça e respeito aos direitos humanos, espera-se do agente penitenciário, a mola mestra que põe a engrenagem prisional em funcionamento, uma atuação profissional à luz dos paradigmas ocidentais de racionalização, do uso da força, respeitando-se a alteridade, humanização e respeito à dignidade da pessoa do encarcerado.

Ora, os abalos no âmbito prisional registrados no Maranhão 2013 e no Norte/Nordeste do país em 2017, desperta-nos para um cenário mais  real, mas focado na grave realidade nacional, cuja percepção dos operadores do sistema perante a opinião pública é a de desconfiança.

Entretanto, o quadro não pode ser encarado como surpreendente, mas, digerido como desdobramentos resultantes de tropeços e descompassos entre os órgãos de execução penal no que tange os objetivos contemporâneos do sistema penitenciário, cujo descrédito da instituição prisional pela opinião pública já foi sinalizado por Carvalho (2013)

(...) o cenário prisional brasileiro faz soar o alerta de que os implícitos objetivos contemporâneos de resgate social do encarcerado são movediços, desajeitados, não confiáveis e frustrantes. O que acaba colocando a instituição prisional no foco de atenção pública, causando embaraço aos órgãos estatais que administram os estabelecimentos penitenciários, e, por extensão, a sensação de desconfiança se esparrama na figura do Agente Penitenciário (CARVALHO, 2013. pg. 22)

Não é razoável em pleno século XXI destituir os trabalhadores prisionais das condições mínimas favoráveis ao exercício de suas atividades, mantendo os 600 mil encarcerados como um amontoado de indivíduos negligenciados pela administração penitenciária, na contramão inclusive de resolução do próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária- CNPCP.

Determinar ao Departamento Penitenciário Nacional que, na análise dos projetos apresentados pelos Estados para construção de estabelecimentos penais destinados a presos provisórios e em regime fechado, exija a proporção mínima de 5 (cinco) presos por agente penitenciário. (CNPCP, Resolução  N º 1, 2009, pg. 01)

Registre-se que o CNPCP, tomou como parâmetro a realidade prisional internacional, sobretudo a europeia, na medida em que a maioria dos países daquele continente obedece a proporção média de menos de 5 (cinco) detentos por agente penitenciário[11].  Mas, na prática estamos nos afastando da tendência Europeia, desde que em todo o território nacional há cerca de 50 mil agentes para controlar mais que 600 mil detentos, conforme Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN 2014), em síntese 01 agente para 10 presos.

As carências tanto quantitativas como de recursos materiais para exercer sem mister de controlar a 4ª maior população carcerária do mundo, gerou como reação organizada da entidade de classe dos agentes penitenciários, ações concretas para mitigar a  vulnerabilidade destes profissionais no ambiente prisional, cuja ação mais perceptível foi a diminuição considerável do tempo de sua exposição e presença física nos pátios, alas e galerias prisionais. A consequência direta desta re-ação foi a progressivamente corrosão simbólica da representação do estado, dos olhos da sociedade, no sentido de fazer valer, na ponta da execução penal, a decisão do corpo social de punir o infrator com a pena de privação de liberdade, atuando como a mão longa do juiz, no limiar entre a punição e a humanização (CARVALHO,2013).

A ausência física da representação de força estatal nos pátios dos presídios e penitenciárias, a carência de respaldo e retaguarda material aos servidores e técnicos prisionais, quer seja professores, equipe médica, psiquiatra, psicólogo, assistente social, etc., somadas às inadequadas estruturas arquitetônicas das unidades prisionais, soa-nos como descompassos que ajudam a entender o porquê do estado não oferecer resistência a crescente tomada de controle do locus prisional pelas gangues.

A cultura da prisão envolve a constituição de uma peculiar comunidade prisional com sua estratificação social, mecanismos de controle, valores, símbolos, lideranças e regas peculiares a dinâmica carcerária, independentemente da vontade do ente público.  como apontado por Clemmer (1958),  Aguirre (2007) e Thompson (1998). Nesta matéria de resignificação das identidades e o mergulho na cultura carcerária, Thompson destaca que

Todo homem que é confinado ao cárcere se sujeita à prisionização, em alguma extensão. O primeiro passo, e o mais integrativo, diz respeito ao seu status: transforma-se, de um golpe, numa figura anônima de um grupo subordinado; traja as roupas dos membros desse grupo; é interrogado e admoestado; aprende as classes, os títulos e os graus de autoridade dos vários funcionários; e, usando ou não a gíria da cadeia, ele vem a conhecer o seu significado. (THOMPSON, 1998, p. 23)

Nas cadeias norte americanas, em que pese tais referenciais, o caldo cultural que define a formação destes agrupamentos reflete uma sociedade mais ampla, para além dos muros externos das prisões, cuja polarização expressa as fissuras de caráter étnico/racial incrustadas na sociedade estadunidense, o que, consequentemente, fatiou a sociedade carcerária entre brancos 69%, negros 12% e hispânicos 12,5, conforme dados do Federal Bureau of Prisions dos EUA[12].

No Brasil a forma moderna de organização da massa carcerária que remonta ao meado do século XX é originária do sudeste do país nas versões Falange e Comando Vermelho (LIMA, 2001), no contexto da Lei de Segurança Nacional[13], a qual, no âmbito do Regime Militar, no Governo do General Humberto de Alencar Castelo Branco, definiu os crimes contra a segurança nacional na vigência da ordem política da ditadura em 1967.

A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva (art. 3º da Lei de Segurança Nacional de 1967).

Quanto ao cumprimento de pena, destaque-se  a Lei de segurança Nacional - LSN, no bojo do regime militar, consignou no seu art. 52 que “A pena privativa da liberdade será cumprida em estabelecimento militar ou civil, a critério do juiz, mas sem rigor penitenciário”.

Consequentemente, num contexto político de guerra fria que bipolarizou o mundo entre socialistas x capitalistas, os indivíduos pertencentes aos movimentos que resistiram pela luta armada ao golpe militar (a exemplo do ALN, MR-8, VPR, PCBR[14] etc.), quando enquadrados na Lei de Segurança Nacional foram transferidos para o sistema prisional e passaram a tirar cadeia com os presos comuns. Por conseguinte, na medida em que carregavam a cor vermelha como símbolo das ideias revolucionárias socialistas, os pátios brasileiros, ao modo da dinâmica carcerária, foram incorporados a tais discussões, vez que presos políticos e presos comuns dividiram o mesmo espaço de convivência e, portanto, as tensões, fusões, rivalidades e consensos ideológicos impregnaram as discussões no período.

Deste diálogo, entre presos comuns e aqueles “subversivos” de orientação ideológica marxista, percebe-se, nos discursos, quer seja na versão Comando Vermelho do RJ, quer seja no slogan “paz, justiça e liberdade” do PCC de SP, vestígios do legado de orientação ideológica/socialista nestas nascentes gangs prisionais. Entretanto, registre-se que o conteúdo ideológico socialista se esvazia, restando, ao menos, o conteúdo maniqueísta intrínseco no contexto de guerra fria, repercutido pelas lideranças carcerárias, resumidamente sintetizado no apelo da necessidade de organização do “individuo encarcerado indefeso” contra o “Estado opressor”.

Este discurso, nas décadas de 70 e 80 do século passado, ecoou como uma bomba nos pátios das cadeias do sudeste. E, por conta do negligenciamento do poder público, cresceu em ritmo acelerado, pois já nas décadas de 90, num contexto de explosão da população carcerária, estava esparramado em todo território nacional. Como exemplo nordestino, citamos o apelativo discurso de paz nos presídios, evocado pela chamada Comissão da Paz, a qual, conforme Lourenço e Almeida (2013), nasceu nos pátios do Presídio Salvador no início da década de 90 e hoje são reconhecidos como a gangue prisional Comando da Paz. Tais agremiações no século XXI se singularizam em todo território nacional como organizações intramuros como poder territorial, estruturado pela dinâmica da empresa do tráfico de drogas.

É notório, ainda conforme Lourenço e Almeida (2013) que as gangues se aproveitam das brechas e hiatos das instituições formais do estado para exercer a ordem interna dos presídios, mediar conflitos e gerir os mercados ilícitos nas cadeias e nos centros urbanos.

Assim, em se tratando em organização das gangs prisionais, Brasil e EUA apresentam similitudes consideráveis. Vejamos a análises de Lesing (2008) apud Lourenço (2015)

 o domínio das penitenciárias não apenas ajuda a impedir vácuos de poder e lutas internas, como também resolve problemas de recursos humanos e recrutamento. O controle das facções sobre a vida na prisão promove a socialização dos recrutas, a transmissão de capital social entre os presos mais jovens e os mais velhos, e representa oportunidades de aprendizado para os candidatos a futuros líderes. LESSING, 2008 apud LOURENÇO 2015

Por que as gangs mantém vitalidade em épocas atuais?!  Na análise do fenômeno pelo fator econômico, destaque-se a visão do professor e pesquisador David Skarbek do King's College de Londres. Em recente entrevista a BBC Brasil em Londres, o pesquisador assevera que tanto as gangues étnicas da Califórnia (Máfia Mexicana, Irmandade Ariana, Família Negra) quanto o PCC (Primeiro Comando da Capital) no Brasil transformaram-se em organizações sofisticadas cujas hierarquias estabelecem o fluxo e controle do tráfico de drogas e demais ilícitos nas prisões, agindo inclusive como tribunais para a resolução dos conflitos internos. Em suma, de acordo com Skarbek (2016) as gangues se mantém incrustadas nas cadeias do Brasil e dos EUA justamente para “criar ordem e lucrar onde o Estado não quer ou não consegue atuar”. Em que pese a visão reducionista do tema pelo professor, seu viés interpretativo guarda pertinência com o fenômeno brasileiro e nos faz insistir nas seguintes interrogações.  

O que fazemos no Brasil para combater este cenário? Quais ações preventivas são realizadas de forma sincrônica com os demais órgãos de segurança pública e de execução penal? Que treinamento, equipamento e capacitação são oferecidos aos profissionais das prisões?

Necessário se faz caminhar com passos velozes em direção ao resgate da sintonia entre os órgãos de segurança pública e os da execução penal. Devemos urgentemente garantir condições de operacionalidade dos Agentes e demais profissionais técnicos (Psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, educadores, médicos, enfermeiros, etc.) para que atuem, cada qual dentre de suas prerrogativas, em prol do fortalecimento das ações de segurança prisional, na promoção de políticas de reinserção social e nas respostas técnicas/científicas emitidas  para subsidiar decisão judicial acerca de direitos do apenado.

Enfim, a “suposta crise do sistema Penitenciário” reflete sobremaneira a falta de clareza na (re)definição dos objetivos contemporâneos da pena privativa de liberdade. A bem da verdade o aparato punitivo brasileiro foi erigido no século XIX, o qual, embora elaborado à luz dos paradigmas modernos dos EUA e da Europa, foi forjado e impregnado com a nódoa do escravismo, vez que, mesmo com o conteúdo iluminista de dosimetria penal, respeito à alteridade, à integridade física e à humanização, infelizmente, mesmo considerando os mais de dois séculos de distância da promulgação da lei que aboliu a escravatura no Brasil, o ranço do pelourinho, da máscara de flandes, da gargalheira e do açoite,  continuam, em pleno século XXI, simbolicamente presentes nas celas e penitenciárias brasileiras. Na visão de Darken e Karan (2016) a partir das leituras de Wacquant (2001), as prisões brasileiras parecem ser/estar mais próximas de campos de concentração para os despossuídos, ou empresas públicas para o armazenamento industrial do refugo social, do que de instituições judiciais cumpridoras de alguma identificável função penalógica’ DARKE e  KARAM, 2016, p.12

Esta parece ser uma pista para se entender as décadas de silêncio por parte do Ministério da Justiça, do CNPCP e do DEPEN  em normatizar a natureza e a função precípua do Sistema Penitenciário brasileiro na contemporaneidade. Os órgãos consultivos e jurisdicionais máximos do país parecem, senão satisfeitos, avessos ao fato de que diversas unidades federativas subtraem importantes e sensíveis atribuições da esfera das prerrogativas do pessoal penitenciário e, particularmente do agente penitenciário, desviando-as e diluindo-as no rol das forças tradicionais que compõem o aparato de segurança pública (leia-se Polícia Civil e Polícia Militar). A flagrante militarização da execução penal tem desviado cada vez mais Oficiais e Praças PMs  de suas perspícuas atribuições constitucionais de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública, conforme preceitua  o art. 144, § 5º, da Constituição Federal, para atuarem em atividades ordinárias/administrativas dos presídios.

O sociólogo Salla (2012) entende que a presença militar dentre tantos significados, representa o abandono dos princípios humanistas no âmbito da punição contemporânea. Nesta abordagem, cita  os números de pesquisa realizada pela socióloga Julita Lemgruber, para advertir sobre os equívocos da política de se inchar de militares os presídios brasileiros.  Julita Lemgruber, (LENGRUBER, apud SALLA, 2012), em pesquisa realizada em 2012, identificou que, ao menos 67,7% dos estados brasileiros utilizavam PMs em cargos de direção de unidade prisional, bem como 45,8% dos estados, deslocava ordinariamente efetivo PM de sua função fim para a segurança interna de prisões em postos de direção do sistema. Em uma palavra, o sistema penitenciário brasileiro ainda é tratado a base do chicote.

Os policiais militares enveredam por uma área onde a sua expertise é desvirtuada, ou seja, as ferramentas e a formação técnica necessárias para desenvolver a contento as atribuições penitenciarias diverge da sua rígida formação militar, o que, decerto, corrompe os objetivos complexos da execução penal contemporânea e, portanto, gera tensionamento com a população carcerária. A militarização prisional, além de gerar atropelos de prerrogativas, ao atrelar a PM ao caos do sistema penitenciário, ao modo do provérbio africano “a espada não poupa o próprio ferreiro”, é  simbolicamente nociva a corporação PM. A força policial militar que tem o dever constitucional de garantir a atuação do ente civil como legitima representação política social e deve almejar substituí-lo, sobrepondo-o em cargos civil/público/administrativo, sob pena de falência das bases do estado democrático de direito.

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Sobre o autor
Everaldo Jesus de Carvalho

Sociólogo e Mestre em Educação. Policial Penal, ex diretor da Colônia Penal Lafayete Coutinho-Ba, da Cadeia Pública de Salvador e da Penitenciária Lemos de Brito-Ba. Especialista em Gestão em Segurança Pública, Especialista em História e Cultura Afro Brasileira. Autor dos Livros - A Mácula do Crime e A Face maculada Atualmente é docente do Curso de Formação e Capacitação dos Servidores Penitenciários do Estado da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Everaldo Jesus. Tropeços e descompassos da operacionalização da execução penal.: Considerações sociojurídicas sobre os dilemas do sistema penitenciário brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5034, 13 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56829. Acesso em: 16 abr. 2024.

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