Sumário: 1.Intróito. 2. – ofensa ao princípio da ampla defesa e do contraditório. 2. Posicionamento do STF –decisão política. 3. ilegalidade da exigência de depósito prévio: 3.1. ofensa ao art. 151, III, do CTN. 4. Empréstimo Compulsório disfarçado de depósito prévio. 5. Conclusão.
1. Intróito:
Inicialmente, gostaria de esclarecer que os motivos que nos levaram a tecer comentários sobre a exigência de depósito prévio como condição de admissibilidade do Recurso Voluntário interposto ao Conselho de Recursos da Previdência Social, foi exatamente o desrespeito e a total inobservância das regras Constitucionais e dos preceitos estatuídos no Código Tributário Nacional.
Perceba, caro leitor, que o Estado na ânsia arrecadatória vem instituindo leis flagrantemente inconstitucionais e, como elas estão protegidas pelo manto da presunção de constitucionalidade, são aplicadas de imediato, prejudicando a grande massa de contribuintes que desavisadamente e até mesmo intimidada pela ação do Fisco, acaba desistindo do direito de defesa e parcelando um débito que em alguns casos não é nem devedora.
O que nos deixa mais triste é o fato de o Estado, mediante a criação de leis visivelmente ofensivas ao Contribuinte, receber a chancela da nossa mais alta Corte, o Supremo Tribunal Federal (Guardião máximo da Constituição Federal da República), que nos últimos julgados manifestou-se no sentido de declarar a constitucionalidade da exigência fiscal de depósito prévio. Com a nova composição do STF, essa matéria será novamente enfrentada pela Suprema Corte, podendo ter um desfecho digno do Guardião da Constituição.
Partamos para o que nos interessa, que é o estudo das inúmeras razões pelas quais o referido depósito como condição de admissibilidade de recurso não pode prosperar no ordenamento jurídico Pátrio.
Como todos sabemos, o papel do cientista consiste em pesquisar e indagar as bases do conhecimento da forma como é posto, na busca incessante da verdade, por isso a mutabilidade do direito e as várias concepções de verdade acerca do mesmo fato.
Sendo assim, buscaremos evidenciar a inconstitucionalidade e a ilegalidade da exigência do depósito em comento, partindo inicialmente da análise dos preceitos constitucionais, para, em seguida, investigar as normas insertas no Código Tributário Nacional.
Desse modo, fixaremos como principal ponto a ser questionado o seguinte:
- Qual o conceito de ampla defesa e do contraditório?
- Podemos taxá-las de garantias Constitucionais?
- Caso positivo, qual o alcance dessas "garantias"?
Em seguida trataremos dos pontos relativos à ilegalidade da norma ensejadora da exigência de depósito prévio.
2 - Conceito e alcance das garantias constitucionais da ampla defesa e contraditório:
A Constituição Federal de 1988 traz em seu art. 5º, LV, as garantias constitucionais que regem o devido processo legal, consubstanciadas na ampla defesa e no contraditório.
A ampla defesa pode ser definida como o direito que a parte tem de utilizar-se de todos os meios de prova em direito admitidos (documental, testemunhal, pericial etc), implicando em cerceamento de defesa todo e qualquer ato que venha a obstar o exercício do referido direito.
Mais do que um direito, a ampla defesa constitui-se numa garantia constitucional, que visa proteger o cidadão das ingerências do Estado contra o indivíduo ou de um indivíduo em relação ao outro. Para a concretização desse fim, o citado instituto tem como objetivo buscar a verdade material, no intuito de que, elucidados os fatos, a justiça seja realizada em sua mais lúcida inteireza.
Segundo Alexandre de Moraes [1], "por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade...".
Desse modo, a finalidade da ampla defesa centra-se em esclarecer a verdade DOS FATOS.
O contraditório, por sua vez, se perfaz no intuito de garantir que as partes tenham conhecimento da pratica de todos os atos e termos ocorridos no processo, por meio de ato formal de citação, notificação ou intimação, assim como que lhe seja dada a oportunidade de, em prazo razoável, se manifestar acerca do pedido formulado, produzir provas e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário.
Segundo o dicionário Larousse contraditório consiste no ato ou efeito de contradizer; oposição, contestação. Desse modo, é fato ínsito ao princípio do contraditório a oportunidade de a parte recorrer (contestar) da decisão desfavorável.Acerca do princípio do contraditório vale destacar as palavras do Dr. Gustavo Arthur Coelho Lobo de Carvalho que assevera o adiante descrito:"O Princípio do Contraditório contém o enunciado de que todos os atos e termos processuais (ou de natureza procedimental[1]) devem primar pela ciência bilateral das partes, e pela possibilidade de tais atos serem contrariados com alegações e provas [2]." (artigo intitulado "Os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório e os limites de intervenção do Poder Judiciário nos partidos políticos" publicado no site: www.jus.com.br Diante desses esclarecimentos, pode-se, a toda evidência, concluir que os princípios do contraditório são, de fato, uma garantia constitucional.
É evidente que a exigência de depósito como condição de admissibilidade de RECURSO VOLUNTÁRIO não se enquadra nos princípios que dão ao direito de defesa o perfil de amplitude e abrangência, configurando-se como cerceamento de defesa qualquer ato restritivo dessas garantias.Esclarecedoras são as palavras do EXMO. SR. JUIZ WILSON ALVES DE SOUZA, que, apreciando a Apelação Cível nº 1999.01.00.009634-2/DF, assim consignou:
"Contudo, em relação à exigência de depósito prévio para a interposição de recurso administrativo, embora prevista em lei, há clara afronta ao princípio do devido processo legal, vez que, também no processo administrativo, é garantido o direito à ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes.
Registre-se que o processo administrativo é uma opção dada ao cidadão, que se coaduna, indiretamente, com os princípios do acesso a justiça, da economia e da celebridade processual. É que o cidadão pode postular administrativamente sem pagamento de custas e sem pagar a advogado. Isso pode facilitar o exercício da função jurisdicional, na medida em que, se o cidadão obtém êxito na via administrativa, não precisa ocupar o Poder Judiciário.
Observe-se que o julgamento administrativo em 1º grau se dá apenas com julgadores funcionários da própria Administração, enquanto os órgãos administrativos de 2º grau, competentes fora julgar os recursos, têm composição paritária (representantes da Administração e dos contribuintes). Isso evidencia a maior probabilidade de êxito do cidadão nas postulações recursais.
De outro lado, causas que envolvem valores elevados praticamente inviabilizam os recursos, na medida em que desfalcam capital de giro das empresas.
Ressalte-se que o Fisco bem poderia exigir garantias outras que não dinheiro, como pode acontecer no próprio processo judicial para o fim de garantir a execução.
Por tudo isto, vê-se que tal exigência é descabida e está fora do razoável.
Pelo exposto, embora por fundamento diverso daquele evidenciado na sentença, nego provimento à apelação e à remessa oficial.
É o voto."
Como se vê, a exigência de depósito prévio fere frontalmente o contraditório, que representa o direito de oposição, de contradizer, e a ampla defesa, princípio interligados à medida que, para contradizer alguma coisa, mister se faz invocar motivos relevantes, somente possível mediante a ampla utilização dos meios de provas em direito admitidos.
O alcance desses princípios, portanto, são amplos, não podendo sofrer nenhuma forma de restrição, para fins de reduzir a sua aplicabilidade. O texto constitucional é expresso em admitir sua incidência tanto na esfera administrativa quanto judicial, significando dizer que o cidadão poderá exercer utilizar os referidos princípios para evitar o cerceamento de defesa, comumente praticada pela Administração Pública. Dispõe a Constituição que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo,... . são assegurados o contraditório e ampla defesa...". Assim, por melhor que seja o intérprete não há como se furtar em aceitar a aplicabilidade desses preceitos, até mesmo porque na dúvida deve-se aplicar a interpretação conforme a constituição.
Por fim, ninguém melhor do que o mestre Celso Antonio Bandeira de Mello para definir com precisão o verdadeiro significado de um princípio, in verbis:
"Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irreversível a ser arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que os sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada". [2]
Sendo assim, não há como aceitar a exigência de depósitos prévios para fins de admissibilidade de Recurso Voluntário seja no âmbito do INSS, seja no âmago da SRF, mediante arrolamento de bens.
3 – Da ilegalidade da exigência de depósito prévio:
A habilidade no manejo dos termos INCONSTITUCIONALIDADE e agora ILEGALIDADE é de fundamental importância, pois são eles que irão dizer o órgão responsável pelo desfecho da contenda, se o STF ou se o STJ.
Como o STF pacificou o entendimento de que a exigência de depósito prévio não ofende as garantias do contraditório, nada mais inteligente do que deixar de lado esses argumentos para lançar mão de outros fundamentos que também são relevantíssimos.
Antes, porém, vale trazer para o centro das discussões o fato gerador da ilegalidade em comento. A exigência do depósito prévio deflui do disposto no art. 126, x 1º, da Lei 9213/91, com redação dada pela Lei 10.684/2003, c/c o art. 306 do Regulamento do INSS, cuja redação seguem transcritas:
"Art. 306. Em se tratando de processo que tenha por objeto a discussão de crédito previdenciário, o recurso de que trata esta Subseção somente terá seguimento se o recorrente pessoa jurídica ou sócio desta instruí-lo com prova de depósito, em favor do INSS, de valor correspondente a trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão.
..."
"Art. 126. Das decisões do Instituto Nacional do Seguro Social-INSS nos processos de interesse dos beneficiários e dos contribuintes da Seguridade Social caberá recurso para o Conselho de Recursos da Previdência Social, conforme dispuser o Regulamento.
§ 1º Em se tratando de processo que tenha por objeto a discussão de crédito previdenciário, o recurso de que trata este artigo somente terá seguimento se o recorrente, pessoa jurídica ou sócio desta, instruí-lo com prova de depósito, em favor do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, de valor correspondente a trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão." (Redação dada pela Lei nº 10.684, de 30.5.2003)
(grifo nosso)
Transcritas as fontes de nosso debate, partamos, então, para o exame do artigo 151, do Código Tributário Nacional que discrimina de forma exaustiva e as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, in verbis:
- moratória;
- o depósito de seu montante integral;
- as reclamações e os recursos, nos termos das reguladoras do processo tributário administrativo;
- a concessão de medida liminar em mandado de segurança;
- a concessão de medida liminar ou tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial;
- o parcelamento.
Estas são as causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Dentre elas buscaremos analisar em separado o depósito do seu montante integral e a interposição de recursos.
O Códex tributário diz expressamente que o depósito suspende a exigibilidade do crédito tributário. De igual maneira, diz que a interposição de recurso voluntário suspende a exigibilidade do crédito tributário. Desse modo, ao se impor a realização de um depósito prévio como condição de admissibilidade de recurso estar-se-á, em verdade, anulando os próprios efeitos deste último, em total desrespeito ao preceito cogente inserto no 151 do CTN que textualmente consigna: "Suspendem a exigibilidade...". Tal dispositivo possui em si norma impositiva, que não dá margens nenhum outro entendimento, a não ser o de que cada item listado representa por si só causa suspensiva da exigibilidade. Exsurge, portanto, a ilegalidade da norma geradora da necessidade de depósito prévio.
Interessante notar que o STJ mostrou-se favorável à tese ora ventilada, conforme se infere da ementa abaixo (RESP 422.814. Rel. Min. Garcia Vieira. 1.ª Turma. STJ. Unânime. Recorrente: INSS, Recorrida CIA. Açucareira Paraíso. DJU: 28/10/2002):
"TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO (ART. 151, III, DO CTN). DEPÓSITO PRÉVIO DE 30% PARA DAR SEGUIMENTO AO RECURSO (ART. 126, §1º DA LEI 8213/91, INTRODUZIDA PELA LEI 9528/97 E ALTERADO PELO ART. 10 DA LEI 9639/98. ILEGALIDADE.
A exigência de prova de depósito prévio de 30%, imposta à pessoa jurídica, para dar seguimento a recurso interposto em processo tributário administrativo, nos termos do art. 10 da Lei 9639/98, é incompatível com o disposto no art. 151, inciso III do CTN.
Recurso improvido".
Diante dos argumentos acima, observa-se que a polêmica da exigência do depósito prévio para o seguimento do recurso administrativo para a segunda instância julgadora, não se exauriu com a decisão emanada pelo Pretório Excelso, haja vista o importante argumento da afronta ao comando do art. 151, III, do Código Tributário Nacional, o que indubitavelmente irá favorecer a novas reflexões por parte dos magistrados quando chamados a decidir ações que versem sobre o presente caso.
4 – Do empréstimo compulsório disfarçado de depósito prévio:
Indo mais além nas minhas indagações, observa-se haver mais um motivo para se declarar, desta vez, a inconstitucionalidade da norma em baila, à medida que o recolhimento dos referidos depósitos aos cofres públicos de forma provisória, configura-se como verdadeiro empréstimo compulsório, o qual somente pode ser instituído mediante Lei Complementar e para atender os requisitos previstos na própria Carta Magna.
O art. 148 da Constituição Federal dispõe o seguinte:
"Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimo compulsórios:
I – para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;
II – no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no artigo 150, III, b.
Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição."
A exigência do depósito como condição de admissibilidade de Recurso Voluntário não se enquadra em nenhuma das hipóteses do art. 148 supra descrito, além de não ter finalidade específica, apesar de sua natureza compulsória para os contribuintes que queiram exercer as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Como se vê, tal exigência não se coaduna aos preceitos constitucionais e também aos dispositivos do Códex Tributário, conforme explanado acima.
6. Conclusão.
Diante do exposto, observa-se que a exigência de depósito prévio ofende tanto os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório como as normas estatuídas no Código Tributário Nacional, de sorte que não deve prosperar em nosso ordenamento jurídico.
Notas
1 Direito Constitucional, 15ª Edição. Editora: Atlas: São Paulo, 2004. pág125.
2 "Elementos de Direito Administrativo", Celso Antônio Bandeira de Mello, 1ª Ed., p. 230, citado por Ricardo Mariz de Oliveira, in "Cooperativas - o Certo e o Errado a Respeito da Tributação de suas Aplicações Financeiras", Ricardo Mariz de Oliveira, Revista Dialética de Direito Tributário nº 12, p. 65.