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O valor probatório da palavra da vítima nos crimes contra a dignidade sexual

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01/05/2017 às 15:00
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Analisa-se o valor diferenciado que deve ser conferido à palavra da vítima de crimes sexuais, objetivando-se uma satisfatória aplicação do direito penal, apoiado indispensavelmente em pilares da psicologia.

Resumo: A atividade probatória é função fundamental a fim de que se alcance uma efetiva prestação jurisdicional, sendo imprescindível que o operador do direito se utilize de meios válidos, necessários e adequados para que se concretize a tutela pleiteada. Desse modo, imperioso pormenorizar tais meios, hábeis a formar a convicção do julgador, observando-se as particularidades inerentes a cada tipo penal, cujas especificidades podem ensejar especial valia a determinado meio probatório.

Nesse viés, grande destaque é atribuído à palavra da vítima no processo penal, mormente quando presta declarações em sede de crimes contra a dignidade sexual. Portanto, a presente pesquisa dedica-se a analisar a necessidade de se valorar a declaração do ofendido, de acordo com o crime contra ele praticado, demonstrando através de breve escorço histórico, principiológico e com base em fundamentos jurídicos, o valor diferenciado que deve ser conferido à palavra da vítima de crimes sexuais, objetivando-se uma satisfatória aplicação do Direito Penal, apoiado indispensavelmente em pilares da Psicologia, sem que haja implicação de prejuízo aos interesses do acusado.

Palavras-chave: Prova penal. Declaração do ofendido. Crimes Sexuais. Valor probatório. Palavra da vítima.

Sumário: Introdução. 1. Das Provas em Crimes Sexuais. 2. Da Confiabilidade da Palavra da Vítima. 3 Possibilidade de Falsa Declaração: A Síndrome da Mulher de Potífar. 4. Da Declaração de Menores de 18 Anos. 5. Do Depoimento Sem Dano. 5.1 Da Confiabilidade das Declarações de Crianças. Conclusão.

Área: Direito Processual Penal.


Introdução

 A atividade probatória é função fundamental a fim de que se alcance uma efetiva prestação jurisdicional, sendo imprescindível que o operador do direito se utilize de meios válidos, necessários e adequados para que se concretize a tutela pleiteada. Desse modo, imperioso pormenorizar tais meios, hábeis a formar a convicção do julgador, observando-se as particularidades inerentes a cada tipo penal, cujas especificidades podem ensejar especial valia a determinado meio probatório.

Nesse viés, grande destaque é atribuído à palavra da vítima no processo penal, mormente quando presta declarações em sede de crimes contra a dignidade sexual.

Portanto, faz-se indispensável a análise da necessidade de se valorar a declaração do ofendido de modo diferenciado, de acordo com o crime contra ele praticado, demonstrando com base em fundamentos jurídicos, o valor diferenciado que deve ser conferido à palavra da vítima de crimes sexuais, objetivando-se uma satisfatória aplicação do Direito Penal, apoiado indispensavelmente em pilares da Psicologia, sem que haja implicação de prejuízo aos interesses do acusado.


1. Das Provas em Crimes Sexuais

Evidentemente, para que o sujeito ativo que praticou crimes contra a dignidade sexual seja condenado, é indispensável a comprovação da autoria e materialidade do delito, para que assim o magistrado possa avaliar as provas e julgar a ação procedente ou improcedente, aplicando-se o direito ao caso concreto (GRECO FILHO, 2013, p. 228).

Nesse sentido, foca-se o presente artigo, a princípio, na produção de provas especificamente nos crimes de estupro, previsto no artigo 213[1], do Código Penal e estupro de vulnerável, disposto no artigo 217-A[2], do mesmo diploma legal.

Desse modo, observa-se que os crimes sexuais em comento podem ser comprovados por documentos, que são definidos por Greco Filho (2013, p. 253) como “todo objeto ou coisa do qual, em virtude de linguagem simbólica, se pode extrair a existência de um fato” como, por exemplo, fotos, vídeos e laudos psicológicos. Contudo, importante frisar que tais documentos raramente existem em delitos de natureza sexual.

Nesse ínterim, a existência da prova testemunhal (tópico 1.3 do presente trabalho) também não é comum nos delitos em questão, por ocorrerem em sua maioria na clandestinidade, em sigilo (NUCCI, 2014, p. 38), longe dos olhos de outros senão dos próprios protagonistas, às escuras, sendo poucas as situações em que há abundância de provas para a condenação do acusado, mas não inexistentes, como se pode constatar pela seguinte jurisprudência (NUCCI, 2014, p. 142): “TJRJ: “Nos crimes sexuais, a palavra da vítima, ainda que de pouca idade, tem especial relevância probatória, ainda mais quando harmônica com o conjunto fático-probatório. A violência sexual contra criança, que geralmente é praticado por pessoas próximas a ela, tende a ocultar-se atrás de um segredo familiar, no qual a vítima não revela seu sofrimento por medo ou pela vontade de manter o equilíbrio familiar. As consequências desse delito são nefastas para a criança, que ainda se apresenta como indivíduo em formação, gerando sequelas por toda a vida. Apesar da validade desse testemunho infantil, a avaliação deve ser feita com maior cautela, sendo arriscada a condenação escorada exclusivamente neste tipo de prova, o que não ocorreu no caso concreto, pois a condenação foi escorada nos elementos probatórios contidos nos autos, em especial pela prova testemunhal, segura e inequívoca de E. e S., irmão e cunhada do acusado, que presenciaram a relação sexual através da fechadura da porta, bem como pelo depoimento da avó que também presenciou o fato, sem contar com a confissão do acusado e do laudo pericial que atestou rupturas antigas e cicatrizes no hímen” (Ap. 0009186-56.2012.8.19.0023/RJ, 1º C.C., rel. Marcus Basilio, 24.04.2013) (NUCCI, 2014, p. 142).

Ademais, os crimes contra a dignidade sexual podem ser comprovados também por meio de exame de corpo de delito e, finalmente pela declaração da vítima, lastreada ou não por laudo psicológico.

Por exame de corpo de delito, entende Avena (2009, p. 267) que: “Compreende-se a perícia destinada à comprovação da materialidade da infração que deixa vestígio [...] Tal conceituação decorre da exegese do art. 158 do Código de Processo Penal, dispondo que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

Sendo assim, a não observância de citado dispositivo legal pode acarretar nulidade processual.

Em sentido oposto, porém, há que se ressaltar o artigo 167, do mesmo diploma legal, que traz uma ressalva quanto à indispensabilidade do exame pericial, não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

Assim, verifica-se que nos crimes sexuais, em que há a conjunção carnal, consagrada na doutrina e na jurisprudência como a cópula pênis-vagina, ou outro ato libidinoso, definido como aquele capaz de gerar prazer sexual, ou seja, todos os demais contatos físicos que não a cópula vaginal, passíveis de gerar satisfação da lascívia, como sexo anal, oral e toques em partes pudentas da vítima, dentre outros (NUCCI, 2014, p. 38), existe a possibilidade de se comprovar a materialidade por meio de exame pericial, quais sejam: Exame de Conjunção Carnal, Exame de Ato Libidinoso e Exame de Pesquisa de Espermatozoides, além do Exame de Lesão Corporal, utilizado geralmente para caracterização do emprego de violência, para alcançar o constrangimento inerente ao crime de estupro.

Ocorre que, não raro, a materialidade do delito sexual não consegue ser devidamente demonstrada, mesmo com a realização de citados exames, tendo em vista que grande parte destes crimes não deixam vestígios, seja pelo decurso do tempo, por peculiaridades pessoais e físicas da vítima ou pela própria característica do abuso realizado.

A título de exemplificação, o ato de tocar as partes íntimas da vítima, considerado libidinoso, não deixa vestígios constatáveis pericialmente, assim como a prática de conjunção carnal com vítima não virgem ou com hímen complacente, aquele que, pela elasticidade de sua membrana e amplitude de seu óstio, permite a conjunção carnal sem se romper (BENFICA; VAZ, 2008, p. 79), caso decorrido certo período de tempo, não seria passível de constatação por perícia. Nesse sentido, o entendimento jurisprudencial (NUCCI, 2014, p. 73): “STJ: “A ausência de laudo pericial conclusivo não afasta a caracterização de estupro, porquanto a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou vestígios” (AgRg no AREsp 160961/PI, 6ª T., rel. Sebastião Reis Júnior, 26.086.2012, v.u.).

E, ainda, conforme leciona Furniss (1993, p. 29), no que tange à insuficiência dos exames periciais para provar a materialidade de abusos sexuais, na maioria dos casos: “A prova Forense e a evidência médica estão disponíveis apenas em uma minoria dos casos [...] Os profissionais terão de conviver com o fato de que também no futuro a maioria dos casos não terá evidência médica conclusiva de abuso sexual. Por exemplo, um grave abuso oral prolongado pode não ser medicamente detectável. Mas até mesmo uma clara evidência médica de abuso sexual muitas vezes ainda não constitui prova forense no que se refere à pessoa que cometeu o abuso”.

Assim, mormente em se tratando de crime executado às ocultas, como já exposto, torna-se difícil a prova da materialidade e da autoria, não sendo poucas as vezes em que há apenas a palavra da vítima contra a palavra do réu, de modo que, ao operador do direito resta atribuir valoração diferenciada às declarações da vítima em delitos sexuais, havendo que se delimitar o grau de confiança a ser extraído da palavra da vítima em confronto com a declaração do acusado, no caso concreto, conforme se explanará mais especificamente em seguida (NUCCI, 2014, p. 44).

Concomitantemente, como já exposto, tais delitos geralmente são praticados em lugares ocultos, qui clam comittit solent – que se cometem longe dos olhares de testemunhas – ao contrário do que ocorre na maioria dos crimes. Assim, a palavra da vítima assume relevo extraordinário no intento probatório e, se não fosse valorada de modo diferenciado, o sujeito ativo de crimes sexuais acabaria sendo beneficiado pela própria natureza clandestina do delito perpetrado (TOURINHO FILHO, 2013, p. 336): “Nos crimes contra a liberdade sexual, e.g., a palavra da ofendida constitui o vértice de todas as provas. Na verdade, se assim não fosse, dificilmente alguém seria condenado como corruptor, estuprador etc., uma vez que a natureza mesma dessas infrações está a indicar não poderem ser praticadas à vista de outrem”.

Merece destaque ainda, o fato de que mesmo que a materialidade do delito seja devidamente comprovada por meio de exame médico legal, para a prova de sua autoria, quase que necessariamente, recorre-se à palavra do ofendido, conforme expõe Bittencourt (1971, p. 105): “Nesses delitos, como em geral nas infrações contra os costumes, dificilmente se há de conceber outro elemento direto, além da palavra da vítima para a prova da autoria. O elemento material do crime pode e deve ser provado por outro meio (corpo de delito direto ou indireto), mas a afirmação relacionada à pessoa que o praticou merece especial consideração. [...] Nesta matéria, talvez mais do que em nenhuma outra, a palavra da vítima será levada em boa consideração. Não apenas à míngua de elementos mais seguros, mas – segundo a sábia ponderação de Carrara – desde que haja segurança de informação, ao abrigo de qualquer dúvida, sobre o elemento material do delito, a prova da autoria pode ser buscada na palavra da vítima”.

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Imprescindível se faz a menção a casos em que, não raro, a autoria de crimes sexuais é imputada a pessoas inocentes, como forma de vingança pessoal, de obter vantagens e até mesmo em decorrência de desordens psíquicas, conforme destaca também Bittencourt (1971, p. 106): “Casos há – e não são demasiadamente raros – em que o objetivo de obter vantagens leva a vítima a acusar inocentes, contra o que o julgador se acautelará. Fora dessa hipótese, a palavra da ofendida é excelente elemento de convicção”.

Nesse sentido, procurando evitar a ocorrência de possíveis erros judiciais e de amenizar consequências de outros já cometidos, surgem movimentos no mundo todo com a finalidade de auxiliar condenados convictos a provarem sua inocência, como é o caso do “Innocence Project”, fundado nos Estados Unidos, em 1992, por pessoas que se autointitulam como um grupo diverso de pessoas com uma profunda paixão por justiça e por reformar o sistema legal: “O Projeto Inocência, fundado em 1992 por Barry Scheck e Peter Neufeld, é uma organização nacional pautada em políticas públicas, dedicada a exonerar pessoas injustamente condenadas por meio de testes de DNA e a reformar o sistema de justiça criminal para evitar futuras injustiças.

A missão do Projeto Inocência é libertar um número impressionante de pessoas inocentes que continuam encarceradas, e trazer a reforma do sistema responsável por suas prisões injustas.

O Projeto Inocência representa clientes que procuram o teste de DNA após a condenação, para provar a sua inocência. Nós também atuamos sobre uma série de casos em instância recursal, em que o réu é representado por um advogado principal e nós fornecemos informações e antecedentes sobre litígios envolvendo testes de DNA.

Até o momento, 342 pessoas nos Estados Unidos foram exoneradas pelo teste de DNA, incluindo 20 que cumpriam pena no corredor da morte.

A equipe de advogados do Projeto Inocência e os estudantes da Cardozo School of Law (Escola de Direito Cardozo) fornecem representação direta ou assistência crítica na maioria dos casos. Nossa extensa pesquisa de admissão e avaliação da equipe conduzem pesquisas extensas em cada caso, para determinar se o teste de DNA poderia ser realizado para comprovação de inocência.

O uso inovador da tecnologia do DNA, pelo Projeto Inocência, para libertar pessoas inocentes providenciou provas irrefutáveis ​​de que condenações injustas não são isoladas ou eventos raros, mas surgem de defeitos sistêmicos.

Uma organização independente sem fins lucrativos, intimamente associada à Cardozo School of Law (Escola de Direito Cardozo) e com a Universidade de Yeshiva, a missão do Projeto Inocência é nada menos do que libertar números surpreendentes de pessoas inocentes que continuam encarceradas e trazer reforma substantiva para o sistema responsável por suas prisões injustas” (INNOCENCE PROJECT, 2016).

Todavia, apesar da possibilidade iminente de ocorrência de erros judiciais, por mais inadmissíveis que sejam, estes constituem parcela mínima se comparados aos acertos, de modo que, inegável é a necessidade de se atribuir expressivo valor à palavra da vítima, especialmente neste tipo de delito em que o material probatório não se mostra comumente robusto, sendo pacificada a jurisprudência e a doutrina neste sentido, como bem pontua Avena (2009, p. 299): “Embora a palavra do ofendido deva ser considerada com reservas, exigindo-se que seja sempre confrontada com os demais elementos de prova existentes nos autos, não se pode deixar de reconhecer que em alguns casos, possui alto valor, como nas hipóteses de crimes contra os costumes (atualmente contra a dignidade sexual), os quais, cometidos na clandestinidade não apresentam testemunhas. Neste sentido, é pacificada a jurisprudência”.

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Sobre a autora
Vittoria Bruschi Sperandio

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio. Aluna especial do Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB - Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SPERANDIO, Vittoria Bruschi. O valor probatório da palavra da vítima nos crimes contra a dignidade sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5052, 1 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56981. Acesso em: 26 abr. 2024.

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